São também muito responsáveis pela difusão
indiscriminada da violência, quer no capítulo cinematográfico, com filmes de
guerra ou de sexo, que a banda desenhada pontua violentamente, com armas, matanças,
perseguições, cenas de alcova, num dinamismo sem tréguas, e sem controlo
disciplinar, com reflexos sobre o ser humano, criado no desrespeito, desde a
mais tenra idade, sobretudo nos países de tacanhez ou sectarismos parolos…
Terrorismo e modernidade
Os movimentos terroristas têm
inspiração religiosa ou separatista, mas sempre com fortes pontes com
ideologias de extrema-esquerda com quem têm em comum a recusa do modelo das
democracias liberais.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA, Colunista
OBSERVADOR, 17 out. 2023, 00:1710
“Onde não há lei, não há liberdade”, John
Locke
O debate em torno da natureza humana
é uma pedra angular da filosofia política ocidental. Rousseau e Hobbes, nas
suas visões contrastantes, foram instrumentais na formação do pensamento
moderno sobre o Estado, a sociedade e o comportamento individual. As suas
ideias, embora divergentes, foram centrais nas discussões sobre as origens da
sociedade e o papel da governação.
Com
uma visão mais “pessimista”, Hobbes
argumentou, no seu Leviatã,
que num estado de natureza (ou seja, sem qualquer autoridade governante), as
pessoas serão essencialmente egoístas, brutas e movidas apenas pelo desejo de
auto-preservação. Nesse estado, a vida seria “solitária, pobre, desagradável,
brutal e curta”. Para Hobbes, a paz e a ordem só existirão se e na
medida em que as pessoas estejam disponíveis para renunciar a certas liberdades
e a submeter-se à autoridade de um poder soberano. O Leviatã, seja na forma de um monarca ou de qualquer outra
autoridade, manterá eventualmente a paz e a ordem, protegendo os indivíduos do
caos do estado de natureza. Contrariamente a Hobbes, Rousseau defendeu que as pessoas, no seu
estado natural, seriam essencialmente boas, pacíficas e viveriam em
harmonia. Rousseau cunhou o
termo “bom selvagem” para
descrever essa bondade inerente da humanidade no seu estado puro. Argumentou
ainda que, à medida que as sociedades se desenvolvem e se tornam mais
complexas, introduzem desigualdades, propriedade e competição, factores que
corrompem a bondade inerente dos bons selvagens. Assim, muitos dos problemas da
sociedade não serão resultado da natureza humana mas das estruturas sociais em
si. Daí que Rousseau tenha defendido que os governos mais não são do que
compromissos entre os que integram uma dada comunidade, onde as pessoas se
entendem para formar um contrato social,
não por medo, como Hobbes sugeriu, mas para proteger a “vontade geral” colectiva do povo.
A verdadeira autoridade, segundo
Rousseau, residirá na vontade colectiva dos cidadãos.
A modernidade, especialmente a
partir do Iluminismo, sem resolver ou clarificar se os homens nascem bons,
sendo depois corrompidos pelas estruturas sociais, ou nascem maus, sendo depois
moldados pela vida em comunidade, introduziu uma série de conceitos políticos
que reformularam a compreensão sobre a governação, os direitos individuais e a
organização societal. A Revolução Francesa (1789-1799) destaca-se
por ser o momento mais emblemático desta transformação, sublinhando a transição
de formas tradicionais de governação baseadas na monarquia hereditária e no
direito divino para aquelas fundamentadas nos princípios da liberdade, igualdade e legalidade (?).
É a partir da modernidade que nasce a concepção de Estado de Direito
que sobrevive até hoje, que tornou consensual em largas zonas do planeta que
todo o indivíduo, independentemente do seu estatuto ou posição, deverá estar
sujeito à lei, de forma uniforme. É a
modernidade que traz a separação de poderes e distribui as funções
governamentais entre o legislativo, executivo e judiciário, assente
num sistema de freios e contrapesos, que visam evitar o abuso de poder e
proteger os direitos individuais. A modernidade trouxe também o
laicismo e a ideia de que o Estado deverá permanecer neutro em questões
religiosas. É, finalmente, com a modernidade que se consolidam as liberdades
civis e os direitos fundamentais, que afirmam que todo o indivíduo possui
direitos inerentes que não podem ser infringidos pelo Estado ou pelas
estruturas sociais.
