quinta-feira, 13 de março de 2025

Como sempre

 

Uma escrita valiosa, de MARIA JOÃO AVILLEZ – corroborada por comentadores sabedores – a respeito de registos vários – tanto na questão de um jornalista seu amigo excelente, desaparecido, como na questão dos registos de insensatez vivencial como constante nacional q.b., sem solução de jeito, a que assistimos televisivamente ou de que fugimos com um rancor de espanto, em busca d`A SENTENÇA do Canal 4, uma “mais-valia” programática igualmente panorâmica, na questão dos comportamentos humanos…

Uma melancolia fininha

Nem o jornalismo, nem o país, nem o mundo, nem a vida são o que já foram. Nós, os jornalistas, os portugueses, cidadãos europeus. A mágoa permite a dúvida: “ce fut plus beau parce que ce fut inutile?”

MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR,12 MAR. 2025, 00:2231

1Um dia, corria o verão de 1987, José António Saraiva então director do Expresso, chamou-me inesperadamente ao seu gabinete. Estava sozinho, tinha cara de caso, espantei-me: “acabo de receber uma coisa extraordinária, não sei que faça, olhe para isto…” Abriu uma gaveta: era uma sondagem de largo espectro onde se “lia” à transparência, uma estreia absoluta na política portuguesa. Tratava-se da antecipação da primeira maioria absoluta de Cavaco Silva nas eleições a realizar um mês depois. Estávamos atónitos.

Convocadas pelo Presidente Soares, trava-se de uma iniciativa eleitoral inesperada, motivadas pela queda do governo minoritário do PSD, mercê de uma moção de censura parlamentar. Sabia-“se” que o Executivo de Cavaco Silva mostrara animo e exibira velocidade no instinto reformista, o que o país apreciara. Mas daí àquelas cifras que nos pareciam astronómicas, que distancia ia afinal, que apanhava tão desprevenidos o então director do Expresso e eu própria?

2O Zé António tinha gestos destes comigo, um misto de desabafos, considerandos, pequenas confidências, troca de informações que o acesso de cada um proporcionava ao outro e que “analisávamos” ambos. Coisas assim.

Coisas – factos, imagens, ocorrências, conversas com sintonia ou dissintonia, recordações avulsas sem data e talvez sem propósito — que hoje lembro, com uma melancolia fininha, sabendo que o tempo – tanto tempo — as capturou para sempre. Deixando-me, face a uma morte brutal cujo anúncio eu inteiramente desconhecia, como uma espécie de sem abrigo desse passado que tão vital foi para mim e do qual o Zé António fez parte inteira e com assinatura.

Era um jornalista sui-generis. Tão sui-generis, que uma vez ou outra, quase me parecia vindo de Marte, pelo desconcerto que podia causar, fosse pelas opiniões que emitia; por um raciocínio que subitamente irrompia da sua voz cadenciada; pelas surpreendentes conclusões a que chegava, que pareciam estranhamente destoar da realidade como ela se nos apresentava. Nada tinha a ver com um defeito, longe disso, era uma característica constitutiva da sua forma de ser. Era aquela sua tão singular “forma mentis”.

3José António Saraiva vinha da arquitectura, desaguou no jornalismo para ficar e nunca saberei se de facto era um arquitecto “doublé” de jornalista, se um jornalista “doublé” de arquitecto, o que sei é que era nessa dupla condição que encenava os seus textos: marcando o quadro de um raciocínio baseado no esquadro e na regra da razão, muito mais do que no instinto; ou na mera informação; desenhando a sua análise na linha recta de uma lucidez e de uma observação da natureza humana das quais se orgulhava; usando de uma escrita tão permanentemente sincopada que ás vezes mais parecia descarnada das próprias palavras. Mas era assim que escrevia, inesquecíveis textos alguns deles, indispensáveis, outros mas sempre obrigatórios, mesmo quando, como por vezes sucedia, desconcertavam antes do mais. Antes de alcançarmos — se fôssemos capazes — o que devíamos percepcionar por detrás do desconcerto. Entrou no Expresso ainda a revolução não tinha dez anos de idade e só saiu para “inventar” um novo jornal. Foram anos muito felizes de trabalho na mais inteira liberdade de imaginar, propor, discutir, fazer. De estar “ali”, na Duque de Palmela, no meio de uma redação magnífica, fazendo inteiramente parte dela por mérito e com uma cumplicidade com o Zé António que, mesmo quando esse espírito incluía a impaciência ou o vivo desacordo, durava. Durou. E não foi senão tudo isto que recordei há dias, na igreja da Santíssima Trindade de Miraflores onde me fui despedir do meu amigo e abraçar a sua família.

