domingo, 22 de outubro de 2023

Médio Oriente

 

Análise de Jaime Nogueira Pinto com cujas ilações nem todos os comentadores concordam. Mas o sentido crítico, sobre um mundo a descontrolar-se, está nela contido, na ironia sobre a sociedade por quotas de responsabilidade limitada. De resto, que importam as opiniões dos historiadores, ou dos comentadores, num mundo de animalidade desenfreada, à mercê dos instintos ferozes? Uma análise cuidadosa e objectiva, como sempre, apenas para nossa ilustração, a lembrar Pessoa e o seu SINTA QUEM LÊ”, para nossa recreação, enquanto pudermos vivê-la:

Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

 

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

 

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é,

Sentir, sinta quem lê!

 

Saudades da Guerra Fria?

Embora vejamos ordem num passado que acabou e caos no presente que ainda corre, estamos face ao fim de um mundo relativamente ordeiro, dominado por duas grandes potências que controlavam os seus campos

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 21 out. 2023, 00:1916

Um sinal da transição acelerada para uma ordem mundial multipolar está na multiplicação de conflitos periféricos que se juntam aos principais. E além dos conflitos e da sua dimensão existe outra característica, também singular: o facto de haver protagonistas internacionais – Estados, movimentos políticos e político-militares – que tomam iniciativas e estabelecem alianças contraditórias, numa geometria variável que parece incontroladaE que podem ser, também eles, agentes incontrolados. Assim, o Hamas – o movimento radical sunita que estava dado como moribundo, ineficaz, descartável, não só pelos serviços de inteligência de Israel, mas por outros serviços médio-orientais – lançou bruscamente o mais mortífero dos ataques contra o “lar judaico” na Terra Santa; um ataque que, além das perdas e da humilhação da surpresa, colocou o governo de Telavive perante a alternativa diabólica de ripostar em força – com o risco dos previsíveis excessos. O caso do hospital al-Ahli Arab passou por ter sido um desses excessos ou desastres de guerra, cujo odioso, com razão ou sem ela, caiu sobre Telavive. E imediatamente desencadeou o levantamento da “rua árabe” e o congelamento da reunião dos “moderados” da região com BidenMahmoud Abbas, da Autoridade Palestiniana, Abd al-Fatah al-Sisi, presidente do Egipto, e o rei da Jordânia, Abdullah II. Perante a tensão levantada pelas notícias da bomba ou míssil no hospital, tudo parou.

Saudades da Guerra Fria?

É um novo mundo, ou uma nova ordem no mundo. A Guerra Fria, com o seu bilateralismo bem oleado, alternava as suas fases mais tensas com a tranquilidade da détente, e havia uma certa segurança, transmitida pelos políticos americanos, como Eisenhower, Nixon, Kennedy e Johnson, e pelos burocratas que sucederam a Staline, como Kruschev ou Breznev, gente que ninguém via a correr riscos apocalípticos ou precipitados, num tempo de telefones vermelhos e conversas paralelas, longe do público.

Esse tempo acabou. Embora vejamos tendencialmente ordem num passado que acabou e caos no presente que ainda corre, não podemos deixar de observar o fim de um mundo relativamente ordeiro, porque dominado por duas grandes potências que se vigiavam, equilibravam e controlavam os respectivos campos. Em vez desse mundo bipolar à volta de dois duelistas principais, encabeçando o campo socialista e o campo capitalista, o campo totalitário e o campo liberal, e mantendo a disciplina dos seus apoiantes e clientes, temos agora uma multiplicidade de protagonistas. Protagonistas que são potências político-militares várias, com capacidade de decisão autónoma, com agendas, ora paralelas ora conflituantes, num panorama geopolítico onde se alinham as maiores, como os Estados Unidos, a China, a Índia, todas nucleares, mas disputado por outrasa Rússia, o Paquistão, a Turquia, Israel, a Arábia Saudita; e também o Brasil, a Indonésia, o Japão, e os Estados europeus, a França, o Reino Unido, a Alemanha.

Na confusão

À volta destes Estados principais, agrupam-se as suas clientelas político-militares, culturais, económicas. Já não há alinhamentos ideológicos, a não ser alguns restos nostálgicos da Guerra Fria – como a descrição do Presidente americano das tensões com a Rússia como uma cruzada das democracias contra os “iliberais” ou autoritários, esquecendo talvez que nessa categoria caberia quase todo o Sul Global, a África, o Médio Oriente, e até a América Hispânica, democrática, mas neutralista. E haverá também desenquadrados e tecnologias de destruição maciça à solta.

