quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A véspera


Do 5 de Outubro de 1910. Pela primeira vez vim a conhecer, com esta expressiva narrativa do Dr. LUÍS SOARES DE OLIVEIRA, os acontecimentos da véspera de um dia de que, também resumidamente, conheci outros antecedentes, para sempre impressionada com o aparente envolvimento de Aquilino Ribeiro no assassínio de D. Carlos e D. Luís, em 1908. Do próprio 5 de Outubro de 1910 iniciando a 1ª República, tendo apenas aprendido aquilo que, sobriamente, a História de Portugal da 2ª República permitia percepcionar, na limitação dos temas, por excesso de matérias, além do que conheci através dos meus familiares, contemporâneos desses tempos, ou de dados traduzidos em páginas de escritores. Mas gostei a valer deste relato do Dr. LUÍS SOARES DE OLIVEIRA, com a localização dos acontecimentos dessa véspera do dia que amanhã se celebra – a implantação da 1ª República em Portugal, com Teófilo Braga como presidente interino, Manuel de Arriaga vindo a ser o 1º Presidente da República, meses depois.

 

LUIS SOARES DE OLIVEIRA

9 h

4 de Outubro de 1910:

(do Livro em preparação)

Bivaque em Monsanto

Ao meio-dia de 4 de Outubro de 1910, oficiais e praças do Regimento de Lanceiros da Rainha, sob comando do coronel Alfredo de Albuquerque bivacaram em Monsanto, Luneta dos Quartéis, onde aguardaram ordens para atacar os revolucionários republicanos barricados na Rotunda. Competia-lhes descer a Palhavã, cruzar o Parque Eduardo VII sob fogo inimigo e, por, fim expulsar os revolucionários - não mais de 50 entre militares e civis, insuficientemente armados acicatados por Machado Santos, Mendes Cabeçadas - do estaleiro de obras da estátua do Marquês, O Almirante Cândido dos Reis, o principal cabecilha, tendo pensado que o golpe falhara, suicidara-se. Sá Cardoso e o capitão Pala fugiram.

Entre os oficiais fiéis ao rei figurava o capitão Domingos d'Oliveira, meu avô, a quem caberia papel importante no desenrolar do processo político que decorreu nas duas décadas seguintes. Embora servindo no Regimento dos Lanceiros da Rainha - designação que lhe tinha sido atribuída no Reinado de D. Maria II, - Domingos de Oliveira só tinha tido um encontro com a Rainha e este fora acidental. Aconteceu na Tapada da Ajuda. O Avô tinha mandado fazer arreio e cabresto para um burro no qual montava seu filho Augusto, então com 8 anos de idade, vestido a rigor de chapéu alto, jaqueta, calção e botas de equitador de circo. Assim enfarpelado, Augusto acompanhava o pai nos seus passeios a cavalo pela Tapada. Dª Amélia, que por ali fazia o seu passeio pedestre com reduzido séquito, cruzou-se-lhes no caminho e parou para felicitar o garoto garboso no seu traje. Meu avô de tão emocionado ficou que se esqueceu de desmontar e fazer a vénia à Rainha, como mandava a etiqueta. Teria sido esta a primeira e última vez na vida em que Domingos de Oliveira se sentiu embaraçado.

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Segundo depoimento do coronel Alberto Cardoso dos Santos, então oficial subalterno do Regimento de Lanceiros, no dia 4, em Palhavã, o seu Regimento formou coluna sob comando do general Malaquias de Lemos com Infantaria 1 e o Grupo de Artilharia a Cavalo, de Queluz, este sob comando de Paiva Couceiro. Porém, as ordens que ali receberam não foram as esperadas. Mandaram a coluna seguir para Arroios e daí, já ao cair da tarde, recolher ao Carmo, quartel-general do Governo Militar de Lisboa. A voz de carregar sobre a barricada nunca chegou. Na manhã de 5, ainda no Carmo, a coluna assistiu ao arriar da bandeira azul e branca, substituída por um lençol branco sem as armas reais. Era a rendição.

