sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Comentário excelente


Ao texto excelente de Alexandre Borges, sobre os argumentos, comportando facúndia pedante e cínica, dos argumentadores da sensibilidade unilateral, da astúcia conveniente ao retrato próprio, de oposição virtuosa. É o comentário de Andrade BG.

 O Hamas e o ah, mas

O Hamas matou à traição centenas de civis, assassinou famílias inteiras, raptou idosos e crianças, e a primeira reacção de meio mundo bem sentado longe de tudo foi dizer “ah, mas Israel”.

ALEXANDRE BORGES Escritor e argumentista

OBSERVADOR, 19 out. 2023, 00:1924

Não me lembro do nome do atleta, mas a história ficou-me sempre como o sintoma de que uma forma qualquer de humanidade tinha mudado para sempre. Na véspera de uma final olímpica, um australiano, favorito à vitória, perdeu o pai. Colocou-se a hipótese de desistir, toda a comitiva lhe deu espaço para isso, mas ele decidiu continuar. Pelo pai, por ele mesmo, pela Austrália. No dia, ele não ganhou, mas chegou em terceiro. Não texto de Alexandre Borgeslevava o ouro, ficava com o bronze. Cortou a meta de lágrimas nos olhos, só ele e os deuses. Subiria ao pódio, teria a bandeira por trás, olharia o céu ou o chão, como quisesse ou se sentisse capaz. Mas, instantes depois, no mundo paralelo das redes sociais, já se tinha escrito de tudo: que ele era um fracasso, que estava acabado, nem devia ter corrido, medalha de bronze?, o pai teria vergonha dele.

Não sei se foram as redes sociais, então apenas na infância, os jogos de computador, a televisão, toda a forma de realidade virtual, o conforto em geral de uma sociedade que atingiu o zénite do conforto e da segurança, aquele em que se queixa de ter de ficar no sofá enquanto alguém resolve o problema de um vírus mortal que circula pelo mundo, e que, portanto, naturalmente, a seguir tinha de começar a cair. Penso que é nessa queda vertiginosa que nos encontramos hoje, a meio dela, apenas. Mas sei que, naquele dia, me ficou claro que tínhamos começado a perder a capacidade da empatia – e que nada se avistava no horizonte que nos pudesse fazê-la recuperar tão cedo.

Por estarmos longe, por não vermos o efeito das nossas palavras na expressão do rosto do outro, por estarmos anestesiados de tantas histórias e imagens com que nos bombardeamos ou, hoje, por já nem sabermos distinguir o verdadeiro do falso, o mais frágil dos indivíduos consegue tornar-se no mais perigoso, no mais contundente, no mais frio dos juízes. Julgamos acontecimentos, pessoas, vidas, culturas e épocas inteiras, em poucos segundos – e sentenciamos a seguir, como se fôssemos biologicamente obrigados a dar uma opinião sobre tudo, sob pena de deixar de existir, caso nos entreguemos à insignificância de ficar em silêncio. O julgamento, esse, é frequentemente uma condenação ao degredo, ou tentativa disso, dos que temos por pecadores, rejubilando com a sensação de poder que, subitamente, nos deixaram nas mãos. Nietzsche explica.

No nosso cinismo, no nosso relativismo de quem julga que tudo leu e tudo sabe, no moralismo enervante em que caímos depois de ter abatido todas as autoridades morais, e, finalmente, na absurda guerra de trincheiras armada em ideológica para que tombámos talvez de forma fatal, perante os acontecimentos dos últimos dias em Israel e na Palestina conseguimos ficar entretidos a apontar o dedo. Em vez de ajudar, chorar ou, ao menos, ficar calados. O Hamas matou à traição centenas de civis, assassinou famílias inteiras, raptou idosos e crianças, e a primeira reacção de meio mundo bem sentado longe de tudo foi dizer “ah, mas Israel”. Se estivessem ali, nas redondezas, talvez tivessem entrado nas casas, com cuidado para não sujar as sapatilhas de marca nos rastos de sangue, na esperança de ainda encontrar alguém vivo para os ouvir dizer: “epá, lamento imenso, mas sabe? A culpa foi vossa”.

A estes puros, a estes adiantados mentais armados de conhecimento e ética que, aparentemente sem se aperceberem, dão cobertura aos mais sanguinários ditadores e respectivos acólitos do nosso tempo de vida, importa mais debitar a sua razão do que qualquer espécie de compaixão pelo próximo. Importa a guerra de palavras, porque não estão debaixo da guerra real. Importa aliviar a má consciência de viverem e gozarem de todos os privilégios de viverem na sociedade criada e protegida pelos mesmos regimes e instituições que passam a vida a atacar: a liberdade de expressão, a democracia, a separação de poderes, o direito internacional – até a marca das sapatilhas. O mesmo sucedera já na Ucrânia, mesmo que de forma mais envergonhada – e, fazendo um exercício de memória um pouco maior, já no 11 de Setembro (e com esse dado, ilibamos, definitivamente, as redes sociais, que então ainda não existiam, da autoria moral da queda. Não serão mais do que ferramentas, perigosas, mas dependentes da mão que as manipular).