A governação moderna superou os debates sobre a natureza humana (como visto na dicotomia Rousseau-Hobbes), para não depender unicamente da boa vontade ou
benevolência dos indivíduos. Em vez disso, o Estado Moderno está estruturado em torno
de princípios e instituições projectadas para garantir a justiça, a equidade, a
liberdade, o pluralismo, e os direitos individuais. Uma
mudança em direcção a uma governação sem inspiração divina ou teocrática
implica que a protecção dos indivíduos e dos seus direitos não fica ao sabor
dos impulsos humanos, mas está ancorada em leis codificadas e direitos
fundamentais que são defendidos por instituições, independentemente das visões
sempre em evolução sobre a natureza humana.
Ora, milhões de mortos depois, em pleno século XXI, continuamos a
assistir a tensões relevantes entre as sociedades contemporâneas, moldadas
pelos princípios da modernidade, e as que, paradoxalmente, continuam a
alimentar visões pré-modernas, teocráticas e inimigas das liberdades mais
básicas. Um dos expoentes
máximos dessa tensão é fomentada pelo sucesso de grupos terroristas que
defendem ideologias ancoradas na violência. Tais grupos tentam legitimar as suas
acções em filosofias que resultam da combinação de interpretações históricas,
culturais e, por vezes, religiosas muitas vezes artificiais e deturpadas e que
desalinham das normas globais contemporâneas. As ideologias terroristas promovem sistemas hierárquicos de base
totalitária, têm como objectivo suprimir certos grupos e defendem a violência
como meio legítimo para atingir os seus objectivos. O terrorismo, porém,
não é apenas uma táctica, mas uma estratégia deliberada para induzir medo,
desestabilizar sociedades pacíficas e desafiar a modernidade e as conquistas do
Estado de Direito. Atacando de forma selvática civis e o direito humano
mais básico – o direito à vida –, estes grupos exibem com clareza o seu
desprezo pelos valores acarinhados nas democracias modernas e nas sociedades
mais evoluídas. Não é à toa que os grandes movimentos terroristas têm
inspiração religiosa ou separatista, mas sempre com fortes pontes com
ideologias de extrema-esquerda com quem apenas têm em comum a recusa do modelo
de sociedade em que hoje vivem as democracias liberais.
Responder ao terrorismo é um desafio multifacetado. Uma resposta militar ou securitária,
embora por vezes necessária, não é suficiente.
Num conflito que é, sobretudo, civilizacional, é fundamental que não nos
deixemos capturar pela lógica de barricada das represálias indiscriminadas ou
da restrição das liberdades civis dos que estão sob a alçada dos terroristas, e
que mais não são do que os instrumentos do seu fanatismo. Conflitos
com grupos enraizados na violência e com concepções pré-modernas dos direitos
individuais testam a resiliência dos sistemas democráticos modernos.
É por isso que nesta altura não
podemos deixar de traçar uma linha
entre Israel e o mundo de eventuais “bons selvagens” que protege os terroristas
do Hamas. Israel, desde a sua fundação, soube evoluir
para se tornar no que é hoje: uma sociedade moderna, plural, laica, e defensora
das liberdades individuais e dos direitos fundamentais. Seguramente que há na democracia israelita inúmeras
falhas, que devemos sempre sinalizar, mas o que é certo é que, nas suas
fragilidades, Israel vive sob o império da lei, num quadro de uma sociedade
plural e vinculada na defesa dos direitos individuais, lutando contra grupos
que jogam segundo as concepções e as regras da pré-modernidade. Israel deve
merecer o nosso apoio, não de barricada, mas um apoio exigente, pois é na
recusa do Hamas e de tudo o que ele simboliza e esconde, e na afirmação dos
Estados de Direito modernos, livres e plurais, que está a única – e difícil –
solução para um conflito que já não tem, hoje, os fundamentos de
14 de maio de 1948. As últimas semanas
mostraram-nos, porém, de forma brutal, que há largas zonas do Planeta que ainda
recusam a modernidade. Há, por isso, um conflito que não é apenas
militar, que não se limita geograficamente às fronteiras de Gaza, às montanhas
do Líbano, ao Mar Morto ou ao rio Jordão, mas civilizacional, do qual não
deveríamos prescindir, por comodismo ou medo, sob risco de voltarmos a viver um
tempo em que as ideias de Rousseau e Hobbes se tornem de novo relevantes.
TERRORISMO MUNDO DEMOCRACIA SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS (DE 10)
HUGO BELCHIOR:
Bom artigo, que ajuda a
compreender o que se passa e que alerta, e bem, para nao se cair no relatismo
moral, onde tudo é igual ou igualmente defensável.... GateKeeper > João
Eduardo Gata: Tem a certeza
disso? Parece-me bem que, atendendo à vergonhosa realidade que a Europa vive o
desiderato poderá ser bem diferente. Sofia Pinho: Um artigo muito lúcido neste
momento em que tanto se fala sem conhecimento histórico bem fundamentado.
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