De Helena Matos, com o rigor
de sempre. Infelizmente, sobre o
mesmo tema, que promete continuação.
I.O refém 127
Não sei se quando esta crónica começar
a ser lida já estará a acontecer a entrada dos militares israelitas em Gaza. Só
sei que Israel não pode perder e que muito mudará naquela zona. E aqui na
Europa?
HELENA MATOS Colunista do Observador
OBSERVADOR, 15 out. 2023, 00:30116
Sexta-feira, 13 de Outubro. No centro
da localidade de Arras, em França, pelas 11 horas da manhã, um homem ainda
jovem armado com facas dirige-se para o liceu Gambetta. Cruza-se na entrada do
estabelecimento escolar com Dominique Bernard, professor de francês.
Esfaqueia-o. Bernard cai. Tem dois ferimentos: um no tórax, outro no pescoço.
Morre. Outro professor que o tentou defender fica gravemente ferido. Em seguida
o atacante entra dentro da escola. Grita Allahu Akbar (Alá é Grande). Na escola
há quem fuja. Quem se esconda. Quem o sinta a tentar abrir a porta atrás da
qual se está escondido. Um funcionário da escola é a terceira vítima…
Entretanto a polícia chega. O atacante é detido.
Com os acontecimentos de Israel a
dominarem os noticiários, o acontecido nesta escola francesa passou rapidamente
para segundo plano, mas tal não devia acontecer porque se em Gaza os israelitas
procuram resgatar 126 reféns, nós, na Europa, fechamos os olhos para não ver o
refém 127. Quem é ele? A nossa forma de viver. Como prova à
exaustão o percurso deste atacante, Mohammed Mogouchkov de seu nome. Tem
20 anos. Nasceu da Rússia. É de origem chechena. Depois vai-se sabendo mais:
Mohammed Mogouchkov já tinha sido interpelado pelas autoridades numa
investigação de terrorismo. Era seguido pela polícia que conhecia a sua
radicalização. Estava classificado como S, ou seja, pessoa que é um risco para
a segurança.
Depois chegam mais elementos sobre
Mohammed Mogouchkov: sabe-se que chegou a França em 2008; que o pai
também está classificado como S, que um dos seus irmãos está preso por se ter
envolvido numa tentativa de atentado e, não menos importante, constata-se que
ele já não estaria em França caso as autoridades tivessem cumprido a lei em
2014.
A família de Mohammed Mogouchkov
esteve para ser expulsa em 2014, mas no momento do embarque os pais de Mohammed
Mogouchkov, acompanhados dos seus cinco filhos, recusaram entrar no avião que
os levaria para a Rússia. Entretanto várias associações ditas de apoio aos
imigrantes e refugiados surgem em campo a contestar a expulsão desta família,
que diziam perfeitamente integrada. O ministro socialista Manuel Valls acaba a
anular a ordem de expulsão. Só que a história da integração da família
Mogouchkov no quotidiano francês não passou duma mentira em que provavelmente
só os activistas das associações acreditaram ou quiseram fazer acreditar os
demais: quatro anos depois, 2018. O pai foi expulso por radicalização. Os
irmãos e a mãe continuam a viver em França e a apoiar aqueles que pretendiam
atentar contra a vida de cidadãos franceses.
Ao
longo dos anos em que a família Mogouchkov, agora sem pai, vivia nos bairros
públicos franceses e os seus filhos frequentavam escolas francesas, vários
judeus daquele país tomavam a decisão de deixar a França e os fundamentalistas
islâmicos impunham as suas regras em ruas e bairros. Como
acontece a todos os radicais nas democracias que tanto abominam, também a
família Mogouchkov soube tirar partido do estado social francês e da legislação
francesa: em 2023, Mohammed Mogouchkov já não pode ser
expulso. O professor Dominique Bernard, que ele assassinou quando se cumpriam
três anos após um outro professor ter sido degolado ao mesmo grito de Allahu Akbar,
vai ser evocado em cerimónias que elas mesmas se tornam um pretexto para mais
insultos: só em 2021, um ano após o assassínio de Samuel Paty, registaram-se 98
incidentes nessas homenagens. Ou talvez já nem se ouse conceber grandes
homenagens: a 14 de Outubro, um dia depois do assassínio de Dominique Bernard,
o minuto de silêncio pedido em sua memória e das vítimas dos acontecimentos em
Israel e Gaza não foi além dos 15 segundos tal o tumulto que se gerou no
estádio.
Israel garante que vai fazer tudo para
resgatar os seus 126 reféns. Quem
vai fazer alguma coisa pelo 127º refém?
EXTREMISMO SOCIEDADE ISRAEL MÉDIO ORIENTE MUNDO TERRORISMO
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II - Israel: como
está isto a ser possível?
Como é que um país dotado de um dos
melhores serviços de informação do mundo não detectou que o Hamas estava a
montar uma operação por terra, mar e ar? Não só não se entende como não é
aceitável.