De resto, a partir do primeiro “ah, mas”, já não há nada que se possa fazer. Ficamos à mesa a esgrimir contextos, atenuantes, justificações, contradições. À mesa, no mural da rede social, na caixa de comentários do jornal, na televisão. O importante é desmascarar a pretensa agenda escondida do outro, a geopolítica, os interesses. Acharmos, firmemente, que somos os bons contra os maus (que idade julgamos que temos, afinal?).

Enquanto isso, no terreno, Israel deixa uma população inteira à fome, à sede e sem medicamentos, o Hamas publicita os vídeos das suas torturas para disseminar o ódio em que medram todos os movimentos terroristas, um míssil faz explodir um hospital e mata 500 pessoas, esquecemos a Ucrânia e, antes dela, as guerras que a Ucrânia já nos tinha feito esquecer, e nos tornamos, todos, todos os dias, notícia após notícia, comentário após comentário, ainda um pouco mais indiferentes, ainda mais odiados e odiosos, ainda mais desumanos.

Se não vamos pegar numa arma nem correr para salvar a vida de alguém, porque é que, ao menos, não mostramos algum respeito pelas vítimas e nos calamos? Seria um bom primeiro passo para reaprendemos a ouvir. E a sentir algo mais do que os apetites da nossa formidável soberba.

AS PEQUENAS COISAS     OBSERVADOR

COMENTÁRIOS:

Paulo Nunes Do Rosário:  Isso.                  Carlos Chaves: Sigo muitas vezes o seu conselho, caro Alexandre Borges, ficar em silêncio e a pensar como é possível este comportamento com dois pesos e duas medidas quando se trata da vida humana, do extermínio de inocentes à custa do triunfo de agendas políticas abomináveis, no nosso caso como as do PS, PCP, BE, LIVRE e PAN! E pior, como é possível tantos jornalistazecos a seguirem-lhes as pegadas e tentaram convencer-nos que este é que é o lado certo! Muito provavelmente sonham termos o mesmo inferno em Portugal!                   MF A: Brilhante e muito lúcida. Obrigada.                 João Floriano: Texto fabuloso que divide a culpa por todos nós. Ontem Paulo Raimundo espumando o ódio da sua ideologia jurássicocomunista acusava Israel pelos acontecimentos no Médio Oriente. Qualquer atrasado mental que o ouvisse (e só um atrasado mental ou um ignorante profundo  o consegue ouvir sem vomitar), pensaria que no dia 7 de outubro, Israel tinha acordado de mau humor e vá de começar a lançar bombas para a faixa de Gaza, tal e qual como um psicopata delinquente adolescente faz pontaria com uma pressão de ar aos pobres gatos no terreno baldio ao lado da sua casa. O mundo está um local muito feio, muito mau e sobretudo muito esburacado, mas calar não pode ser opção. Isso foi o que se fez durante tempo demais, deixando correr, moderando as nossas opiniões com o politicamente correcto. O resultado está à vista. a derrocada da Europa.             AndradeBG: Sim, no final do dia a sociedade evolui em acordo com as suas prioridades e valores. Acontece que nas últimas décadas  têm-se invertido os valores que garantiam a superioridade moral, de facto e maioritariamente reconhecida, de quem individual ou colectivamente agia coerentemente com esses valores. Houve tempos em que se faziam e cumpriam negócios por simples palavra, hoje só se cumpre quando o prejuízo do não cumprimento se adivinha maior do que o de o cumprir. Houve tempos em que a atenção e reconhecimento iam para quem trabalhava, sacrificava e acrescentava valor, hoje esse reconhecimento vai para os hedonistas deste mundo. Houve tempos em que se rezava aos deuses a quem se agradeciam as benesses e se pedia perdão pelas desgraças, hoje celebra-se um qualquer deus de momento a quem não se atribui em troca qualquer responsabilidade enquanto se acusa o "ocidente" de todos os males reais e imaginários.  Não é assim de espantar que perante uma explosão no hospital em Gaza, mais que o "O Hamas e o ah" se tenha verificado a adesão à versão que mais convém a este ódio ao culpado do costume, o "ocidente". Acontece que esta irrazoável e fatal narrativa dos males do mundo serem  não só de responsabilidade dos países com maior grau de liberdade e justiça, mesmo que não pudesse ser evitada, foi facilitada pelos "ah" que constantemente se apresentam. Seria talvez vantajoso que se começasse a queimar as regras e regrinhas que a cada segundo são decididas por interesses conjunturais e muitas vezes ilegítimos, para voltar a  fazer valer os princípios a que ninguém se atreve a verbalizar oposição, a não ser os que defendem a morte e extinção de outros.  Relativamente a esses não haveria, então, qualquer "ah" a acrescentar                  Lápis Afiado: Muito bem descrita a situação de miséria moral que nos atinge... ah mas ....estamos a caminho do fim da civilização judaico cristã...depois será o reino das trevas                antonyo antonyo > Filipe Pereira: Não houve míssil e não foi no hospital. São factos.

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