Com rigor, sem parti pris. Jaime Nogueira Pinto o faz, para bem do saber.
Hamas contra Israel: a mãe de todas as guerras
Não é fácil emitir juízos eticamente
correctos, quando os “tigres esfaimados” tomam conta do processo.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 14
out. 2023, 00:1936
“Os
povos transbordam de ambição, como tigres olhando a presa, ávidos de agarrar
qualquer oportunidade entre as ruínas da velha ordem.”
É com estas palavras, bem diferentes das
judiciosas observações analíticas do seu histórico conterrâneo Sun Tsu, que o
Professor Zeng Yonguian resume o estado de espírito dos Estados e dos povos
protagonistas da nova ordem mundial.
Zeng é um
politólogo chinês com um currículo distinto, um PhD em Princeton e actividade
docente em Harvard, Nottingham e Singapura. É
considerado um dos maiores especialistas em política chinesa, sendo autor de
uma tese sobre o Partido Comunista Chinês, que ali surge como uma espécie de
Príncipe maquiavélico colectivo. Actualmente é Professor na Universidade Chinesa de Hong Kong – Shenzhen, e tem
insistido em que a China de
Pequim é o grande vencedor do conflito da Ucrânia, que
veio hipotecar, num braço de ferro sem fim à vista, as democracias da NATO e a
Rússia de Putin.
O que aconteceu na madrugada de
Sábado 7 de Outubro, com o ataque-surpresa de milhares de militantes do Hamas a
Israel a partir da Faixa de Gaza, com a morte de centenas de judeus e
não-judeus – incluindo mulheres e crianças – surpreendeu e indignou o mundo
euroamericano. As vítimas
foram barbaramente executadas, numa acção que aboliu qualquer distinção entre
civis e militares, e que parece enquadrar-se bem no cenário descrito pelo
professor chinês – com os povos e bandos políticos agindo como tigres vorazes e
destruidores, numa nova selva geopolítica.
Não vale a pena alongar-me em
considerações sobre o horror destes ataques, sem respeito algum pelo Direito da
Guerra (a introdução de regras em conflitos de vida e de
morte, que foi uma das mais notáveis conquistas da Humanidade); nem
procurar uma salomónica sentença sobre quem tem razão ou razões. Vou antes
tentar olhar friamente e com a objectividade possível a situação e os
seus protagonistas.
Os
judeus, único povo milenar, sobrevivente a dois mil anos de Diáspora e
perseguições (a última, no século passado, quase os exterminou na Europa),
ganharam a sua estatalidade a partir da fundação do Estado de Israel, um Estado
na Palestina, rodeado de povos e governos hostis.
A origem da tragédia
Os arranjos na região fizeram-se com o
fim do mundo eurocêntrico e a transição para a independência e a estatalidade
de vastas regiões da África, da Ásia e do Médio Oriente, que antes tinham
estado ocupadas pelos impérios britânico, francês e turco.
Assim
aconteceu a partir da declaração de Arthur Balfour, secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros de Londres, que, em Novembro de 1917, confirmava o desejo do
governo inglês de garantir aos judeus dispersos por todo o mundo um “Lar Nacional”.
A
declaração constava de uma carta dirigida a Lionel Rothschild, 2º Barão
Rothschild, para que este a transmitisse à Federação Sionista Mundial. O Reino
Unido e a França estavam no Médio Oriente em guerra com o Império Otomano,
aliado da Alemanha kaiseriana, e as potências aliadas queriam mobilizar apoios
e contar com os judeus. Assim, ao mesmo tempo que agentes dos Serviços Secretos
britânicos, como o singular E.T. Lawrence, prometiam aos árabes o poder no
futuro, cooptavam-se também os judeus sionistas. Misérias e glórias imperiais…
Mas o facto é que, depois da terrível
experiência do Holocausto, os judeus sobreviventes e fundadores de Israel
mudaram radicalmente o estilo e o modo de vida: aos comerciantes pacíficos,
massacrados quase em silêncio de geração em geração pelos seus vizinhos espanhóis,
alemães, russos e turcos quando as coisas corriam mal, sucederam jovens
operacionais que foram ganhando as muitas guerras de Israel desde a
independência. A
filosofia pacifista e humanitária, associada tradicionalmente ao povo judeu,
foi substituída por duros códigos patrióticos, preparatórios do enfrentamento
como uma situação de risco permanente. E isto sem diferença para os partidos de
Israel, primeiro os Trabalhistas, hoje os identitários conservadores de
Benjamin Netanyahu e do Likud.
Os israelitas sabem que vivem
rodeados de inimigos e que não podem deixar de estar alerta. Têm também a
consciência da hostilidade que despertam nos vizinhos e sabem que têm de ganhar
todas as guerras e de continuar preparados para elas.