4Tempos depois de trocar de morada, encontrei-o um dia entusiasmadíssimo no seu novo gabinete, a contas com a pré-produção do jornal que ia nascer – O Sol. A forma do seu entusiasmo era de baixo grau — não exibia sentimentos, nem estados de alma; o conteúdo, lembro-me bem, era de altíssima temperatura: “ia fazer um jornal que ultrapassaria o Expresso e não havia de passar muito tempo”.

“Credo, Zé António”, retorqui-lhe eu, descrente da façanha e agarrando-me à salvífica bengala da interjeição “credo”. Não aconteceu o que ele previa mas não pude deixar de reter o desmedido empenho posto naquele auto desafio. A vida passava, de vez em quando, falávamos.

Há poucos meses mandou-me uma mensagem carinhosa por causa de uma carteira profissional (cuja ausência, em cartão plastificado, pulverizaria automaticamente, segundo alguns, todo o trabalho feito entretanto) sinalizando-me seu desconforto. Mas no fundo o que aquela mensagem me transmitia era uma “presença”: a sua, comigo, mesmo que longe. E não foi senão tudo isto que recordei há dias na igreja da Santíssima Trindade de Miraflores onde me fui despedir do meu amigo e abraçar a sua família.

O tempo pesa sobre as coisas e a sua passada apressada confere-me a implacável lucidez de saber que as coisas amadas não voltam. É verdade que o jornalismo era outro, o país também, o mundo também e a vida também. E que hoje, nem o jornalismo, nem o país, nem o mundo, nem a vida são o que já conseguimos que fossem. Nós os cidadãos, os jornalistas , os portugueses. Nós, cidadãos nacionais, europeus e habitantes deste mundo, já fizemos melhor e conseguimos mais.

A mágoa, tão fininha como a melancolia do título, permite-me a dúvida: “ce fut plus beau parce que ce fut inutile?”

PS: 1. Um mistério: o Primeiro Ministro que vi há quarente e oito horas, no écran da CNN não foi o mesmo que vi ontem à tarde, sentado na bancada governamental do parlamento. Na segunda-feira à noite nada faria prever que aquele cavalheiro sóbrio, sorridente, sereno, sem precisar de jogar à defesa, sem sombra de tensão ou crispação, que conduzia himself a entrevista que lhe estava a ser feita televisivamente, iria quase parecer um sem-abrigo a bater à porta de um endinheirado arrogante? Só faltou Luís Montenegro e Pedro Duarte terem oferecido o próprio governo ao PS. Porque deixaram para a 25ª hora o que tinham para oferecer a um PS já decidido e sempre malcriado, a troco da manutenção governativa? Quanta pressão de última hora, quanto ansiedade, quanta obsessão na inverosimilhança de colocar o PS como culpado único pelo desenlace de uma história infeliz e infelizmente sempre mal conduzida. Quanta ausência de política. Um mistério e uma péssima surpresa… quando tudo era afinal mais que previsível

Quanta arrogância na bancada socialista, quanto uso do insulto, quanto abuso da sobranceria – Brilhante Dias é olímpico! – quanta imprudente ilusão de vitória. O excesso de autoconfiança é uma armadilha política mas eles não perceberam.

E quanta mentira no BE – hesito entre a má-fé, a ignorância, o desespero. Ficaram incólumes da mentira, claro. Mas talvez não dos votos dos bons velhos tempos, irremediavelmente já perdidos para sempre. Fazer política com o estatuto do irremediável não deve ser sedutor.

