domingo, 29 de outubro de 2023

Um cheiro de Eça

 A propósito da Turquia, e da sua história, com a qual temos dignas afinidades, segundo OS MAIAS:

«Cohen interveio, declarou que o soldado português era valente, à maneira dos turcos - sem disciplina, mas teso. O próprio Carlos disse, muito sério:

- Não senhor... Ninguém há de fugir, e há de se morrer bem.

Ega rugiu. Para quem estavam eles fazendo essa pose heróica? Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarías, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...

- Isso são os lisboetas, disse Craft.

- Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...» (Cap. XVI)

 E a HISTÓRIA DA TURQUIA, com um Erdogan em plena volúpia de comando nesta actualidade que Jaime Nogueira Pinto tão expressivamente analisa – sem riso:

Os 100 anos da Turquia

Nos cem anos da República turca, Erdogan, que apostou na conciliação entre a religião e o nacionalismo dos Jovens Turcos e de Ataturk, enfrenta os efeitos da crise israelo-árabe. Logrará resistir-lhe?

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 28 out. 2023, 00:1919

Amanhã, dia 29 de Outubro, a Turquia faz cem anos como República independente. Habituados à etologia político-estatal da Europa do Ocidente, vemos a História sempre protagonizada por Estados nacionais, como se eles fossem a única forma de Estado soberano, ou o único actor na História.

A Turquia, ou melhor, os turcos otomanos, aparecem-nos de chofre, vitoriosos, em 1453, sob o mando do jovem Maomé II, conquistando Constantinopla, derrubando as muralhas tidas por inexpugnáveis depois de um breve cerco, graças a uma gigantesca peça de artilharia cujo conceito e montagem fora obra de engenheiros cristãos traidores. Antes disso, os turcos eram os ghazi, os cavaleiros predadores do Islão, que continuamente atacavam os bizantinos na Anatólia.

Grandeza e decadência

Foram também nossos arqui-inimigos no Índico, no Oriente. Afonso de Albuquerque gizou grandes planos contra eles e combateu-os encarniçadamente. Depois, pairaram continuadamente como ameaça à Europa, e só foram parados em Lepanto, em 1571, graças a D. João da Áustria, o filho bastardo de Carlos V, meio-irmão de Filipe II, e em 1683, em Viena, por obra do polaco João de Sobieski III, rei da Polónia e Grão-Duque da Lituânia. Venezianos, austríacos, russos, foram-nos combatendo, em nome da Cristandade. Os nossos cronistas e Camões, o nosso Poeta maior, reforçaram o seu carácter singular chamando-lhes só “o Turco”.

Porém, o império otomano entrou, como outros impérios, em decadência. Aparentemente, o gozo das conquistas, o luxo, a luxúria, a riqueza, trazem a decadência. Trouxeram-na a Roma e depois a outros impérios. O facto é que, chegados ao século XIX, temos a sensação de que os turcos estão em crise e decadência; e a História confirma-o. A Sublime Porta já não era tão sublime e havia províncias do império em revolta e agitação entre as minorias cristãs.

Perante a crise do Império Turco, os poderes europeus procuraram equilibrar-se e franceses e alemães vigiavam ingleses e russos. Para grande cólera de Dostoievski, na Guerra da Crimeia, os cristãos franceses e ingleses iriam aliar-se aos muçulmanos turcos contra os cristãos russos ortodoxos.

Os Jovens Turcos e o Kemalismo

A influência europeia, política e cultural, estava viva entre as elites militares revolucionárias turcas e os “Jovens turcos” iriam ser fortemente influenciados pela Europa no modus operandi e conspirandi. Tanto que, inspirados no radicalismo laico e republicano francês, escolheram para data fundacional do seu movimento o 14 de Julho de 1889, o primeiro centenário da tomada da Bastilha, e a iniciação dos Jovens seguia rituais de tipo maçónico.

