A propósito da Turquia, e da sua história, com a qual temos dignas afinidades, segundo OS MAIAS:
«Cohen
interveio, declarou que o soldado português era valente, à maneira dos turcos -
sem disciplina, mas teso. O próprio Carlos disse, muito
sério:
-
Não senhor... Ninguém há de fugir, e há de se morrer bem.
Ega
rugiu. Para quem estavam eles fazendo essa pose heróica? Então ignoravam que
esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses
saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida
no bolor das secretarías, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio,
perdera o musculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais covarde
raça da Europa?...
-
Isso são os lisboetas, disse Craft.
- Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...» (Cap. XVI)
E a HISTÓRIA DA TURQUIA, com um Erdogan em plena volúpia de comando nesta actualidade que Jaime Nogueira Pinto tão expressivamente analisa – sem riso:
Os 100 anos da Turquia
Nos cem anos da República turca, Erdogan, que
apostou na conciliação entre a religião e o nacionalismo dos Jovens Turcos e de
Ataturk, enfrenta os efeitos da crise israelo-árabe. Logrará resistir-lhe?
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 28
out. 2023, 00:1919
Amanhã, dia 29 de Outubro, a Turquia faz cem
anos como República independente. Habituados à etologia
político-estatal da Europa do Ocidente, vemos a História sempre protagonizada
por Estados nacionais, como se eles fossem a única forma de Estado soberano, ou
o único actor na História.
A Turquia, ou melhor, os
turcos otomanos, aparecem-nos de chofre, vitoriosos, em 1453, sob o mando do
jovem Maomé II, conquistando Constantinopla, derrubando as muralhas tidas por
inexpugnáveis depois de um breve cerco, graças a uma gigantesca peça de
artilharia cujo conceito e montagem fora obra de engenheiros cristãos
traidores. Antes
disso, os turcos eram os ghazi, os cavaleiros predadores do Islão, que
continuamente atacavam os bizantinos na Anatólia.
Grandeza e decadência
Foram também nossos
arqui-inimigos no Índico, no Oriente. Afonso de Albuquerque gizou grandes planos contra eles e combateu-os
encarniçadamente. Depois, pairaram
continuadamente como ameaça à Europa, e só foram parados em Lepanto, em 1571,
graças a D. João da Áustria, o filho bastardo de Carlos V, meio-irmão de Filipe
II, e em 1683, em Viena, por obra do polaco João de Sobieski III, rei da
Polónia e Grão-Duque da Lituânia. Venezianos, austríacos,
russos, foram-nos combatendo, em nome da Cristandade. Os
nossos cronistas e Camões, o nosso Poeta maior, reforçaram o seu carácter
singular chamando-lhes só “o Turco”.
Porém, o império otomano entrou, como
outros impérios, em decadência. Aparentemente,
o gozo das conquistas, o luxo, a luxúria, a riqueza, trazem a decadência.
Trouxeram-na a Roma e depois a outros
impérios. O facto é que, chegados ao século XIX, temos a sensação de
que os turcos estão em crise e decadência; e a História confirma-o. A Sublime Porta
já não era tão sublime e havia províncias do império em revolta e agitação
entre as minorias cristãs.
Perante
a crise do Império Turco, os poderes europeus procuraram equilibrar-se e
franceses e alemães vigiavam ingleses e russos. Para grande cólera de Dostoievski, na Guerra da Crimeia, os cristãos franceses e ingleses
iriam aliar-se aos muçulmanos turcos contra os cristãos russos ortodoxos.
Os Jovens Turcos e o Kemalismo
A
influência europeia, política e cultural, estava viva entre as elites militares
revolucionárias turcas e os “Jovens turcos” iriam ser fortemente influenciados
pela Europa no modus operandi e conspirandi. Tanto que, inspirados
no radicalismo laico e republicano francês, escolheram para data fundacional do
seu movimento o 14 de Julho de 1889, o primeiro centenário da tomada da
Bastilha, e a iniciação dos Jovens seguia rituais de tipo maçónico.
