segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Uma bela lição de História


Sobre os tais filhos, que, ao longo dos tempos se manifestam, por diferentes motivos que sejam, cada época revelando os temas das zangas que figurarão com maior ou menor afinco nas Histórias dos Tempos, trazidos à ribalta por quem os analise a fundo, caso de Jaime Nogueira Pinto, a propósito dos tempos que hoje vivemos, de sacanices e maldades de analogia com esses tempos passados, como ele bem descreve e ironiza, revelando quanto em termos de Mal ou de Bem, o Homem em nada evoluiu.


Filhos de Torquemad@

A ideia de que o inimigo político é não só inimigo político, mas um ser profundamente perverso, Untermensch, sub-humano, que deve ser impedido de falar, escrever, circular e, em último caso, de viver.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 07 out. 2023, 00:2250

As guerras de Religião foram um tempo particularmente cruel da História da Europa, em que, em nome de Deus, do mesmo Deus, católicos e protestantes se guerrearam, se mataram, se torturaram, se exterminaram, se condenaram reciprocamente às piores penas deste mundo e do outro. E fizeram-no paralelamente, ou seja, nuns Estados o poder católico proibiu, preventivamente, as religiões reformadas e perseguiu os que as seguiam; noutros, os protestantes fizeram o mesmo aos católicos; noutros, divididos, foi a guerra civil.

Em Espanha e em Portugal, a Inquisição actuou preventivamente, contra os que se dedicavam “a espalhar e pregar os erros da predita seita luterana e de outros hereges”, como o agostinho Frei Valentim da Luz, que sustentara doutrinas contrárias à ortodoxia, como as seguintes: “Que o purgatório não tinha lugar na Sagrada Escritura” e que as “esmolas deviam ser dadas aos pobres e não à Igreja”.

Por essas e por outras heresias, frei Valentim, apesar de se mostrar arrependido (os inquisidores, desconfiados, não acreditaram na firmeza do propósito de emenda do frade), foi consideradoherege, apóstata, seguidor de Lutero, Calvino e de outros hereges”. E por isso “morreu de garrote” em Auto-de-fé, em 10 de Maio de 1553.

Mais sorte tinha tido, alguns anos antes, o dominicano Fernão de Oliveira, o celebrado autor da primeira Grammatica da lingoagem portuguesa, de 1536, acusado de ser simpatizante das reformas anglicanas de Henrique VIII, Tudor, declarando que os reis não deviam obediência aos Papas. Oliveira foi condenado à prisão, mas foi posto em liberdade ao fim de três anos, por ordem do cardeal D. Henrique, mediante pedido de desculpas e acto de contrição público.

A Inquisição tinha vindo para Portugal em 1536, no reinado de D. João III, depois de muita resistência de Roma à sua instituição no Reino. Em Espanha, estava estabelecida desde 1478, quando os Reis Católicos a obtiveram do Papa Sisto IV, pela Bula Exigit sincerae devotionis affectus; ali, muito antes da Reforma, começou por ser uma forma de combate às práticas judaizantes, prosseguida com grande zelo identitário pelo Inquisidor-mor, confessor e conselheiro de Isabel de Castela, Don Tomás de Torquemada. E foi, acima de tudo, um instrumento da Coroa na prossecução da unidade de Espanha. Primeiro, até 1530, empenhou-se contra os judeus; depois contra os protestantes e mouriscos; mais tarde contra os hereges e as heresias em geral.

Complementarmente a estas actividades repressoras, funcionou uma Censura, que estabeleceu um Index Librorum Prohibitorum et Derogatorumembora, curiosamente, a Censura política do Estado fosse mais dura que a da Igreja. Também as bruxas e os tratos com o Diabo foram investigados e perseguidos, mas em muito menor escala do que na Europa protestante – Inglaterra e Alemanha. Os inquisidores espanhóis eram bastante cépticos nestas matérias, ao ponto de um deles comentar: “No hubo brujas ni embrujados en el lugar hasta que se comenzó a tratar y escribir de ellos”. E se, as execuções por bruxaria em Espanha foram trezentas, no mesmo período na Alemanha foram vinte e cinco mil.

