Será que o cinema de terror e de
violência, quer em desenhos animados, quer com actores reais, não tem
influência na barbárie terrorista que habita cada vez mais o mundo, que uma
sociedade permissiva e uma Justiça tolerante vão aceitando, de resto,
ávidas e insaciáveis de escândalo e provocação? Como é que os incendiários florestais,
por exemplo, nunca são referidos, sequer, pela esquerda, (amante, contudo, da
violência ultrajante contra a direita), ou
mesmo os amantes das comidas vegan, (que o são, também, por amor aos animais,
que o resto da sociedade mata e come com
avidez, o que é pecaminoso, para as suas sensibilidades), quando tais incêndios
não só fazem arder as matas, mas queimam os pobres animais, florestais ou
outros, insectos que sejam, que nem sequer são referenciados nesses incêndios devastadores. E a eutanásia
não será também um processo terrorista condenável? Como se chega a um tão asqueroso estado
de violência como essa que hoje se discute e João Pedro Marques tão bem denuncia nas suas referências históricas,
reconhecedoras da insaciável maldade humana, mas hoje chegadas a um requinte de
crueldade e visibilidade, que se explica também pelos meios publicitários
apelativos de cada vez maiores descalabros morais, e de prática tantas vezes
impune, e em que, afinal, os próprios governos são responsáveis pela
flexibilização de uma Justiça embarcada em desinteresse, preguiça ou quantas
vezes ela própria, em corrupção. É o que acontece por cá. Lá fora, desde todo o
sempre, a crueldade imperou, como bem descreve o Historiador João Pedro Marques, mas o que se tem passado é de uma
vileza de estarrecer.
A exibição do terror
O que temos aqui é o desejo expresso de mostrar o
terror, de o divulgar e tornar conhecido, para que ele produza o seu efeito
dissolvente e dissuasor no ânimo e na vontade de combater dos adversários.
JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e
romancista
OBSERVADOR, 12 out. 2023, 00:1923
Imaginemo-nos no Norte do actual Iraque, no século IX a. C., reinado
de Assurnasirpal II, quando a guerra
mudou de tom com a assunção de uma espantosa crueldade por parte do exército
assírio: gente empalada, pirâmides de cabeças frente às portas
das cidades conquistadas, esfolamentos, populações inteiras queimadas vivas no
interior das suas casas. Raids, deportações, massacres, mudaram a face da guerra
e o terror que os exércitos assírios passaram a inspirar levou a que vários
reinos locais não oferecessem resistência ao seu avanço. A exploração do terror
tornou-se, então, sistemática na região e fez com que os estados que o usavam
se tivessem imposto aos seus vizinhos.
Caminhemos
para oriente e avancemos três séculos no tempo. Estamos, agora, no norte da China no ano de 518
a. C. Os exércitos inimigos dos reinos de Wu e de Ch’u estão frente a frente, a
escassa distância, prontos a baterem-se em mais uma guerra de pequena amplitude
e pouco mortífera que, então, constituía a forma usual de guerrear. Mas nessa
manhã, e contra o que era costume, o rei de Wu dispôs três mil condenados à
morte na linha da frente das suas tropas e ordenhou-lhes que se degolassem. Quando os homens obedeceram e cortaram
as próprias gargantas, o inimigo debandou, apavorado. Naquela manhã a guerra
tinha mudado de tom e tinha-se tornado muito mais cruel porque um dos contendores havia lançado mão do
terror, como arma de acção psicológica.
Essa mudança de tom ocorreu em todo o lado, tornando a guerra ainda
mais horrível e assustadora. Nos séculos XVI e XVII, por exemplo, os exércitos
do reino de Ndongo, na actual Angola, exibiam caveiras no campo de batalha para
intimidar os inimigos. Poderia
multiplicar estes exemplos por mil, num medonho cortejo que vem da Antiguidade
até ao presente, porque estes e outros métodos semelhantes foram utilizados
incontáveis vezes na história do mundo e sempre com o mesmo objectivo em todos
os continentes, mas não quero sobrecarregar quem me lê com mais referências
que, aliás, de pouco adiantariam pois a ideia do papel do terror na guerra e na
política é de todos intuída ou conhecida. O que interessa sublinhar é que com
os actuais meios de difusão e recepção de imagens e mensagens ao alcance de
qualquer pessoa, seja em que ponto do planeta for, a possibilidade de fazer a
guerra através do terror e da sua exibição aumentou exponencialmente.