A
partir de 1908, o Império Otomano sofre várias derrotas e perde territórios
para os austríacos, para os italianos, para os sérvios, para os gregos, para os
búlgaros. Em 1913, aproveitando a circunstância e a crise, os Jovens Turcos do
Comité da União e Progresso derrubam o governo do Sultão e tomam o poder sob um
triunvirato – Enver Pasha, Talaat Pasha e Djemal Pasha.
A derrota de 1918, o Império
partilhado pelos vencedores anglo-franceses, a guerra contra a Grécia ganha por Mustafa
Kemal (1919-1922), que já se distinguira em Galipolli contra o corpo
expedicionário australiano, são episódios que precedem e preparam a fundação
oficial da República Turca em 1923 – há cem anos.
A partir daí, a Turquia tem a sua
história na História; uma
história que oscila a tradição islâmica e o laicismo kemalista, com lutas pelo
poder, como as tentativas de Enver Pasha de derrubar Ataturk em 1921, e a
procura de uma linha política realista, entre os conflitos europeus e mundiais.
Ataturk morre em 1938; sucede-lhe
o seu amigo, camarada de armas e colaborador próximo, Mustafa Ismet
Inönü, que prossegue o nacionalismo
autoritário e laico kemalista até ao fim da guerra. O regime
é de partido único e recusa envolver-se ao lado do Eixo. No pós-guerra, inicia
uma liberalização e o Partido Republicano do Povo entrega o poder à oposição
democrática em 1950, quando a oposição ganha as eleições.
O papel dos militares
Desde os tempos conspiratórios dos Jovens
Turcos que os militares tiveram um papel importante de tutela do Estado e da
segurança nacional contra “ameaças internas e externas”. Três das quatro
constituições do país – a de 1924, a de 1961 e a de 1982 – cobriram
juridicamente essa leitura e entendimento da defesa dos valores
republicanos do Kemalismo, contra diversos e sucessivos inimigos – comunistas,
separatistas curdos e reaccionários islâmicos.
Os golpes de Estado militares não foram
muitos – o de 27 de Maio de 1960, o de 12 de Março de 1971, o de 12
de Setembro de 1980 e, mais tarde, a 28 de Fevereiro de 1997, o chamado “golpe
militar pós-moderno”. Os inimigos foram-se sucedendo, mas entre o final
dos anos 50 e o início dos anos 80 do século XX, os militares criaram uma certa
autonomia em relação ao poder e às instituições político-partidárias civis.
Em 1960, o chefe do governo, Adnan
Menderes, personificou uma deriva autoritária que se afastou dos princípios do
laicismo kemalista, com uma maciça reabertura de mesquitas e uma política de
“mão dura” em relação à oposição. Foram
fechados jornais e restringidas liberdades públicas. O golpe de Maio de 60
levou ao poder o general Cemal Gursel, e Menderes foi preso, julgado, condenado
à morte e enforcado em Setembro de 1961. Os militares ficaram
no poder até 1965.
Em 1971, num quadro de violência social e
confrontação entre forças opostas da esquerda e da direita, o chefe do Estado
Maior, general Memduh Tağmaç, acusou o governo de Süleyman Demirel de mergulhar
o país na anarquia. Demirel
demitiu-se e os militares, embora não ocupando directamente o poder, impuseram
uma série de governos, num tempo de
grande instabilidade.
Em Setembro de 1980 veio um
novo golpe, desta vez mais violento, com a proclamação da lei marcial e uma
dura repressão, com milhares de prisões e algumas execuções. Os governos
impostos pelos militares, como o de Turgut Ozal, levaram por diante uma campanha de privatizações e conseguiram
controlar a inflação e restabelecer o emprego. Em 1982 foi redigida uma nova
Constituição, aprovada por referendo.
Nestes anos, as intervenções militares e
a influência das forças armadas no poder foram justificadas pela contenção da
esquerda comunista e socialista. Mas nos anos 90, a prevenção voltou-se contra
um novo inimigo interno: o Islão político-religioso, que ganhou as eleições em
1995 como Partido do Bem-Estar. Contra este novo inimigo deu-se o chamado
“golpe pós-moderno” de 1997.