A partir de 1908, o Império Otomano sofre várias derrotas e perde territórios para os austríacos, para os italianos, para os sérvios, para os gregos, para os búlgaros. Em 1913, aproveitando a circunstância e a crise, os Jovens Turcos do Comité da União e Progresso derrubam o governo do Sultão e tomam o poder sob um triunvirato – Enver Pasha, Talaat Pasha e Djemal Pasha.

A derrota de 1918, o Império partilhado pelos vencedores anglo-franceses, a guerra contra a Grécia ganha por Mustafa Kemal (1919-1922), que já se distinguira em Galipolli contra o corpo expedicionário australiano, são episódios que precedem e preparam a fundação oficial da República Turca em 1923 – há cem anos.

A partir daí, a Turquia tem a sua história na História; uma história que oscila a tradição islâmica e o laicismo kemalista, com lutas pelo poder, como as tentativas de Enver Pasha de derrubar Ataturk em 1921, e a procura de uma linha política realista, entre os conflitos europeus e mundiais.

Ataturk morre em 1938; sucede-lhe o seu amigo, camarada de armas e colaborador próximo, Mustafa Ismet Inönü, que prossegue o nacionalismo autoritário e laico kemalista até ao fim da guerra. O regime é de partido único e recusa envolver-se ao lado do Eixo. No pós-guerra, inicia uma liberalização e o Partido Republicano do Povo entrega o poder à oposição democrática em 1950, quando a oposição ganha as eleições.

O papel dos militares

Desde os tempos conspiratórios dos Jovens Turcos que os militares tiveram um papel importante de tutela do Estado e da segurança nacional contra “ameaças internas e externas”. Três das quatro constituições do país – a de 1924, a de 1961 e a de 1982 – cobriram juridicamente essa leitura e entendimento da defesa dos valores republicanos do Kemalismo, contra diversos e sucessivos inimigos – comunistas, separatistas curdos e reaccionários islâmicos.

Os golpes de Estado militares não foram muitos – o de 27 de Maio de 1960, o de 12 de Março de 1971, o de 12 de Setembro de 1980 e, mais tarde, a 28 de Fevereiro de 1997, o chamado “golpe militar pós-moderno”. Os inimigos foram-se sucedendo, mas entre o final dos anos 50 e o início dos anos 80 do século XX, os militares criaram uma certa autonomia em relação ao poder e às instituições político-partidárias civis.

Em 1960, o chefe do governo, Adnan Menderes, personificou uma deriva autoritária que se afastou dos princípios do laicismo kemalista, com uma maciça reabertura de mesquitas e uma política de “mão dura” em relação à oposição. Foram fechados jornais e restringidas liberdades públicas. O golpe de Maio de 60 levou ao poder o general Cemal Gursel, e Menderes foi preso, julgado, condenado à morte e enforcado em Setembro de 1961. Os militares ficaram no poder até 1965.

Em 1971, num quadro de violência social e confrontação entre forças opostas da esquerda e da direita, o chefe do Estado Maior, general Memduh Tağmaç, acusou o governo de Süleyman Demirel de mergulhar o país na anarquia. Demirel demitiu-se e os militares, embora não ocupando directamente o poder, impuseram uma série de governos, num tempo de grande instabilidade.

Em Setembro de 1980 veio um novo golpe, desta vez mais violento, com a proclamação da lei marcial e uma dura repressão, com milhares de prisões e algumas execuções. Os governos impostos pelos militares, como o de Turgut Ozal, levaram por diante uma campanha de privatizações e conseguiram controlar a inflação e restabelecer o emprego. Em 1982 foi redigida uma nova Constituição, aprovada por referendo.

Nestes anos, as intervenções militares e a influência das forças armadas no poder foram justificadas pela contenção da esquerda comunista e socialista. Mas nos anos 90, a prevenção voltou-se contra um novo inimigo interno: o Islão político-religioso, que ganhou as eleições em 1995 como Partido do Bem-Estar. Contra este novo inimigo deu-se o chamado “golpe pós-moderno” de 1997.