O que, desta vez, foi surpreendente
foi o fracasso dos Serviço de Informação de Telavive em detectar uma operação
de tão grande escala; a falha de prever e seguir um movimento que envolveu uma
grande quantidade de pessoas e meios do lado atacante. Como foi possível que tivesse passado despercebido?
Mas passou, pondo em causa todo um
movimento de pacificação e normalização regional que se consumava com a cimeira
saudita-iraniana, auspiciada pelos chineses; cimeira que tinha sido precedida
pelos Acordos de Abraão, pressionados pela Administração Trump.
É por demais sabido que Israel possui
a bomba atómica e não hesitará em retaliar se vir a sua segurança ameaçada. Só
que agora, ao contrário do que aconteceu no Yom Kippur, em 1973, o ataque não
foi perpetrado por exércitos de Estados independentes, mas por bandos,
milícias, terroristas que, à vista desarmada, parecem pessoas com pouco ou nada
a perder.
Será
que o excesso de confiança nos meios tecnológicos marginalizou a
tradicional Humint israelita, considerada excepcional no controlo dos
palestinianos? O permanente levantamento dos agentes da Mossad que,
sistematicamente, procuram no território de Gaza gente com dificuldades
económicas ou com segredos obscuros, vulneráveis a uma abordagem pelos Serviços
Secretos israelitas, parece desta vez ter falhado. E é curioso que falhe nos
50 anos da guerra do Yom Kippur, outra guerra em que Israel ficou também muito
mal, perante o ataque coligado dos Egípcios e dos Sírios.
Segredos e surpresas
Há 50 anos, dias antes da ofensiva
árabe, o rei Hussein da Jordânia fizera uma secreta visita-relâmpago a Israel e
avisara a primeira-ministra Golda
Meir do risco e iminência do ataque. O aviso de
Hussein não foi levado muito a sério e Israel
correu sérios riscos de derrota, a que escapou graças também a uma maciça ajuda
militar norte-americana. Desta vez foi pior, em número de vítimas e em
escalada de terror, apesar do ataque de 73 vir de dois exércitos regulares, o
Egípcio e o Sírio. Desta vez são muitas centenas de irregulares
palestinos desesperados.
Israel, neutralizado pela surpresa, vai
agora querer retaliar de forma dura para, por uma vez, dissuadir todo e
qualquer vizinho de semelhantes veleidades. A ofensiva do Hamas veio também pôr
em causa o que vinha sendo construído para a
reconciliação – como o diálogo Irão-Arábia Saudita e os Acordos de Abraão.
Também Riad vai ter dificuldade em prosseguir os seus contactos, abertos ou
discretos, com Israel.
Esta ofensiva pode ter sido perpetrada contra a linha de
conciliação, precisamente para a neutralizar: serão os governantes de
Teerão, os mesmos que se comprometeram a
começar a reconciliação com os Sauditas, suspeitos? Ou terá sido uma iniciativa do Hamas,
aproveitando a crise política interna de Israel, com o governo de Netanyahu sob
pressão, e a situação internacional, com os Estados Unidos empenhados na ajuda
à Ucrânia? Nisto estariam a seguir exemplos
recentes, como a ofensiva do Azerbaijão no Nagorno-Karabakh, com o êxodo da
população arménia.
Os
“tigres raivosos” parecem, assim, estar à solta. Perante a
previsível radicalização, os homens de
boa vontade e sentido de justiça serão, certamente, marginalizados, relegados
para as bancadas, para assistirem a um massacre cruzado em que inocentes
não-combatentes, de um lado e de outro, vão sendo sacrificados.
Realisticamente, a solução de dividir o território palestiniano em dois
Estados poderia ter sido a ideal; mesmo para Israel, na medida em que é
preferível ter um inimigo com estatalidade, isto é, como “nação politicamente
organizada”, do que grupos armados que enquadram populações marginalizadas. Era
essa a solução inicial de partilha aprovada pelas Nações Unidas em 1947, antes
da primeira guerra israelo-árabe, de 1948-1949. Guerra que Israel venceu.
Em 1967, na Guerra dos Seis Dias,
Israel alargou o seu controlo à faixa de Gaza, à margem ocidental do Jordão e
Jerusalém Oriental. Em 1964
tinha sido criada a OLP (Organização de Libertação da Palestina) de
Yasser Arafat; veio depois a primeira Intifada, a revolta
dos palestinianos sob governo israelita. Seguiram-se
as negociações secretas em Oslo, com vista a uma paz sedimentada na solução dos
“dois Estados”, mas o obreiro da aproximação, pelo lado de
Israel – o primeiro ministro Yitzhak Rabin – foi assassinado por um extremista
judeu.
Com a morte de Rabin, o processo de
entendimento sofreu um golpe decisivo e, a partir daí, os extremistas dos dois
lados ganharam a condução da escalada: os Acordos de Camp David foram postos em causa, os líderes da
aproximação, como o presidente egípcio Anwar Sadat, foram eliminados e a retórica e a radicalização no terreno auto-alimentaram-se. A
Autoridade Palestiniana foi, na Faixa de Gaza, marginalizada pelo Hamas.
