Também.
Intervalo
Os “escritores do domingo” escrevem
por paixão, por curiosidade, necessidade de saber até onde irão. Talvez para
compreenderem mais sobre si mesmos, talvez por solidão. Escrevem. Quem lê? Logo
se verá
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista,
colunista do Observador
OBSERVADOR, 02
out. 2023, 00:227
1Saí da estreia do “Sonho de Uma Noite de Verão” no
Trindade (oh maravilhoso Shakespeare!) com vontade de lá ter ficado, pedindo
bis: que os actores voltassem ao princípio e recomeçassem tudo outra vez.
Dias depois tive mesmo de procurar Diogo Infante, para lhe fazer duas ou três perguntas,
o espectáculo era isso que (me) pedia: como partira ele para “aquela”
encenação, como conseguira tão feliz sintonia entre verbo e gesto, música e
dança? E como se opera para que
quase instantaneamente, quase automaticamente, se cruze do palco para a plateia
e do público para os actores uma tão forte empatia, física, palpável, como se
todos, fossemos um só todo?
Uma vez titulei um crónica onde falava
de uma outra performance de Diogo Infante como “Puro Teatro”, hoje apetecia-me repeti-lo. Estava-se, naquela noite
no Trindade, em estado de puro teatro.
É certo que se tratava de Shakespeare ,
o que pode ser quase meio caminho andado quando alguém sabe ser “porta voz” do
génio. Diogo Infante sabe. Não só por
o conhecer bem, tê-lo lido, estudado, visto, interpretado (e também nesta
mesmíssima peça); não só pela versatilidade e qualidade do seu talento mas
porque há muito o habitava uma “certeza”: um dia “tinha que regressar a esta
peça”.
Voltou agora como encenador após dois
anos sonhando com o “Sonho”. Lendo-o,
e relendo-o mas desta vez “idealizando-o musicalmente”. Imaginando como iria a
música agir e interagir com a magia e a fantasia do texto. Com o amor, o
capricho, o ciúme, o despeito e tutti quanti, cantados e dançados. Em português.
Com os diálogos à sua frente, Diogo ia
fazendo uma play list de canções portuguesas umas mais recentes, outras menos.
E de repente dava consigo, com um humor espantado: “mas que bem que isto calha
aqui no texto”. E depois também calhava ali e depois ali e ali: nascia uma articulação mais que perfeita –
subtil, leve, cómica, graciosa, amorosa – entre a representação, a musica, a
cenografia. Tudo estava certo.
O “Sonho” transformava-se em realidade.
Shakespeare no seu melhor, Diogo Infante no melhor da sua inteligência cénica.
Talento às golfadas, energia, alegria e empatia também às golfadas. O risco era
grande e duplo? Shakespeare cantado e em português? Não tinha importância: o
poder do desafio foi maior que o temor do erro. Não deve haver melhor
recompensa.
Nota não despicienda: se a
escolha das canções merecem o Óscar da Melhor Escolha, o bosque que abriga o
“sonho” desta poética noite de Shakespeare merece indubitavelmente o Óscar para
o “Melhor Bosque”: um deslumbramento… digital.
2Quem duvida do imenso poder que pode
ter em cada ser humano a descoberta de um livro? O ponto de
partida é sempre interpelante por natureza, a caminhada da leitura naturalmente
oscila: não parar de ler, ter vontade de falar do livro, recomendá-lo aos
amigos, anotá-lo, saber que se voltará a ele; hesitar, deixá-lo para ler mais
tarde, desistir a meio enquanto se vai pegando noutro; detestá-lo, arrumando-o
de vez na estante, entre a desilusão e uma inconfundível impressão de
desperdício de tempo.
Há os autores de cabeceira, os eleitos,
os “adquiridos” para a vida. Os que vamos lendo e amando. E os outros. É como
com as pessoas. Há umas e há outras.
Mas hoje evoco os “escritores do
domingo”. Escrevem por paixão, por curiosidade, por
necessidade de saber até onde irão, por simples gozo. Talvez para compreenderem
mais sobre si mesmos, talvez por solidão.
Escrevem. Quem lê? Logo se verá.
Simpatizo instintivamente com eles, a minha curiosidade redobra, a minha
admiração é genuína.
3Acabo de descobrir dois livros que nada
juntaria não fora em boa hora terem-me ambos vindo parar à mão. “Os Meninos de Palhavã” de Isabel de Lencastre (Oficina do
Livro-Leya). A obra parte de uma boa ideia e conduz-nos a porto seguro: há
muito boa informação histórica, a escrita é ágil, solta, sedutora. Cavalga as
palavras e leva-nos com ela para uma saga pouco conhecida mas muito bem
contada: quem além de historiadores e estudiosos conhece quem eram estes três
“meninos” de vida infausta no nosso século XVIII?
Filhos
bastardos de D João V, viveram larguíssimos anos ostracizados e na penumbra,
arredados da corte e do privilégio. O rei viria a reconhecê-los mas o seu
compromisso escrito e validado nunca foi respeitado pela rancorosa hostilidade
da rainha sua mulher, D. Maria Ana de Áustria e de seu filho, D. José. Só após
a morte de uma e do outro os três irmãos conheceram vida condigna. Um quadro da
nossa História bem pintado com palavras.
O outro livro chama-se “As Minhas Memórias” e o seu
autor, Maximino Alves Martins, é um discreto e estimadíssimo cidadão de Óbidos.
O interesse do livro reside em ser simplesmente as memórias de um homem simples
e o que elas impressivamente dão a conhecer de uma vida num pequeno burgo
rural. Como diz o autor citando Alberto Caeiro “da minha aldeia vejo quanto da
terra se pode ver no Universo…”
É verdade: fiquei a saber coisas que nunca saberia, apreciei as encantadoras aguarelas
sobre salinas, bateiras, a apanha do limo, a pesca à fisga, a sertela; retive
nomes de artefactos nunca ouvidos – malhal, cabaço, pá de valar, podoa, foice
roçadoira, foição –; revi a guerra em Moçambique com este ex-soldado; escutei o
activista da defesa da Lagoa; admirei o servidor constante da Igreja – Maximino
foi ordenado diácono nos Jerónimos em 2004 – e a sua evocação da Semana Santa
de Óbidos, ex-libris da pequena vila branca.
Alonguei-me? Talvez. Este “escritor dos
domingos” merecia-o bem.
LIVROS LITERATURA CULTURA TEATRO
COMENTÁRIOS:
Sata: Discordo da
opinião sobre a peça "Sonho de uma noite de Verão" encenada por Diogo
Infante. Não gostei da peça! Obrigado
pela dica sobre o livro "As minhas memórias" de Maximino Alves M. Hás De Cá Vir: Um dos meninos de Palhavã respondeu ao pedido da mãe,
freira saudosa do filho, para a ir visitar ao convento: - Mãe? Nós, os filhos
dos reis não temos mãe! Nós, os ricos somos assim, gastamos muitas palavras
para dizer coisa nenhuma, que enfado! José Teixeira
de Freitas: MJA: Embora os seus comentários e análises
da vida política sejam sempre muito interessantes e perpicazes, é bom, de vez
em quando, lê-la noutro registo. Obrigado Maria Nunes: Belíssima prosa para começar o dia. Obrigada, MJA. S Belo: Muito bem ! Fernando CE: Que bom ler os seus textos, ora mais Jornalista ora
mais Escritora. Igualmente deliciosos. Alexandre
Barreira: Pois. Cara MJA: Simplesmente......divinal....!
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