É por isso que este tempo de transição é um tempo perigoso, com focos de guerra principais mais ou menos consolidados na Europa Oriental e no Médio-Oriente. Só que, aproveitando o empenho e a concentração dos países importantes no conflito principal, NATO-Rússia, os azeris avançaram para resolver a disputa da Nagorno-Karabakh com a Arménia; e, em África, multiplicam-se os golpes militares.

Terá sido o ataque do Hamas sunita inspirado pelos ayatohlas do Teerão shiita? Fará sentido semelhante ruptura num momento em que iranianos e sauditas pareciam em lua de mel nos BRICS, depois de uma inesperada e celebrada reconciliação impulsionada pelos chineses?

Um dos danos colaterais do ataque do Hamas é o fim das aproximações políticas de alguns destes Estados terrivelmente desavindos, que, depois de surpreendentes esforços, como os Acordos de Abraão, podem agora ter de retroceder. A aproximação Arábia Saudita-Israel, provocada pelo “inimigo principal”, o Irão dos ayatohlas, será um deles, já que o todo poderoso Príncipe Herdeiro Saudita, Mohammed bin-Salman, é suficientemente avisado para, no momento em que no mundo árabe soa a hora de solidariedade anti-Telavive, refrear as suas aberturas a Israel.

Além da Arábia Saudita, também a Turquia vai ter problemas na sua recente política de entendimento e negociação com Israel. O líder turco Erdogan é outro político experimentado e prudente, que tem combinado autoritarismo e popularidade e trazido ao seu país uma modernização acelerada. Ora, depois do encontro com Netanyahu, em Nova Iorque, em Setembro, Erdogan estava empenhado num diálogo próximo e muito aberto com Telavive. Diálogo que terá agora de interromper.

Compreende-se que o líder de um país de maioria absoluta muçulmana, que quer fazer da Turquia um farol otomano numa região perturbada por políticas de confronto, reaja mal quando o Secretário de Estado americano, Anthony Blinken, invoca a sua ascendência judaica para justificar as generosas dádivas de Washington a Israel. Que poderia Erdogan fazer senão reagir a esta alusão identitária de um alto representante de uma super-potência em negociações trans-estatais?  Se Blinken estava ali “como judeu”, ele, Erdogan, líder da Turquia, país de religião muçulmana, estaria ali “como muçulmano”.

Curiosamente, os dois Estados, Israel e Turquia, pertencem ao número de protagonistas internacionais que, recentemente, tinham intervindo em vários conflitos de forma nem sempre alinhada religiosa e culturalmente e, por vezes, até aparentemente contraditória.

Os moderadores

O ataque do Hamas, além de ter posto fim ao diálogo de Riade e Ankara com Telavive, desencadeou também uma profusão de diligências externas, quer para reparar os destroços e reconfortar Israel, quer para moderar Telavive, com vista a impedir uma vindicta de proporções bíblicas.

Neste aspecto, foi pouco feliz a visita a Israel da Presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, considerada intrusiva e abusiva pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep BorrellBorrell, não só criticou o apoio unilateral de von der Leyen a Israel, sem ressalvar a necessidade de moderação na resposta armada em nome dos civis de Gaza, como lembrou à Presidente que não era ela quem decidia a política externa da União Europeia, mas os Estados membros – e na presença e sob a orientação dele, Josep, e não dela, Úrsula.  Até porque, na União Europeia, vigora a regra da unanimidade e, como se tem visto com os “grandes”, a Inglaterra, a França e a Alemanha, os Estados funcionam como Estados e tomam as suas próprias iniciativas moderadoras.

Biden, que também se deslocou expressamente a Israel, exprimiu claramente a solidariedade dos Estados Unidos, mas foi também cauteloso, pedindo a Telavive prudência e moderação na resposta. Muito americanamente, achou por bem penitenciar-se pelos excessos cometidos por Washington nas represálias ao 11 de Setembro, antes de aconselhar Netanyahu a não ocupar Gaza (“um grande erro”, tendo em conta que a imensa maioria dos habitantes de Gaza não tinha culpa do terrorismo do Hamas) e de lhe pedir que adiasse a operação terrestre, lembrando-lhe ainda a necessidade de repor na Agenda a solução dos dois Estados.

Compreensivelmente, a grande preocupação de Washington parece ser a de evitar o alastrar da guerra na região, com um possível ataque do Hezbollah a Israel a partir do Líbano e uma entrada da Liga Árabe no conflito.