Quanto inutilidade naquele espectáculo geral, tão pouco abonatório. Tão danoso para o país, tão imbecilmente produtor de incerteza. Pior era impossível.

5E no entanto… Portugal já viu actuar politicamente Luís Montenegro como chefe do Governo. Não estava assim tão descontente nem com o Primeiro Ministro, nem com o seu Executivo.

Também já viu Pedro Nuno Santos em acção como chefe da família socialista e como líder da oposição. Não parecia apreciar por aí além nem um, nem outro. Isto é, o país pode comparar, dois entendimentos respectivos de fazer e interpretar a política. Teve mais de um ano de “observação” em directo e ao vivo. Vai ser interessante ver como guardado estava o bocado. O que é outra forma de dizer que o desfecho desta tão pecaminosa saga pode ser menos pecaminoso do que a própria saga.

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COMENTÁRIOS (de 31)

António Soares: Há dúvidas sobre o caso da empresa de LM? Há. Há dúvidas sobre os contratos públicos e subsídios atribuídos à empresa de PNS enquanto este esteve nos governos PS? Muitas. Há dúvidas quanto às ajudas de custo que ajudaram a enriquecer PNS, morando este a dois passos da AR? Se há...! Pior do que isso, há a certeza de que PNS foi um péssimo governante, cujas decisões enquanto ministro causaram muitos milhares de milhões de euros de prejuízo aos contribuintes, nomeadamente com a renacionalização da TAP e a aquisição de despojos de carruagens, vulgo sucata, ao Reino de Espanha, para o também sorvedouro de dinheiros públicos, conhecido por CP.

Pobre Portugal...                     Miguel Seabra: Belíssima homenagem a José António Saraiva, um jornalista que fez a diferença e marcou uma era. A geração que conheceu o Expresso de JAS sente esta melancolia tão bem descrita pela MJA. O Expresso ainda existe mas mete dó. O JAS partiu subitamente e não teve o reconhecimento e destaque que merecia. Até hoje…. Obrigado MJA      Carlos Chaves: Cara Maria João Avillez, agradeço-lhe a homenagem que aqui prestou a um grande jornalista que nos vai fazer uma grande falta.  “Entrou no Expresso ainda a revolução não tinha dez anos de idade e só saiu para “inventar” um novo jornal.” Enquanto José António Saraiva esteve no Expresso, não perdia uma edição, quando saiu do Expresso e fundou o Sol (hoje Nascer do Sol), ainda acumulei a compra semanal das duas edições durante algum tempo até perceber a deriva esquerdista e populista do Expresso que me levou a rejeitá-lo, até hoje. Ficarei sempre agradecido ao JAS pela fundação de um jornal que ainda hoje compro religiosamente, sendo a par com o Diabo quase as únicas publicações que honram o espaço de centro-direita. Que descanse em paz e os meus sentidos sentimentos à família e aos amigos, como era o seu caso. P.S. Concordo com o que escreveu sobre o que se passou ontem na Assembleia da República, mas é penoso assistir às análises um pouco por todo o lado, incluindo o Observador, nunca o tinha feito mas hoje tive que desligar a rádio Observador onde parece terem tirado a manhã para promoverem as asquerosas figuras e a sórdida estratégia do partido socialista. O evidente papel parcial da generalidade da comunicação social vai ser decisivo para levar o PS e a extrema-esquerda novamente ao poder! Talvez numa próxima crónica a Maria João, como grande jornalista e com uma enorme experiência, nos possa ajudar a compreender porquê a CS assim age. Antecipadamente agradeço-lhe.                  Filipe Paes de Vasconcellos: Parabéns Luis Montenegro! Fez-me lembrar tanto o nosso Francisco Sá Carneiro. Para quê governar nesta agonia passada, presente e futura? Com toda a oposição a descarregar ódio, mentira, incompetência, falta de escrúpulos só para destruir um homem que quer construir um país melhor, e está a construí-lo! e tirá-lo da miséria, pobreza e ódio próprios de um regime socialista. Mas alguém acredita que quando chegar a hora do Orçamento para 26 não irá haver o espectáculo ainda mais degradante do que se passou com o anterior? Mas alguém ainda acredita que com esta configuração parlamentar podemos transformar Portugal? Esta gente quando vê alguém que se destaca pelas suas ideias, propostas, qualidades e quer varrer de vez com esta “marmelada” ordinária não perdoa. Destrói tudo e até o carácter daqueles que o têm. Também foi assim com o nosso Sá Carneiro. Portanto, perante um “IMPASSE” ou “vai ou racha”! A política é para homens e não para meninos com estados de alma.