Erdogan e o AKP
Em 1994, nas eleições municipais,
Recep Tayyip Erdogan é eleito
presidente da Câmara de Istambul. Erdogan nasceu em 1954 e começou como militante do Partido do Bem-Estar, um
partido religioso, defensor de uma moral tradicional, crítico dos costumes
ocidentais e partidário do solidarismo social. Este partido e a sua
agenda, considerados incompatíveis com o laicismo kemalista, levaram ao
“Memorando militar de 28 de Fevereiro de 1997” e à abdicação do
primeiro-ministro Necmettin Erbakan, líder do Partido.
O chamado “golpe
pós-moderno” – o quarto
movimento de intervenção militar – afastou Erbakan, um político
religioso e conservador que pretendeu representar os sectores da sociedade que
se consideravam vítimas do “secularismo republicano”. A linha
político-religiosa de Erbakan aparecia, para muitos muçulmanos, como uma via
moderna entre o shiismo iraniano e o wahhabismo saudita. Mas o poder
militar, depois do golpe de 1997, orientou-se
pelo “Plano de Acção Contra as Forças Reaccionárias”, reprimindo as
manifestações externas de fé, como o uso de véus, e procedendo a purgas no
serviço público e na magistratura. O Partido do Bem Estar foi proibido e outro
partido religioso, o Partido da Virtude, foi também perseguido.
É neste contexto de ruptura
entre o secularismo kemalista e os partidos religiosos que Erdogan vai inaugurar uma nova via
política, procurando uma síntese entre os valores do Islão, profundamente
enraizados no povo, e a cultura da modernidade. Para isso funda o
Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que vence as eleições de 2002 com
grande maioria. Depois da interdição
dos partidos religiosos do Bem-Estar e da Virtude, o AKP
aparecia como um partido nacionalista, conservador, democrático e não
confessional. A partir da maioria absoluta, em 2002, num Parlamento
de 550 lugares, e entre vicissitudes várias, Erdogan domina a vida política turca: como
primeiro-ministro, até 2013; e a partir de 2014, como Presidente da República,
sendo que, em Abril de 2017, é aprovada por referendo uma nova Constituição de
cariz presidencialista.
Em Julho de 2016, um golpe
político-militar falhado acaba por contribuir para a popularidade e
autoridade do Presidente. E neste ano de 2023, apesar das
sequelas do grande terramoto de Fevereiro, Erdogan venceu outra vez as eleições
presidenciais, sendo reeleito à segunda volta, em 28 de Maio.
A chave do sucesso de Erdogan está em
fazer a ponte entre aquilo que, até ele, eram terrenos distintos e opostos da
política turca. Citamos um seu discurso na campanha presidencial de
2014:
“Somos
povo. […] Somos os herdeiros de Maomé, o Conquistador, e de Selim II.
Somos aqueles que cultivam a memória de Mustafa Kemal, de Menderes, de Ozal, de
Erbakan. Somos os fiéis de mártires que criaram uma lenda, sacrificando o seu
sangue”.
Erdogan
e o AKP apostaram na conciliação entre a religião popular das massas e o
nacionalismo dos Jovens Turcos e de Ataturk, na evocação das glórias do Império
Otomano e no enfoque popular e solidarista da Turquia moderna, não deixando de
apelar à unidade nacional contra os inimigos externos e internos.
Erdogan representa como que uma terceira via no mundo islâmico entre
as facções reaccionárias do shiismo iraniano e do sufismo saudita; uma síntese
político-religiosa, conservadora e democrática, nacionalista e otomana, que,
nos cem anos da República turca, enfrenta os efeitos colaterais da crise
israelo-árabe. Será capaz de lhes resistir?