Solicitados em duas frentes muito quentes, os norte-americanos não têm outro remédio senão recorrer ao rival chinês, que se vai desenhando como candidato a guia do “Sul global” e que, evidentemente, também não quer um conflito generalizado no Médio Oriente. Ainda que possa ter interesse saber se Teerão teve alguma influência no ataque do Hamas, ninguém vai querer tirar daí consequências punitivas. De resto, Blinken já solicitou os bons ofícios e a influência de Pequim junto dos dirigentes iranianos e Pequim já respondeu com o apelo a um cessar-fogo.

Isto apesar do formalismo da votação no Conselho de Segurança ao apelo chinês – que lembrou as votações do tempo da Guerra Fria, com os membros permanentes divididos (EUA, Reino Unido e França, de um lado; Rússia e China do outro) – e do veto americano à resolução brasileira de criar um corredor humanitário, resolução que deixou Washington sozinho, contra “o resto mundo”, Japão e França incluídos.

Contradições mais que naturais numa ordem internacional fragmentada em termos de ideias, valores e interesses; uma ordem organizada num agrupamento que, por vezes, se julga uma comunidade de nações, mas que é apenas uma sociedade.

Por cotas e de responsabilidade limitada.

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COMENTÁRIOS:

Liberales Semper Erexitque: Bom artigo hoje, informativo. Já no que respeita a divagações e a filosofias, deixa a desejar. Tomar a necessária acalmia na aproximação entre a Arábia Saudita e Israel e entre a Turquia e Israel pelo fim dessas aproximações é um absurdo. Superada a micro-questão da "Faixa de Gaza" (do tamanho da região de Lisboa), Riade e Ancara voltarão a dançar o tango com Telavive.                Antonio Castro:  Excelente artigo !                   vitor Manuel: Nem os melhores dos melhores conseguem ser sempre bons, há dias assim e JNP naturalmente não fugirá à regra. Isto só para dizer que os responsáveis pelos países que mais ou menos ainda vão garantindo o respeito pelas liberdades de cada indivíduo, nunca poderão recuar perante o avanço paulatino dos que têm como agenda o domínio de tudo e todos. Vi e ouvi hoje numa reportagem no Cairo" o mais inteligente da minha geração" segundo o porta-voz do "nosso" governo, a discursar o seguinte... Mas nada pode justificar o ataque repreensível do Hamas que aterrorizou o povo israelita. E esses ataques abomináveis, nunca poderão justificar ... O exemplo do que será o Mundo com canalhas destes, como responsáveis da nossa vida futura.                Francisco Almeida: Ler JNP é sempre gratificante mas hoje suscitou-me algumas questões. Se bem interpretei a interrogação, JNP abre dúvidas sobre a paternidade do Irão no ataque de Hamas. Talvez por ter sido um leitor ávido de policiais, tendo a perguntar em primeiro lugar, a quem aproveita. E o Irão é a resposta imediata. E, se não for, a questão do financiamento e da preparação, implicaria especulações e teorias da conspiração que me parecem excessivas. Aplicando Occam, sabe-se que os persas querem suceder aos otomanos e aos árabes da chefia do Islão e que o ódio a Israel é o cimento possível da união muçulmana sob sua direcção. E sabe-se também que controlam o Hezbollah. que também atacou Israel, e a facção iemenita que lançou os drones interceptados pelos americanos. Reconheço que posso ignorar factores que alterem a percepção mas, pelo que sei, o Irão não me oferece dúvidas. Também o confronto Borrell/von der Leyen me levanta uma interrogação. Foi um incidente isolado ou vem de trás e há divisões sérias na UE sobre política externa? Não me esqueço que Borrel foi o mesmo que se sentou com Erdogan deixando Ursula von der Leyen de pé numa situação constrangedora e quase humilhante. Só coincidência? Biden quer evidentemente limitar o conflito à sua actual dimensão. Mas há que saber o porquê. Voltando atrás, a administração Trump  elegeu o Irão como inimigo, Israel como amigo e a Arábia Saudita (e os Emiratos) como aliado. Era uma política que fazia sentido a quem queria eximir os EUA de envolvimento directo em conflitos no Médio Oriente e culminaria com o acordo Abraão. Falhou a finalização por culpa da personalidade narcisista de Trump mas a ideia era clara. Biden, lembrando António Costa e Passos Coelho, fez o oposto, interrompendo a venda de armas aos Emiratos, incompatibilizando-se decisivamente com a Arábia Saudita e reaproximando-se depois do Irão para tentar suprir a falta do petróleo russo. Ora a maioria da opinião pública americana, está já contra a continuação do apoio à Ucrânia, e se os Estados Unidos forem obrigados a uma intervenção no Médio Oriente, Biden e os democratas perdem inexoravelmente a próxima eleição. Isso é o que os assusta e motiva a hiperactividade diplomática que têm prosseguido.                     