Teria havido ou não uma intervenção pessoal do cônsul da Alemanha. Porém, segundo Jules Pabon, a ordem de rendição foi dada na madrugada do dia 5, pelo general Carvalhais, então governador militar de Lisboa. Este ter-se-ia limitado a olhar para os soldados da coluna esfomeados pela fome e fatigados pelo falta de sono e comentou: «com esta gente já se não pode aqui fazer nada».

Paiva Couceiro ainda tentou atacar a Rotunda. O general Malaquias de Lemos, comandante da Guarda Municipal, recusou-se contudo a sair com a sua coluna do Carmo. Entretanto, os marinheiros de Mendes Cabeçadas começaram a desembarcar e o povo saiu à rua a festejar antecipadamente a vitória dos revoltosos. Logo, Malaquias mandou içar um lençol branco. Era a rendição Às 7 da manhã cessaram as hostilidades.

Depois veio o "regressar a quartéis". Domingos d'Oliveira chorou mas nada podia fazer. Manter-se-ia para sempre reservado sobre tão melindroso assunto.

Discutia-se ao tempo se tinham sido traidores os políticos e chefes militares da Monarquia - Teixeira de Sousa, Hintze Ribeiro, Vilhena, os generais António Carvalhais, Malaquias de Lemos e outros - por terem deixado triunfar um movimento que saiu para rua com tão pouca gente - na Rotunda estariam uns cinquenta -, com poucas armas e, pior, sem vintém. O jornalista Raul Brandão, debruçou-se sobre a matéria e concluiu que os visados não tinham sido traidores, mas apenas "burros" e isto porque, quando rebentou a revolta, não cortaram a liberdade de movimentos aos cabecilhas da mesma. Ficou a dúvida.

Do pouco que ouvi a meu avô sobre o assunto, fiquei a saber que o filho do conde de Sabugosa, seu vizinho em Alcântara, cavalgou no dia 4 de Outubro, até Mafra para se inteirar da vontade régia. No regresso, parou em Queluz e falou com Paiva Couceiro - então capitão e respeitado herói de África - que ali aprontava a Bataria de Artilharia para seguir para o alto de Campolide com o objectivo de varrer as barricadas da Rotunda. Foi Paiva Couceiro quem, ao chegar a Palhavã, comunicou à restante oficialidade, muito à sua maneira:- «Nada a fazer. O filho da puta fugiu». Referia-se ao rei. Não foram portanto os próceres políticos e militares que decidiram não combater. Terá sido a própria Rainha D. Amélia - a quem o seu filho, então com 20 anos, obedecia - a pessoa que optou pelo desterro.

"Do desterro não há retorno," foi o último comentário que lhe ouviram. Como princesa da Casa de Orleães ela sabia de que estava a falar. Entendeu - como escreveu no seu diário - que nenhum Rei ou Rainha pode reinar com medo do seu próprio povo. Já antes perdera o marido e um filho em defesa da Monarquia; não tinha agora vontade de perder ou sacrificar mais ninguém.

Consta que a última despedida feita à Rainha foi a de uma garota, filha de pescadores, que, já no cais da Ericeira, se atravessou no caminho e ajoelhou á sua frente para lhe beijar a mão. Pode ser lenda, mas talvez não seja. A gente do mar não vai atrás de atroadas e sabe quem é seu amigo. Artesão pescador não alimenta ódios e isto, em grande medida, porque o mar não tem dono. A propriedade da terra criou o ódio entre os homens. No mar, tal não aconteceu. Lá, é o próprio mar e não uma qualquer pessoa quem rege o sofrimento humano.

D.ª Amélia mais não fez do que seguir o conselho de Sun Tzu, o sábio da guerra: "à força opõe o vazio". O tempo diria quem tinha razão. A rainha compreendeu aquilo que Paiva Couceiro não compreendeu: - o uso da violência no caso só poderia servir - se servisse - para ensanguentar o curso independente e previsível da história.

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