Erdogan e o AKP

Em 1994, nas eleições municipais, Recep Tayyip Erdogan é eleito presidente da Câmara de Istambul. Erdogan nasceu em 1954 e começou como militante do Partido do Bem-Estar, um partido religioso, defensor de uma moral tradicional, crítico dos costumes ocidentais e partidário do solidarismo social. Este partido e a sua agenda, considerados incompatíveis com o laicismo kemalista, levaram ao “Memorando militar de 28 de Fevereiro de 1997” e à abdicação do primeiro-ministro Necmettin Erbakan, líder do Partido.

O chamado “golpe pós-moderno”o quarto movimento de intervenção militar – ­afastou Erbakan, um político religioso e conservador que pretendeu representar os sectores da sociedade que se consideravam vítimas do “secularismo republicano”. A linha político-religiosa de Erbakan aparecia, para muitos muçulmanos, como uma via moderna entre o shiismo iraniano e o wahhabismo saudita. Mas o poder militar, depois do golpe de 1997, orientou-se pelo “Plano de Acção Contra as Forças Reaccionárias”, reprimindo as manifestações externas de fé, como o uso de véus, e procedendo a purgas no serviço público e na magistratura. O Partido do Bem Estar foi proibido e outro partido religioso, o Partido da Virtude, foi também perseguido.

É neste contexto de ruptura entre o secularismo kemalista e os partidos religiosos que Erdogan vai inaugurar uma nova via política, procurando uma síntese entre os valores do Islão, profundamente enraizados no povo, e a cultura da modernidade. Para isso funda o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que vence as eleições de 2002 com grande maioria. Depois da interdição dos partidos religiosos do Bem-Estar e da Virtude, o AKP aparecia como um partido nacionalista, conservador, democrático e não confessional. A partir da maioria absoluta, em 2002, num Parlamento de 550 lugares, e entre vicissitudes várias, Erdogan domina a vida política turca: como primeiro-ministro, até 2013; e a partir de 2014, como Presidente da República, sendo que, em Abril de 2017, é aprovada por referendo uma nova Constituição de cariz presidencialista.

Em Julho de 2016, um golpe político-militar falhado acaba por contribuir para a popularidade e autoridade do Presidente. E neste ano de 2023, apesar das sequelas do grande terramoto de Fevereiro, Erdogan venceu outra vez as eleições presidenciais, sendo reeleito à segunda volta, em 28 de Maio.

A chave do sucesso de Erdogan está em fazer a ponte entre aquilo que, até ele, eram terrenos distintos e opostos da política turca. Citamos um seu discurso na campanha presidencial de 2014:

“Somos povo. […] Somos os herdeiros de Maomé, o Conquistador, e de Selim II. Somos aqueles que cultivam a memória de Mustafa Kemal, de Menderes, de Ozal, de Erbakan. Somos os fiéis de mártires que criaram uma lenda, sacrificando o seu sangue”.

Erdogan e o AKP apostaram na conciliação entre a religião popular das massas e o nacionalismo dos Jovens Turcos e de Ataturk, na evocação das glórias do Império Otomano e no enfoque popular e solidarista da Turquia moderna, não deixando de apelar à unidade nacional contra os inimigos externos e internos.

Erdogan representa como que uma terceira via no mundo islâmico entre as facções reaccionárias do shiismo iraniano e do sufismo saudita; uma síntese político-religiosa, conservadora e democrática, nacionalista e otomana, que, nos cem anos da República turca, enfrenta os efeitos colaterais da crise israelo-árabe. Será capaz de lhes resistir?

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COMENTÁRIOS (de 19)