Maria Cabral > Francisco Almeida: Correção. Não foi Borrel, foi Charles Michel que deixou von der Leyen sem cadeira                Francisco AlmeidaMaria Cabral: Obrigado pela correcção. Partida da memória que altera a questão. A haver conflito, será mais de competências, sem que se possam concluir divergências na política externa.                 José Carvalho > Francisco Almeida: Apesar do lapso de memória, os seus comentários são muito pertinentes. Com as suas objecções, e com a que fiz no meu comentário, parece que JNP não esteve feliz hoje. Há dias assim, e não é por um dia que perde o meu grande apreço.                     acg Cisteina > José Carvalho: José Carvalho, é verdade que "há dias assim" quando lemos alguns textos ou crónicas na comunicação social. Mas também é verdade que, neste tema, não é fácil opinar, ainda que, sem sombra de dúvida, o Hamas ultrapassou tudo o que se possa imaginar com este ataque bárbaro, hediondo e covarde, tal como a esmagadora maioria do povo palestino ao longo dos tempos tem vindo a ser massacrado e que o Hamas, por esta razão, deve ser punido exemplarmente.                João Ramos: O fim do muro (cortina de ferro), tornou-se num conjunto de muros de geometria variável e indefinida e no meio do qual é perigoso tomar decisões e para o tentar “resolver” será necessário mexer com pinças…            Isabel Amorim: Como sempre, uma lição para compreender o já de si tão complexo problema (desde sempre) e as complicações que este ataque provocou com as ditas alianças e conversações em curso para se alcançar uma plataforma de paz neste intrincadíssimo problema. O único pormenor de que discordo é o suposto ataque ao hospital que já se viu por imagens de satélite que foi um missil perdido (lançado pelo Hamas) propositado ou não. Caiu no parque de estacionamento destruiu alguns automóveis e não terá havido centenas de mortos sequer. E sim, saudades, muitas da Guerra Fria! E dos telefones encarnados..                  José Carvalho: Estamos cercados pelo Hamas, como bem dizia ontem o Dr. Ribeiro e Castro. Até o Dr. Nogueira Pinto admite que o ataque ao hospital tenha sido de Israel! Esquecendo que isto é uma guerra de propaganda na qual Israel não dá tiros no seu pé.                     Américo Silva: Excelente e trabalhosa crónica, o que está a acontecer lembra um pouco o mundo da droga, dantes o crime estava organizado, os grupos controlavam-se mutuamente e a policia monitorizava os grupos, depois caíu num caos imprevisível, difícil de controlar e muito mais perigoso.                   Fernando CE: Mais uma lição de um grande senhor da análise política. Bom de ler , sem os lugares comuns e trincheiras fáceis.               Rui Lima: A guerra fria funcionou porque a URSS aceitou a ordem mundial existente , hoje da China ao Irão todos querem destruir a existente . Há 2 países com ambições e condições a China a Índia que querem estar no comando do mundo ao lado dos USA sem pagar a conta . A China é o problema quer destruir a ordem existe no seu combate contra os USA a sua estratégia é apoiar tudo o que possa afectar o poderio Americano .            Tim do Á > Rui Lima: No meio disso tudo a UE não existe. A Europa desapareceu. A UE é a coceira da Europa.                AdOB: Caríssimo, gostaria de saber a sua opinião sobre a seguinte questão: Terá o mundo algo a aprender - na sua inevitável transição para uma ordem multipolar - com o desastroso processo de descolonizacão Português? Se sim, quais as licões e directrizes? Contexto da pergunta: 1)Formámos as elites desses países para que pudessem exercer cargos de liderança ; os países em desenvolvimento têm, cada mais mais, conhecimento e poder sobre os seus recursos 2) Não o fizemos de forma suficientemente celére para que a coisa pudesse 'correr bem' (democracia e direitos humanos vingassem face à barbárie que se viu e vê) 3) Existe um trauma/inveja sobre os 'donos' anteriores e o que fizeram que ou os faz combater moinhos de ventos ou que amplifiquem o círculo vicioso 4) A natureza humana global que é tendencialmente autoritária e não democrática Como poderemos garantir que esta transição nos leve ao século xxii invés do séc xiv?

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