Não é fácil, nestas circunstâncias,
emitir juízos eticamente correctos, quando os tigres esfaimados tomam conta do
processo; a selvajaria dos militantes do Hamas sobre os civis
israelitas leva o governo de Telavive – que se deixou surpreender pela ofensiva
– a mostrar-se igualmente feroz na reacção. E
não vai ser fácil agir com conta, peso e medida sobre um território
relativamente exíguo, onde se apertam mais de dois milhões de pessoas que vão
ser bombardeadas e a quem foi já cortada a água, a electricidade e o pão de
cada dia.
A
minha convicção foi sempre a de que a solução dois Estados era a que melhor acautelava os interesses dos
contendores, dos governos e dos povos. A estatalidade e a responsabilidade
inerente às instituições do Estado acabam por ser as que melhor garantem amigos
e inimigos. Foi esta solução que, no Cairo, os ministros dos
Negócios Estrangeiros da Liga Árabe vieram propor outra vez a Israel, numa
tentativa de parar a escalada da confrontação, que levará fatalmente a novas
carnificinas e a novos horrores, ironicamente, nas terras onde Deus se revelou
aos homens, por onde Jesus andou e onde se fixaram as religiões do Livro.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA CONFLITO
ISRAELO-PALESTINIANO MUNDO ISRAEL MÉDIO ORIENTE
COMENTÁRIOS (de 36):
Fernando Cascais: Excelente e
professoral como sempre, não obstante, assalta-me a dúvida como seria possível
os palestinianos liderados por um grupo terrorista como o Hamas formarem um
estado. No papel, a solução parece óptimo, na realidade é uma utopia. O
Hamas formar um estado com assento na ONU, seria comparável a ensinar um
tigre-de-bengala a comer sushi… com pauzinhos, ou obrigar o Ronaldo a jogar
à baliza. Os palestinianos não querem uma cadeira na ONU, querem uma bomba
atómica para destruírem Israel, mesmo sabendo que a explosão também os mataria
a todos. João
Floriano: A solução dos dois estados, que é na
realidade a mais óbvia, cai por terra porque a Palestina nunca poderá ser um
estado estável. Veja-se o que aconteceu entre a Autoridade palestiniana e o
Hamas. Nas favelas do Rio de Janeiro, os cartéis da droga é que mandam.
As coisas não são muito diferentes em Gaza. Quem manda é quem tem o poder das armas e esse
poder está com o Hamas. A Autoridade palestiniana não risca nada. Recebe o
dinheiro do Ocidente que depois é aproveitado pelo Hamas para acções
terroristas, ou seja, o Ocidente paga para ser degolado. Entretanto Zeng está
com a razão. A China é o tigre de todos os tigres que só espera o momento
certo para saltar sobre Taiwan. José Tomás: Ao décimo-terceiro artigo de opinião no Observador
sobre este assunto, finalmente um que não se limita a exprimir a ira dos justos
e a injuriar os ímpios e que pretende contribuir para perceber o que se passa e
o que é preciso fazer para sair deste ciclo de barbaridade terrorista e
retaliação brutal. Jorge Carvalho: Muito obrigado, JNP, pelo seu resumido esclarecimento
histórico que muito nos ajuda a compreender a realidade actual. Rui Lima: Os judeus, como povo perseguido ao longo da
história, souberam desenvolver talentos únicos como instinto de sobrevivência .
Nunca é demais dizer que foi o povo que mais deu à ciência a lista de prémios
Nobel e nas matemáticas o dizem, há povos que prometiam muito mas há 1000 anos
que depois só deram desgraças ao mundo . O prémio
Nobel mais controverso de todos os tempos, o da química de 1918, para Fritz Haber, alemão judeu que deu e dá de
comer ao mundo, com a sua descoberta, poucos lembram. Sem ele, teria sido a fome generalizada, mas também
matou muitos com o seu gás “perfeito” para a 1ª guerra . Nunca esquecer que os primeiros a utilizar o gás
foram os Franceses, mas ia para os pés ou para a atmosfera, o do Fritz era
eficaz . A perseguição aos judeus ė um disparate. Portugal perdeu muito,
os árabes só tinham a ganhar, hoje seriam países desenvolvidos com a ajuda
deles, eles são patriotas nos países onde vivem e lutaram por eles , o exemplo
Fritz Haber era um patriota exemplar alemão condecorado na 1.ª guerra (morre
em Berna, perseguido pelos nazis ). O mundo deve deixar de perseguir judeus
e beneficiar do seu saber, até à minha volta sinto ódio aos judeus, mesmo os
amigos da esquerda moderada têm sempre um mas.
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