João Floriano: Julgo perceber que Jaime Nogueira Pinto vê Erdogan como uma via aceitável para a Turquia. À semelhança do nosso amigo klaus também penso que Erdogan é muito melhor do que os ayatollas. A última vez que pus os pés em território turco foi em 2018, se não me engano e na república Turca de Chipre do Norte (1983). Não aparece referência na crónica de JNP mas a divisão de Chipre entre administração grega e turca é interessante. Os turcos ocuparam o norte da ilha sob pretexto de proteger os seus cidadãos da perseguição grega, embora muitos turcos tenham preferido passar para o lado grego. E por lá estão até ao dia (segundo se diz) que restituam a área ocupada em troca de algo do seu interesse. Nunca consigo imaginar a Turquia como membro da UE. Se as coisas já estão bem complicadas para Bruxelas, não imagino como ficariam com Ursula e amigos a darem ordens a Erdogan e este a mandá-los passear. De acordo com JNP, Erdogan vai-se equilibrando entre o tradicionalismo e o modernismo. Não é certamente uma personalidade simpática, sobretudo quando pensamos na questão curda. Mas compreende-se o equilibrista e como europeus é muito melhor ter na Turquia alguém como ele do que um governo de fanáticos e psicopatas teocratas como no Irão.                     Klaus muller: É claro que, entre o islamismo iraniano e o turco, qualquer pessoa de bom senso prefere o turco. Mas que ninguém tenha dúvidas de que também estes nos odeiam apenas porque somos "infiéis". Talvez haja uma elite que pensa como nós, ocidentais. Mas são uma minoria muito mínima. Donde, acho absurdo que sejam autorizados a entrar na UE.                    Francisco Almeida: Li há anos uma enorme biografia de Ataturk e confesso que fiquei a admirá-lo. Miltar prestigiado que se demite e forma um partido, não enveredando pelo golpe de Estado como seria expectável e, aparentemente mais fácil. Consegue afastar o poder religioso e finalmente depor o sultão. Trouxe em poucas dezenas de anos um país medieval para a modernidade, sendo para mim admirável como secularizou o ensino lutando contra as escolas islâmicas. Também admirável como resistiu à pressão soviética quer externa, quer interna. Tragicamente morreu novo e não teve tempo para consolidar a escolha europeia, que era claramente  a sua; e morreu quando a democracia era ainda muito imperfeita, mas acredito que era também o seu desígnio. Alemanha e França, portaram-se pessimamente com a Turquia, tergiversando, adiando e mentindo no processo de adesão à CEE, aparentemente com medo da imigração turca. Creio que foi esse o principal motivo da deriva da opinião pública turca de um pró-europeísmo incitado por Ataturk, para a actual situação em que é já quase negligenciável e a Turquia procura o seu novo rumo no Médio Oriente e no Cáucaso, sendo mais visíveis as intervenções na Líbia e no Nagorno-Karabakh. Não creio que, sem essa aversão franco-alemã, Erdogan alguma vez chegasse ao poder. Uma coisa é para mim clara. Erdogan não é um estadista. É um político de navegação à vista, negociando vantagens imediatas em todas as situações, seja no alargamento da NATO ou na crise dos refugiadosE as recentes declarações de que o Hamas não é uma organização terrorista mas uma organização libertadora, significam sem sombra de dúvida que a opinião pública turca, está perdida para o Ocidente. Não vou desenvolver mais mas não são boas notícias.              José Ramos > Hás De Cá Vir: A "ganância do ocidente" - sempre o Ocidente, quando a Cultura Ocidental foi a que mais benefícios trouxe a toda a Humanidade! - não ficou nada a dever à ganância do Império Otomano, para não falar na mais extrema crueldade, no sadismo puro. Em contrapartida, a era pós-Império em golpes, contra-golpes e "revoluções" faz lembrar a I República em Portugal, embora mais estendida no tempo. Se "em Tunes há sempre um bei", porque não há-de haver sempre um sultão em Constantinopla?!...              Maria Melo: Muito obrigada por este artigo da História da Turquia! Seria bom que o ambiente na Turquia fosse mais coeso e pacífico e o Governo voltasse a ser laico. Religião e Política não se deveriam misturar.              Rui Lima: JMN faz uma descrição em poucas linhas  da história turca com qualidade e economia de tempo , não me lembro de ter lido que o poder actual é de seguidor  da  Irmandade Muçulmana  que é um facto  importante , fico na dúvida se foi esquecimento ou intencional . Relembra “cujo conceito e montagem fora obra de engenheiros cristãos traidores” nos nossos dias os  traidores não são engenheiros é malta de esquerda que odeia o Ocidente .

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