E, fico-me por aqui.                 António Lamas: Deus poupou o JAS de assistir ao deprimente espectáculo de ontem. Que o guarde bem junto aos grandes jornalistas-Homens que também partiram.                  Francisco Ramos > Carlos Chaves: Bom dia Carlos Chaves Enquanto a MJA não lhe responde à questão que lhe colocou no final do seu comentário, e que eu penso que nunca acontecerá, vou tentar dar-lhe uma. Um dia, a comer umas sardinhas assadas, na companhia de alguém ligado à alta finança, ele me esclareceu do seguinte: bom para os negócios é quando o PS está no governo. É com ele que se fazem as grandes negociatas. É que o PS, além de se governar, deixa que os outros se governem. Claro que tudo isto com a participação dum povo iletrado e ingénuo. Porque é que pensa que António Costa nunca resolveu o problema dos professores? Porque quanto maior for a bagunça nas escolas mais ignorantes são os alunos. Um povo iletrado e ingénuo tende a votar à esquerda. Num país, onde as pessoas tivessem dois dedos de testa, após António Costa ter usurpado o poder da maneira indecorosa e ignóbil como se assenhoreou dele, e as consequências que daí resultaram, alguma vez mais votaria neste PS? Mas aí estão eles novamente, do alto da sua ignorância, a levar PNS ao colo a caminho do poder. PNS um incompetente, inconstante, incapaz, e tudo temperado com um pouco de desonestidade. Mas não são os jornalistas, que nós acusamos, os responsáveis. Coitados deles! Estão ao serviço os interesses ocultos. O grupo IMPRESA (Expresso e SIC) está neste momento na primeira linha da cabala. Porquê? Consta que a situação financeira do grupo não é a melhor. E parece que Montenegro não está muito na disposição de pagar as contas. Logo têm de rapidamente arranjar alguém que as pague, e o partido mais apto para o fazer é o PS:           Manuel Almeida Gonçalves: Há uma questão irresolúvel: Como é que Montenegro teve tão mau julgamento e antecipação dos problemas que inevitavelmente resultariam de uma sociedade de prestação de serviços familiar, face à sua condição de PM? Que indivíduo é este incapaz de antever as graves consequências dos seus actos?

miguel cardoso: Exma. Senhora Dona Maria João Avilez: Leio com interesse a s suas crónicas, porque ancoradas num tempo que já foi. É bom sentir alguém educado a escrever, numa altura de grosseria sem limites e política do mais rasteiro que imaginar se pode. Será que para o futuro é a má educação que triunfa, ou acabarão como as legiões de Átila, brutais e incivilizadas, derrotadas pela sua própria maldade, ignorância do básico e lutas internas? A segunda hipótese é a minha esperança...Muito respeitosamente Miguel Geraldes Cardoso

Maria Nunes: Os artigos de José António Saraiva vão fazer muita falta aos seus leitores. Jornalista integro, corajoso e sem papas na língua. É sintomático como o seu desaparecimento foi tão pouco divulgado pelos seus pares. Gente pequenina.

Tristão > Miguel Seabra: Não teve o destaque que merecia porque deixou poucos amigos no meio jornalístico e político. A ousadia de colocar em causa o todo-poderoso Expresso também não contribuiu em nada para que mais amigos florescessem. Era alguém directo, desconcertante e tímido, ninguém com estas características angulosas deixa muitos amigos… mas acrescento eu, deixa um legado que muito aprecio.

 

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