E vem isto a propósito do recente
ataque de terroristas do Hamas a populações indefesas em Israel. Os próprios terroristas se encarregaram de
difundir imagens das atrocidades que praticaram e que, num recente
artigo, Maria João Marques, elencou bem e com a adequada e saudável carga de
indignação: “O Hamas
fez uma incursão em território israelita onde deliberadamente alvejou civis.
Filmou tudo: queria que o mundo não ficasse com dúvidas sobre a sua barbárie (e
não ficámos). Decapitou bebés. Raptou crianças pequenas e pôs em jaulas. Caçou
mulheres num festival de música e exibiu-as depois do cativeiro, umas mortas e
despidas com soldados sentados em cima do corpo, outras ensanguentadas no meio
das calças. Provavelmente violadas – sabemos bem, desde o ISIS, o que fazem às
raparigas que sequestram. Senhoras de idade raptadas. Famílias exterminadas em
casa. Jovens do festival de música massacrados.”
Isto não é inédito, claro, nem
específico dos terroristas do Hamas ou daquela região do mundo. Temos visto
coisas análogas, temos
convivido quase diariamente com a visão do terror desde que a invasão russa
começou, tanto em Bucha como noutros locais, com destruições, massacres e
torturas, terríveis acontecimentos que foram propositada ou involuntariamente
mostrados ao mundo. Um dos episódios do género chegou ao nosso conhecimento graças à CNN, de onde transitou para os outros órgãos de
comunicação ocidentais e nos horrorizou a todos. Num vídeo gravado, ao
que tudo indica, no último Verão, e que circula actualmente nas redes sociais
russas, vê-se o que parece ser um soldado ucraniano a ser decapitado, à faca,
por um algoz que se julga ser um militar russo. Mais imagens, alegadamente de
Bakhmut, mostrariam cabeças de soldados ucranianos espetadas em estacas.
As
autoridades russas procuraram demarcar-se daquele sadismo dizendo ser
necessário verificar a autenticidade das imagens. As suas homólogas ucranianas,
que não questionam essa autenticidade e que as contra-exploram para suscitar
indignação, pediram ao mundo para ver, novamente, a bestialidade russa em acção
e para agir no sentido de a impedir de continuar a matar. A União Europeia
exigiu um inquérito rigoroso e o julgamento dos eventuais responsáveis. Esse é,
porém, o plano das declarações e do confronto político, da propaganda e da
contra-propaganda e perante ele cada um de nós faz o seu juizo e toma posição.
Para mim, e até prova em contrário, as imagens são autênticas e a única dúvida
que tenho é se a sua divulgação foi feita à revelia ou com a anuência expressa
ou tácita das autoridades russas.
Mas se posso ter algumas
interrogações relativamente à intencionalidade das chefias russas, não tenho
qualquer dúvida quanto à vontade das chefias do Hamas porque elas mesmas se
encarregaram de a explicitar. Efectivamente,
na passada segunda-feira o porta-voz das brigadas Al Qasam, o braço armado da
organização, veio assegurar que
por cada ataque de retaliação israelita a Gaza o Hamas iria executar
publicamente um dos reféns que conserva em cativeiro e transmitir a sua
execução através da internet.
Ou seja, o que temos aqui é o desejo
expresso de mostrar o terror, de o divulgar e tornar conhecido, para que ele
produza o seu efeito dissolvente e dissuasor no ânimo e na vontade de combater
dos adversários. A lógica e a função são exactamente as mesmas dos antigos
horrores assírios ou chineses com que iniciei este artigo. Impressiona e angustia perceber como toda esta animalidade e sadismo se
perpetuam no tempo, apesar das
Convenções de Genebra, dos acordos, das regras supostamente mais civilizadas da
guerra actual. Essa perpetuação parece ser inevitável porque a guerra autoriza
a matar e solta a brutalidade, a desumanidade, a animalidade, que há em muitas
pessoas. Não há progresso moral, a esse nível, nem regiões da terra
salutarmente livres dos monstros humanos capazes de fazer tais coisas. Mas, isto
dito, a pergunta que aqui queria fazer, porque, neste contexto, me parece
importante colocá-la às nossas sociedades livres, é a seguinte: devemos
mostrar as atrocidades dos terroristas do Hamas, divulgá-las, difundi-las,
sabendo que são armas de guerra?