Onde triunfou a Reforma, como na Inglaterra de Henrique VIII, nos países nórdicos e na Genebra de Calvino, foi a vez dos católicos serem perseguidos, os mosteiros fechados, os padres e religiosos relapsos executados. Em 1535, na Inglaterra Tudor, os monges da cartuxa de Londres foram enforcados e esquartejados na praça de Tyburn; São Thomas Moore também foi supliciado por não aceitar a legitimidade do divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão e o seu casamento com Ana Bolena. O Papa São João Paulo II declarou-o patrono dos políticos, revelando grande sabedoria (só um político virtuoso como São Thomas Moore poderia chamar à santidade uma classe que quase sempre aceita quase tudo, desde que lhe convenha). No tempo de Maria Tudor, a Católica, (ou a Sanguinária, para os inimigos) foi a vez dos mártires protestantes275; com Isabel I chegou, outra vez, a vez dos católicos e mais de mil foram mortos. Dos católicos martirizados entre 1535 e 1679, 40 foram beatificados e canonizados pelos papas Leão XIII, Pio XI e Paulo VI.

Em França houve guerras civis entre católicos e protestantes, com a terrível matança de Saint-Barthélemy, em 1572, quando milhares de huguenotes foram assassinados, guerras que duraram até ao Édito de Nantes, de Henrique IV.

A ideologia como religião

A partir da Revolução Francesa e sobretudo da Revolução bolchevique e das reacções europeias à revolução bolchevique, as ideologias políticas passaram a ocupar o lugar das crenças religiosas, nos altos ideais proclamados e rasteiramente prosseguidos e na mobilização dos homens para a luta. E de uma forma total, totalitária.

Nos limites, o comunismo soviético, o hitlerismo e depois o maoísmo revelaram um extremo fanatismo, introduzindo na luta política o sentido da aniquilação, uma espécie de mors tua vita mea, quer dizer, a minha vida depende da tua morte.

A isto acrescentou-se o maniqueísmo, isto é, a ideia de que o inimigo político, hostes, é não só inimigo político, mas um ser profundamente perverso, Untermensch, sub-humano, que deve ser impedido de falar, de escrever, de circular e, em último caso, de viver.

Que este espírito de perigosidade implícita fosse, tradicionalmente, invocado pelos reaccionários para proibir, para perseguir, para prevenir a difusão de doutrinas subversivas da ordem e da autoridade, não é de espantar. Ou sequer que, nos anos que se seguiram à Revolução Francesa as generosas e liberais ideias do Iluminismo, uma vez no poder, se precipitassem nos excessos apocalípticos das execuções em massa, ao Terror na guilhotina, nos afogamentos de Nantes por Carrier, na eliminação por classes de padres e aristocratas, ao genocídio da Vendeia. Também as hecatombes do comunismo do século XX estavam já implícitas nos breviários marxistas-leninistas como caminho natural para a instauração do paraíso na terra; ou o holocausto hitleriano dos Untermensch para a consolidação e protecção do Terceiro Reich.

A nova Esquerda inquisitória

O que é de estranhar é que uma nova esquerda, inclinada para o revisionismo humanista e humanitário, uma nova esquerda inspirada numa reencenação, simultaneamente mais superficial e mais masoquista, dos ensinamentos do marquês de Sade e de outros libertinos, numa releitura mais intensa, extensiva e volante do binómio opressor/oprimido de Marx, numa revisão mais criativa da Vulgata de Estaline e dos seus métodos, se proponha adoptar, em pleno século XXI, práticas inquisitoriais. Práticas de suspensão preventiva, de indiciação por categorias de malvadez e de perigosidade latente de todos os que considera obstáculos à Nova Fé. Ou que vai considerando, ao sabor das conveniências ou de um posicionamento mais vantajoso no mercado, das ideias e das políticas.

Assim, um “pensador de Extrema-Direita” quando fala ou se prepara para falar, seja sobre o que for, vai inevitavelmente “emitir discurso de ódio”, pelo que deve ser imediata e veementemente pré-excluído pelos auto-proclamados inclusivos. Ao contrário do comum dos mortais, parece que estes comissários políticos da inclusão são mesmo seres excepcionais, tanto que têm o dom da fluidez e direito a “pronomes pessoais”, podendo até usar o plural majestático (e ai do súbdito que os não trate com a devida reverência); possuem também antenas hiper-sensíveis para detectar o mais ínfimo cisco de ofensa, de incorrecção, de intolerância e de não-inclusividade no olho alheio.

Esta “nova esquerda”, que nos quer impor as suas intermináveis letras, os seus pronomes indefinidos, os seus códigos de escrita e censura, as suas ladainhas, as suas infindáveis inclusões e exclusões  (desde banir os clássicos a cortar o trânsito ou furar pneus para salvar o planeta); esta esquerda que quer silenciar os dissidentes, não tem nada, mesmo nada, que ver com aquilo que, por muito tempo, deu prestígio e razão moral à Esquerdaa defesa dos trabalhadores, a justiça social, a correcção das desigualdades de nascimento e fortuna, a defesa da liberdade de expressão.

