Ao texto excelente de Alexandre
Borges, sobre os argumentos, comportando facúndia pedante e
cínica, dos argumentadores da sensibilidade unilateral, da astúcia conveniente
ao retrato próprio, de oposição virtuosa. É o comentário de Andrade BG.
O Hamas matou à traição centenas de civis, assassinou famílias inteiras, raptou idosos e crianças, e a primeira reacção de meio mundo bem sentado longe de tudo foi dizer “ah, mas Israel”.
ALEXANDRE BORGES Escritor e
argumentista
OBSERVADOR, 19
out. 2023, 00:1924
Não me lembro do nome do
atleta, mas a história ficou-me sempre como o sintoma de que
uma forma qualquer de humanidade tinha mudado para sempre. Na véspera de uma
final olímpica, um australiano, favorito à vitória, perdeu o pai. Colocou-se a
hipótese de desistir, toda a comitiva lhe deu espaço para isso, mas ele decidiu
continuar. Pelo pai, por ele mesmo, pela Austrália. No dia, ele não ganhou, mas
chegou em terceiro. Não texto de Alexandre Borgeslevava o ouro, ficava com o
bronze. Cortou a meta de lágrimas nos olhos, só ele e os deuses. Subiria ao
pódio, teria a bandeira por trás, olharia o céu ou o chão, como quisesse ou se
sentisse capaz. Mas, instantes depois, no mundo paralelo das redes sociais, já
se tinha escrito de tudo: que ele era
um fracasso, que estava acabado, nem devia ter corrido, medalha de bronze?, o
pai teria vergonha dele.
Não sei se foram as redes sociais,
então apenas na infância, os jogos de computador, a televisão, toda a forma de
realidade virtual, o conforto em geral de uma sociedade que atingiu o zénite do conforto e da segurança, aquele em que se
queixa de ter de ficar no sofá enquanto alguém resolve o problema de um vírus
mortal que circula pelo mundo, e que, portanto, naturalmente, a seguir
tinha de começar a cair. Penso que é
nessa queda vertiginosa que nos encontramos hoje, a meio dela, apenas. Mas
sei que, naquele dia, me ficou claro que tínhamos
começado a perder a capacidade da empatia – e que nada se avistava no horizonte
que nos pudesse fazê-la recuperar tão cedo.
Por estarmos longe, por não vermos o efeito das nossas palavras na
expressão do rosto do outro, por estarmos anestesiados de tantas histórias e
imagens com que nos bombardeamos ou, hoje, por já nem sabermos distinguir o
verdadeiro do falso, o mais frágil dos indivíduos consegue tornar-se no mais
perigoso, no mais contundente, no mais frio dos juízes. Julgamos acontecimentos, pessoas, vidas,
culturas e épocas inteiras, em poucos segundos – e sentenciamos a seguir, como
se fôssemos biologicamente obrigados a dar uma opinião sobre tudo, sob pena de
deixar de existir, caso nos entreguemos à insignificância de ficar em silêncio.
O julgamento, esse, é frequentemente uma condenação ao degredo, ou
tentativa disso, dos que temos por pecadores, rejubilando com a sensação de
poder que, subitamente, nos deixaram nas mãos. Nietzsche explica.
No
nosso cinismo, no nosso relativismo de quem julga que tudo leu e tudo sabe, no
moralismo enervante em que caímos depois de ter abatido todas as autoridades
morais, e, finalmente, na absurda guerra de trincheiras armada em ideológica
para que tombámos talvez de forma fatal, perante os acontecimentos dos últimos
dias em Israel e na Palestina
conseguimos ficar entretidos a apontar o dedo. Em vez de ajudar, chorar ou, ao
menos, ficar calados. O Hamas matou à traição centenas de civis,
assassinou famílias inteiras, raptou idosos e crianças, e a primeira reacção de
meio mundo bem sentado longe de tudo foi dizer “ah, mas Israel”. Se estivessem ali, nas redondezas, talvez
tivessem entrado nas casas, com cuidado para não sujar as sapatilhas de marca
nos rastos de sangue, na esperança de ainda encontrar alguém vivo para os ouvir
dizer: “epá, lamento imenso, mas sabe? A culpa foi vossa”.
A estes puros, a estes adiantados
mentais armados de conhecimento e ética que, aparentemente sem se aperceberem,
dão cobertura aos mais sanguinários ditadores e respectivos acólitos do nosso
tempo de vida, importa mais debitar a sua razão do que qualquer espécie de
compaixão pelo próximo. Importa
a guerra de palavras, porque não estão debaixo da guerra real. Importa aliviar a má consciência de viverem e gozarem
de todos os privilégios de viverem na sociedade criada e protegida pelos mesmos
regimes e instituições que passam a vida a atacar: a liberdade de expressão, a
democracia, a separação de poderes, o direito internacional – até a marca das
sapatilhas. O mesmo
sucedera já na Ucrânia, mesmo que de forma mais envergonhada – e,
fazendo um exercício de memória um pouco maior, já no 11 de Setembro (e com esse dado, ilibamos,
definitivamente, as redes sociais, que então ainda não existiam, da autoria
moral da queda. Não serão mais do que ferramentas, perigosas, mas dependentes
da mão que as manipular).