HELENA MATOS
OBSERVADOR, 08
out. 2023, 00:33100
Este é o momento em que a jovem
israelita Noa Argamani é raptada por homens do Hamas. Tinha ido
com o namorado Avi Natan a um festival.
Provavelmente nos primeiros minutos, à semelhança de muitos dos presentes nesse
festival, nem percebeu que aquele som que se fazia ouvir com crescente
insistência não era a música de fundo mas sim tiros. Até que o som de um
rocket desfez o engano. Os homens do Hamas começaram a disparar
indiscriminadamente. Os presentes no festival começam a fugir. Vários
ficam feridos. Alguns, não se sabe ainda quantos, foram feitos reféns. Noa
Argamani é uma das vítimas. Terá
sido levada para Gaza onde é agora uma das várias dezenas de reféns israelitas.
Não é necessário ser especialista em relações internacionais para antever que
será tudo menos fácil o que espera estes reféns, num período que pode ir de
dias a anos, muitos anos até se pensarmos no tempo que Israel demorou a
conseguir a libertação doutros seus cidadãos feitos reféns. E sobretudo há
que ter em conta que neste caso fazer reféns foi um objectivo
deliberado. Logo às primeiras horas do ataque,
começavam a chegar fotos e vídeos daquilo que os homens do Hamas procuravam
acima de tudo: reféns.
Nas casas, nas ruas ou num festival disparavam para matar mas também para
conseguirem reféns. O Hamas vai ter uma valiosa moeda de troca
para os próximos anos.
Como foi ou melhor dizendo
como está isto a ser possível? — esta é a primeira e mais óbvia reacção perante
as imagens e notícias que chegam de Israel. Como é que um país dotado de um dos
melhores serviços de informação do mundo não detectou que o Hamas estava a
montar uma operação por terra, mar e ar? Não só não se entende como não é
aceitável.
O apoio do Irão pode explicar a eficácia do Hamas mas não justifica
o falhanço de Israel. Não há como
iludir a questão: houve aqui uma falha monumental por parte das
autoridades israelitas. Uma falha tão mais grotesca quanto por estes dias se
assinala meio século sobre a Guerra do Yom Kippur, cuja recordação é
indissociável da forma como nesse longínquo (mas afinal tão próximo!) ano de
1973 Israel foi apanhado de surpresa perante o ataque de vários países árabes. Sim, agora, em Outubro de 2023, Israel tem fortes
contingentes militares deslocados na Cisjordânia. Também terá confiado demais
na segurança proporcionada pelo muro que construiu na fronteira com Gaza e que hoje
foi derrubado com simples escavadoras. Mas a isto que não é
pouco mas não é de modo algum suficiente para explicar o que está acontecer por
estas horas em Israel, há que juntar o momento de deslaçamento que se vive
nas sociedades democráticas: longe de procurarem resolver os problemas dos
povos, os governantes assanham-se em agendas que interessam sobretudo a eles
mesmos. Isto é válido para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu, e a sua reforma da justiça que
dividiu inutilmente o país. Ou para os dirigentes da UE e a
forma como impõem o que designam como agenda climática.
Este
desfoque da realidade é invariavelmente acompanhado duma sobrestimação de si
mesmos e das suas capacidades de análise e persuasão: o Israel de Benjamin Netanyahu que se
deixou surpreender pelo Hamas garantia que o Hamas não tinha interesse em
escalar o conflito e está no mesmo paradigma de arrogância de Angela Merkel e
demais dirigentes europeus quando consideravam ter controlado Putin por lhe
estarem a comprar gás. Nunca é por
demais lembrar que entre as ideias mais perigosas do mundo se contam duas
crenças infelizmente muito populares: a primeira é aquela que reduz a pessoas loucas ou
estúpidas aqueles que não pensam ou agem como nós. Ora um
terrorista não é estúpido e muito menos louco. Antes pelo contrário é alguém
que antecipa, planeia e controla. A
segunda crença, tão ou ainda mais perigosa que a anterior, é a que considera
que aquilo que para nós não é lógico também não o é para os demais,
particularmente quando esses demais são nossos inimigos. Tenhamos a humildade e a sagacidade de admitir que
Putin ao invadir a Ucrânia ou o Hamas ao atacar Israel têm lógicas que não são
as nossas mas que não deixam por isso de ser racionais. Há também uma terceira crença, ainda mais perigosa que
as anteriores, que é aquela que garante que
não há inimigos. Ou que
havendo devemos fazer de conta que não existem e sobretudo que não têm quem os
apoie, muito menos entre nós. Para os devotos deste negacionismo chamo a
atenção para que em Londres, o ataque a Israel foi celebrado na rua como se se tratasse de
uma festa. Em Berlim idem. Na Grécia, num campo de requerentes de asilo na UE festejou-se o ataque
gritando Alá é Grande. O mesmo grito se fez ouvir em Cachan,
França, diante duma associação cultural israelita…
O que está a acontecer agora mesmo em
Israel leva-nos aos fantasmas que esperávamos ter exorcizado. Mas eis que num
ápice já por aí andam.
ISRAEL MÉDIO
ORIENTE MUNDO OCIDENTE
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