Talvez já estejamos esquecidos de que
há poucos anos, no Iraque e na Síria, o chamado Estado Islâmico recorreu
massivamente a arrepiantes métodos de execução que filmava e divulgava.
A tal ponto o fez, e a tal ponto era óbvia a razão por que o fazia, que se
colocou muitas vezes a hipótese — e o dilema — de deixar pura e simplesmente de
noticiar as suas terríveis acções, isto é, de fazer um blackout
que o condenasse à não existência ou ao silêncio e apagamento na sociedade de
informação. As
autoridades europeias que me representam bloquearam, logo no início da recente
invasão da Ucrânia, os canais de propaganda da Rússia. Deveríamos fazer outro
tanto relativamente às acções sádicas e cruéis dos terroristas do Hamas e à sua
propaganda? O governo britânico parece estar ir nesse sentido e
por muito que isso custe a quem, como eu, defende uma sociedade aberta e sem
censura, é capaz de, neste caso, não haver outro remédio.
MÉDIO ORIENTE MUNDO TERRORISMO CONFLITO ISRAELO-PALESTINIANO PALESTINA GUERRA CONFLITOS
COMENTÁRIOS (de 23)
Américo Silva: A população africana de Angola
há trezentos anos, era inferior à população índia de Massachusetts. Quantos
índios existem em Massachusetts? e quantos africanos há em Angola?. Imagine o
que terá acontecido na América, uma espantosa crueldade por parte dos colonos?,
pirâmides de cabeças?, de corpos?, adultos?, mulheres?, crianças?,
bébés?, raids?, massacres?, o senhor é que é historiador. José Carvalho: A divulgação das imagens também
tem as suas vantagens: permite-nos identificar os que, entre nós, dizendo-se a
favor de um mundo melhor, estão a favor do terror. Sem essas imagens, sempre
teriam a escusa de não saber bem o que se passa. Rui Pedro Matos: Muito bom. Guardei o artigo!
Viva Israel! Onbu
Onbu: No Leste de
Angola em 61 no início da guerra foram essas as atrocidades, como as referidas,
(empalamentos, assassinatos de famílias inteiras, crianças de brancos , pretos
ou mulatos na zona da fronteira), cometidas pelos na altura terroristas
depois chamados de movimentos de libertação, hoje Angola é o que se vê, um país
com um povo miserável governado por tiranos oligarcas, nada sendo diferente das
guerras tribais para controlar qualquer grupo que queira mudar o sistema.
Agora o
neocolonialismo é exercido pela Rússia e RPC, depois da URSS e antes pela CIA,
com mercenários, guerra biológica e ocupação de território qual praga de
gafanhotos. Rui Lima: Mais uma bela crônica de saber
histórico de João Marques , mas hoje há uma civilização que aceita o terror dos
tempos passados e tem simpatizantes em grupos políticos no Ocidente se em
França compreendo que Jean-Luc Mélenchon não condene o Hamas vive dos votantes
dessa civilização , já em Portugal a posição do PCP’, BE e do Livre são
chocantes . Os socialistas do sul da Europa têm uma posição ambígua condenam
mas …impedem o corte de ajuda da Europa ninguém sabe para onde vão esses
dinheiros .
Alcides Longras: Uma
bela e pertinente reflexão. Também sou apologista de uma sociedade aberta e sem
censura, onde os meios de comunicação social reportem de forma equilibrada os
acontecimentos que a todos interessam, quer para tomada de consciência dos
actores, como dos vizinhos que temos pela sua reacção. Mas é um facto que isso pode
muito bem ser instrumentalizado por indivíduos sem escrúpulos e provocar danos
ainda maiores do que os originais. Vivemos numa era de exposição que nunca
antes aconteceu e os que tiram mais partido dela são os que estão a conseguir
mais sucesso. Saberemos nós, indivíduos, tomar as melhores opções de consumo desse
produto que é a informação, para que a sociedade não se desequilibre
irremediavelmente? Faço figas...
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