De resto, a
partir do primeiro “ah, mas”, já não há nada que se possa fazer. Ficamos
à mesa a esgrimir contextos, atenuantes, justificações, contradições. À mesa,
no mural da rede social, na caixa de comentários do jornal, na televisão. O
importante é desmascarar a pretensa agenda escondida do outro, a geopolítica,
os interesses. Acharmos, firmemente, que somos os bons contra os maus (que
idade julgamos que temos, afinal?).
Enquanto isso, no terreno, Israel
deixa uma população inteira à fome, à sede e sem medicamentos, o Hamas
publicita os vídeos das suas torturas para disseminar o ódio em que medram
todos os movimentos terroristas, um míssil faz explodir um hospital e mata 500
pessoas, esquecemos a Ucrânia e, antes dela, as guerras que a Ucrânia já nos
tinha feito esquecer, e nos tornamos, todos, todos os dias, notícia após
notícia, comentário após comentário, ainda um pouco mais indiferentes, ainda
mais odiados e odiosos, ainda mais desumanos.
Se não vamos pegar numa arma nem correr para salvar a vida de alguém,
porque é que, ao menos, não mostramos algum respeito pelas vítimas e nos
calamos? Seria um bom primeiro passo para reaprendemos a ouvir. E a sentir algo
mais do que os apetites da nossa formidável soberba.
COMENTÁRIOS:
Paulo Nunes Do Rosário: Isso. Carlos Chaves: Sigo muitas vezes o seu conselho, caro Alexandre
Borges, ficar em silêncio e a pensar como é possível este comportamento com
dois pesos e duas medidas quando se trata da vida humana, do extermínio de
inocentes à custa do triunfo de agendas políticas abomináveis, no nosso caso
como as do PS, PCP, BE, LIVRE e PAN! E pior, como é possível tantos
jornalistazecos a seguirem-lhes as pegadas e tentaram convencer-nos que este é
que é o lado certo! Muito provavelmente sonham termos o mesmo inferno em
Portugal! MF
A: Brilhante e muito lúcida. Obrigada. João Floriano:
Texto fabuloso que divide a culpa por
todos nós. Ontem Paulo Raimundo espumando o ódio da sua ideologia
jurássicocomunista acusava Israel pelos acontecimentos no Médio Oriente.
Qualquer atrasado mental que o ouvisse (e só um atrasado mental ou um ignorante
profundo o consegue ouvir sem vomitar), pensaria que no dia 7 de outubro,
Israel tinha acordado de mau humor e vá de começar a lançar bombas para a faixa
de Gaza, tal e qual como um psicopata delinquente adolescente faz pontaria com
uma pressão de ar aos pobres gatos no terreno baldio ao lado da sua casa. O
mundo está um local muito feio, muito mau e sobretudo muito esburacado, mas
calar não pode ser opção. Isso foi o que se fez durante tempo demais, deixando
correr, moderando as nossas opiniões com o politicamente correcto. O resultado
está à vista. a derrocada da Europa.
AndradeBG:
Sim, no final do dia a sociedade evolui em acordo com
as suas prioridades e valores. Acontece que nas últimas décadas têm-se
invertido os valores que garantiam a superioridade moral, de facto e maioritariamente
reconhecida, de quem individual ou colectivamente agia coerentemente com esses
valores. Houve tempos em que se faziam e cumpriam negócios
por simples palavra, hoje só se cumpre quando o prejuízo do não cumprimento se
adivinha maior do que o de o cumprir. Houve tempos em que a atenção e
reconhecimento iam para quem trabalhava, sacrificava e acrescentava valor, hoje
esse reconhecimento vai para os hedonistas deste mundo. Houve tempos em
que se rezava aos deuses a quem se agradeciam as benesses e se pedia perdão
pelas desgraças, hoje celebra-se um qualquer deus de momento a quem não se
atribui em troca qualquer responsabilidade enquanto se acusa o
"ocidente" de todos os males reais e imaginários. Não é
assim de espantar que perante uma explosão no hospital em Gaza, mais que o "O Hamas e o ah" se
tenha verificado a adesão à versão que mais convém a este ódio ao culpado do
costume, o "ocidente". Acontece que esta irrazoável e fatal
narrativa dos males do mundo serem não só de responsabilidade dos países
com maior grau de liberdade e justiça, mesmo que não pudesse ser evitada, foi
facilitada pelos "ah" que constantemente se apresentam. Seria talvez
vantajoso que se começasse a queimar as regras e regrinhas que a cada segundo
são decididas por interesses conjunturais e muitas vezes ilegítimos, para
voltar a fazer valer os princípios a que ninguém se atreve a verbalizar
oposição, a não ser os que defendem a morte e extinção de outros. Relativamente
a esses não haveria, então, qualquer
"ah" a acrescentar. Lápis Afiado: Muito bem descrita a situação de miséria moral que nos
atinge... ah mas ....estamos a caminho do fim da civilização judaico
cristã...depois será o reino das trevas antonyo antonyo
> Filipe Pereira: Não
houve míssil e não foi no hospital. São factos.
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