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA TURQUIA MÉDIO
ORIENTE MUNDO
COMENTÁRIOS (de 19)
João Floriano: Julgo perceber que Jaime Nogueira Pinto vê Erdogan
como uma via aceitável para a Turquia. À semelhança do nosso amigo klaus
também penso que Erdogan é muito melhor do que os ayatollas. A última vez que
pus os pés em território turco foi em 2018, se não me engano e na república
Turca de Chipre do Norte (1983). Não aparece referência na crónica de JNP mas a
divisão de Chipre entre administração grega e turca é interessante. Os
turcos ocuparam o norte da ilha sob pretexto de proteger os seus cidadãos da
perseguição grega, embora muitos turcos tenham preferido passar para o lado
grego. E por lá estão até ao dia (segundo se diz) que restituam a área
ocupada em troca de algo do seu interesse. Nunca consigo imaginar a Turquia
como membro da UE. Se as coisas já estão bem complicadas para Bruxelas,
não imagino como ficariam com Ursula e amigos a darem ordens a Erdogan e este a
mandá-los passear. De acordo com JNP, Erdogan vai-se equilibrando entre
o tradicionalismo e o modernismo. Não é
certamente uma personalidade simpática, sobretudo quando pensamos na questão
curda. Mas compreende-se o equilibrista e
como europeus é muito melhor ter na Turquia alguém como ele do que um governo
de fanáticos e psicopatas teocratas como no Irão. Klaus
muller: É claro que, entre o islamismo iraniano e o turco,
qualquer pessoa de bom senso prefere o turco. Mas que ninguém tenha dúvidas
de que também estes nos odeiam apenas porque somos "infiéis". Talvez
haja uma elite que pensa como nós, ocidentais. Mas são uma minoria muito
mínima. Donde, acho absurdo que sejam autorizados a entrar na UE. Francisco
Almeida: Li há anos uma enorme biografia
de Ataturk e confesso que fiquei a admirá-lo. Miltar prestigiado que se
demite e forma um partido, não enveredando pelo golpe de Estado como seria
expectável e, aparentemente mais fácil. Consegue afastar o poder religioso e
finalmente depor o sultão. Trouxe em poucas dezenas de anos um país medieval
para a modernidade, sendo para mim admirável como secularizou o ensino lutando
contra as escolas islâmicas. Também admirável como resistiu à pressão soviética
quer externa, quer interna. Tragicamente morreu novo e não teve tempo para
consolidar a escolha europeia, que era claramente a sua; e morreu quando
a democracia era ainda muito imperfeita, mas acredito que era também o seu
desígnio. Alemanha e França, portaram-se pessimamente com a Turquia,
tergiversando, adiando e mentindo no processo de adesão à CEE, aparentemente
com medo da imigração turca. Creio que foi esse o principal motivo da deriva da opinião
pública turca de um pró-europeísmo incitado por Ataturk, para a actual situação
em que é já quase negligenciável e a Turquia procura o seu novo rumo no Médio
Oriente e no Cáucaso, sendo mais visíveis as intervenções na Líbia e no
Nagorno-Karabakh. Não creio que, sem essa
aversão franco-alemã, Erdogan alguma vez chegasse ao poder. Uma coisa é para mim clara. Erdogan não é um estadista. É
um político de navegação à vista, negociando vantagens imediatas em todas as
situações, seja no alargamento da NATO ou na crise dos refugiados. E as recentes declarações de que o Hamas não é uma
organização terrorista mas uma organização libertadora, significam sem sombra
de dúvida que a opinião pública turca, está perdida para o Ocidente. Não vou desenvolver mais mas não são boas
notícias. José Ramos > Hás De Cá Vir: A "ganância do ocidente" - sempre o Ocidente,
quando a Cultura Ocidental foi a que mais benefícios trouxe a toda a Humanidade!
- não ficou nada a dever à ganância do Império Otomano, para não falar na mais
extrema crueldade, no sadismo puro. Em contrapartida, a era pós-Império em golpes,
contra-golpes e "revoluções" faz lembrar a I República em Portugal,
embora mais estendida no tempo. Se "em Tunes há sempre um bei",
porque não há-de haver sempre um sultão em Constantinopla?!... Maria Melo: Muito obrigada por este artigo da História da
Turquia! Seria bom que o ambiente na
Turquia fosse mais coeso e pacífico e o Governo voltasse a ser laico. Religião e Política não se deveriam misturar. Rui Lima: JMN faz uma descrição em poucas
linhas da história turca com qualidade e economia de tempo , não me
lembro de ter lido que o poder actual é de seguidor da Irmandade
Muçulmana que é um facto importante , fico na dúvida se
foi esquecimento ou intencional . Relembra “cujo conceito e montagem fora
obra de engenheiros cristãos traidores” nos nossos dias os traidores não
são engenheiros é malta de esquerda que odeia o Ocidente .
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