Os seus apóstolos e discípulos – e não excluo que entre eles não haja gente crédula e de boa-fé – parecem ter herdado dos progenitores ideológicos só o pior: dos libertinos, o sado-masoquismo; dos marxistas, a dogmática persecutória; e do cristianismo, os métodos e o zelo do grande inquisidor das Espanhas e “martelo de hereges”, Don Tomás de Torquemad@.

A SEXTA COLUNA   HISTÓRIA   CULTURA   POLÍTICALIBERDADES   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 50):

Alfredo Freitas: Pena é que o Sr Doutor não zurzas mais vezes nestas esquerdas, principalmente no BE, porque tirando o Sr quase mais nenhum dos que escrevem nos jornais tem a cultura histórica necessária para os pôr a nu, portanto que nunca lhe doa a mão, continue. Além disso o Sr Doutor não é mantido pelos nossos impostos como o BE, é mantido pelo seu muito trabalho, não tem que ter qualquer amarra. Os partidos deviam ser sustentados exclusivamente pelas quotas dos militantes, mais nada, não era receber dos impostos x por cada voto. Muita escumalha que para aí anda abria logo falência, o que era muito bom por ser uma limpeza sanitária.         Carlos Quartel: De facto, sempre foi assim. Comunistas e afins nunca esconderam a sua intolerância e o seu desejo de destruição de quem não lê pela mesma cartilha. A manifestação desse espírito é que varia com as condições e com alterações de fervor ideológico. Qualquer argumento serve para elevar esse fervor, desde alterações climáticas a violência doméstica ou rendas de casa. O ódio está lá sempre e a chispa salta à mínima oportunidade. . Ainda ontem vi uma interveniente num debate televisivo pedir a cabeça do Chega, fascistas que deviam ser proibidos. Não só o tom, mas a postura e o olhar foram denunciantes do fel que ali anda acumulado. O comunismo é uma religião, é a verdade, quem não a vê deve ser "removido". De modo expedito, tipo Estaline ou a versão soft de perseguição e acosso (por não haver condições para o Stalin style ).....           João Floriano > Rui Lima: Curioso como foram fazer a eleição para Borba. Normalmente costumavam eleger a miss num ambiente de glamour e confettis no Casino Estoril ou noutro casino qualquer. Igualmente também muito discreta a cobertura dada pela CS. Tanto que estas organizações LGBTI e feministas têm criticado a organização de concursos de misses como um exemplo do heteropatriarcado decadente e exploração do corpo e da imagem da mulher, a pontos de a marca Victoria's Secret ter incluido nos seus catálogos corpos tipo abóbora, e agora invadem esses mesmos concursos para fazerem propaganda da causa. Em novembro serão duas misses trans: a holandesa e a portuguesa, sendo que nestas coisas Portugal vai sempre à frente. Noutras , nas que interessam , está a ficar cada vez mais para trás. Para o ano serão mais a ponto de o concurso das misses se transformar num desfile de matulões a quem cortaram os genitais e todos trabalhados no silicone e no botox. Alguém que me explique porquê Borba! Será porque se quer chamar a atenção para a necessidade de descentralizar e para as vantagens da regionalização?                    Rui Lima: Se no passado a ditadura tinha alguns opressores, hoje os tempos são mais difíceis , os opressores são aos milhares em todas as áreas da vida e ninguém é poupado, os mortos , as estátuas ,os livros, os filmes , a história das nações , o homem branco , ser heterossexual é mal visto a misse de Portugal é notícia em toda a Europa, não pela sua beleza mas pela originalidade. Vi a notícia primeiro nos jornais estrangeiros nem sei se é verdade deixo o título da notícia : “Une femme transgenre sacrée Miss Portugal, une première historique             Rui Guerreiro: Na mouche! Até devíamos sentir-nos animados por estarmos a viver tempos históricos... pena é que nestes tempos só se esteja a escrever a história da queda da civilização ocidental.                  João Floriano > Tone da Eira: Resolve-se já: inscreva-se no Climáximo. Ontem Manuela Ferreira Leite perguntava com graça onde é que se arranjava o cartão de activista: segurança social, loja do cidadão, quiçá Junta de Freguesia ou então online como o Cartão europeu de saúde. Só uma pergunta: Tem a certeza que é moça? É que alguns dos que por lá andam deixam-me na dúvida. Não me diga que está encantado com uma que só trazia meio collant preto. Eu não resisto  a collants pretos e então se estiverem esburacados nem me fale. Aquele ar desmazelado chic é o «climáximo». Desejo-lhe um bom date.                   Mario Bastos: Que grande texto. Eu disse grande texto não disse longo texto que também o é.                      Manuel Gonçalves: A História, essa grande conselheira, para quem a domina com mestria. Análise excepcional, a desfilar os erros dos pequenos sicofantas.                João Floriano: Excelente. O mundo ocidental está a fervilhar de exemplos de Untermensch sobretudo e por enquanto de ordem cultural. Levado ao extremo a agressão russa ao martirizado povo ucraniano é o exemplo máximo do conceito de Untermensch. Os russos não escondem o seu direito moral a aniquilar e varrer da face da terra a «maldade» da Ucrânia. Salvo as devidas proporções, a manifestação pelo direito à Habitação do passado dia 30 de setembro, é também um exemplo do conceito de Untermensch, se bem que os fanáticos que ergueram cartazes de ódio e andaram a partir montras com martelos, não tenham conhecimentos para perceber o que significa Untermensch e o nome Torquemada nada lhes diga . Não sabem que são filhos de Torquemada mas sabem de certeza que são filhos de Louçã e a mãe se chama Mariana Mortágua.         Coxinho: Um artigo cuja inexistência deixaria o Observador a braços com um défice muito sério.       Fernando CE: Muito bom artigo e lição de História. JML - ESTATE MANAGER: Numa só palavra: Obrigado.     Fernando Cascais > João Floriano: O PS vive enlameado no oportunismo político de António Costa que ao perder as eleições em 2015, fez um pacto com o diabo, onde vendeu a mãe e o pai para poder ser primeiro-ministro. Abriu a porta ao radicalismo no PS, e hoje, todos os lugares tenentes vêem com bons olhos uma aliança com o radicalismo da extrema-esquerda. Esta vitória de um derrotado deixou o país refém das politicas de extrema esquerda e condicionou o PS ao "Deixa-Andar" ou ao "Vamos Andando" para garantir o apoio do BE e do PCP. Hoje, todos estamos a pagar a traição que Costa fez a Portugal, mas, infelizmente, como somos um povo que quanto pior melhor, há muito boa gente que aplaude os traidores.                        Fernando Cascais: A política sempre foi mais do que um debate de ideias. A ideia de eliminar os adversários continua presente, apesar, de hoje em dia já não arrastarmos com uma mão a fêmea pelos cabelos para o coito, enquanto com a outra levamos a moca. Evoluímos, é verdade, mas, em muitas regiões do mundo a prática de eliminarmos adversários políticos continua presente e actual incluindo a submissão das mulheres à força do macho. Eu, pessoalmente, sinto-me evoluído, aceito de bom grado o debate de ideias e fico conformado com os resultados das eleições, mas, não sei se reagiria bem se porventura um dia o BE ou o PCP ganhassem as eleições e Mariana Mortágua fosse nomeada primeiro-ministro. Confesso, que quando vejo a Mortágua a discursar dá-me vontade de esganá-la, mas, esta ideia na prática seria tão horripilante como cheirar os velhos All Star que a dita começou a usar quando nasceu. Todavia, nos contextos certos, qualquer moderado seria capaz de esganar um adversário político com ideias políticas radicais. Se a direita portuguesa um dia ganhasse eleições com 90% dos votos, os adversários radicais de esquerda podiam ter problemas com a sua liberdade. As suas ideias seriam atentados à normalidade e aos bons costumes vigentes. O mesmo acontece com as esquerdas, se bem, que as esquerdas radicais anunciam logo à partida que não existe conivência democrática com os adversários políticos. A justificação dos comunistas para a defesa de um regime anti-democrático são os trabalhadores. Dizem eles, que depois de os trabalhadores conquistarem o poder não pode haver o risco de o perderem. Ou seja, neste aspecto as esquerdas radicais são cruelmente honestas e dizem ao que vem; os adversários políticos são para eliminar, e com a esquerda radical no poder, Jaime Nogueira Pinto estaria mudo e possivelmente a apodrecer numa qualquer prisão política. Resumindo, diria que evoluímos mas como um elástico a ser esticado. Basta alguém nos tirar a mão que voltamos num instante para trás. O radicalismo de esquerda não é democrático, quer impor as suas ideias pela força, e, se um dia ganhassem o poder, iam faltar balas para tanto tiro na nuca. 

 

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