domingo, 9 de março de 2025

Nem a Igreja escapa


Aos assaltos graciosos aos princípios conservadores que desde sempre foram sua referência, como é, aliás, sua obrigação para com os chamados “fiéis” ou seguidores. Tudo se permite hoje em dia em termos de humor, desde que os humoristas pertençam à camada modernista destruidora do preconceito aburguesado, mesmo que apoiado na racionalidade clássica. JAIME NOGUEIRA PINTO não deixou escapar mais este exemplo da “espiritualidade” destes tempos de desordem mental, a merecer espanto.

A política do conclave

A eleição de um papa hermafrodita a surgir como inesperada manifestação do “Espírito” por puro oportunismo político-ideológico é toda uma outra (e demagógica) coisa. Não lembraria ao próprio Mafarrico

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 08 mar. 2025, 00:1919

Nos Óscares, o “conclave” da Academia, nunca é a dúvida que faz a unidade, mas a certeza. Sabemos, à partida, que Hollywood, num ritual bem coreografado, irá de alguma forma celebrar a moral oficial e o pensamento correcto do momento, deixando escapar uma ou duas graças que dêem a todos a sensação de que comungam, não da unanimidade “liberal” da classe, mas de um certo activismo subversivo, sinal de progresso, de inteligência informada, sinal de que ali ainda se vai rugindo, qual leão da Metro-Goldwyn-Mayer, contra “a ignorância, o conservadorismo e as convenções”.

Mas, este ano, os filmes Conclave e Emilia Perez,que tinham uma orquestração mediática a empurrá-los para o sucesso (talvez por incluírem a causa da moda, com a eleição de um Papa hermafrodita, em Conclave, e a redenção de um assassino mafioso transsexuado numa santa mulher, em Emilia Perez), só tiveram um Óscar cada um: o de melhor actriz secundária para Zoë Saldaña, em Emilia Perez, e o de melhor argumento adaptado, para Conclave.

Num momento tão tenso para a América e para o mundo, esperava-se mais de Hollywood do que esta ténue derrota do patriarcado tóxico em dois dos seus “antros” – o coração da Igreja Católica e a máfia mexicana. Ou do que o comentário do apresentador, Conan O’Brien, para dar conta do sucesso do grande vencedor da noite, o filme Anora (à volta do romance entre uma “trabalhadora do sexo” russo-americana de Brooklyn e o filho de um oligarca russo): “Calculo que os americanos se entusiasmem ao verem finalmente alguém fazer frente a um russo poderoso”.

Do conclave anual da Academia ao filme propriamente dito

A história do Conclave baseia-se no livro homónimo de Robert Harris, um mais que bem-sucedido autor de best-sellers. Harris foi o autor de Fatherland (1992) e, mais recentemente, da trilogia Imperium, uma ficção baseada na história de Roma, na crise da República para o Principado. Fatherland, que li quando saiu, era um cenário de contra-história, em que a Alemanha de Hitler ganhava a guerra.

Na narrativa de Harris, Conclave começa com a morte de um Papa, talvez o actual Sumo Pontífice, já que o papa ficcionado de Harris morre na Domus Sancta Marta, uma residência para hóspedes do Vaticano, onde o Papa Francisco quis viver desde a sua eleição e onde mais nenhum papa tinha vivido.

Conclave é uma dessas fitas bem cenografadas e coreografadas, que nos transmitem um sentido de fidelidade àquilo que não vimos, mas imaginamos: é como o último baile de Il Gatopardo, de Visconti, ou a operática chacina dos trabalhadores grevistas na Greve, de Eisenstein, ou a carga de cavalaria em She Wore a Yellow Ribbon ,de John Ford. Os pátios e claustros de S. Pedro e do Vaticano, as portas a fecharem-se, as irmãs da caridade a precipitarem-se para o serviço, tudo tem um sentido ritual de certeza e de fidelidade ao que é ou ao que tem sido. É uma das forças do filme.

Outra das forças do filme é o deus ex machina do conclave, o cardeal-decano Lawrence, magnificamente interpretado por Ralph Fiennes, o do Paciente Inglês. Aqui Fiennes toma conta de tudo, da logística, claro, mas também dos problemas críticos que vão surgindo ao longo destes dias decisivos em que, para os que somos crentes, o Espírito Santo, através do colégio dos cardeais, escolhe o representante de Cristo neste mundo.

O Papa São João Paulo II, no seu pontificado, emitiu um regulamento actualizando as regras do conclave – a Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, de Fevereiro de 1996, podendo os cardeais falar entre si do que quiserem, não lhes é permitido fazer lobby, influenciar os outros, dizer-lhes em quem votar. Neste Conclave não se respeitam essas regras. Não se faz outra coisa senão conspirar, enquanto Lawrence conduz, com eficácia e decisão, os trabalhos. Nesse aspecto, a forma é excelente para dar a temperatura do acontecimento e o suspense em relação ao resultado.

Nada disto impede que a intenção do filme não seja claramente ideológica, que o é, e maniqueísta, que também o é, com os esperados “maus” e “bons”. Os maus são os “conservadores”, o grupo de cardeais que, se conseguirem eleger o seu candidato, vão “atirar a Igreja para 60 anos atrás”. Os “bons” são os “liberais”.

Um dos conservadores é um cardeal africano que, a dado momento, fica à frente na votação. Mas abre-se uma mini-crise, quando uma das irmãs da caridade que presta serviço no conclave aparece profundamente perturbada, a ponto de deixar cair uma travessa na casa de jantar.

Lawrence investiga e obriga a renitente superiora (Isabella Rosselini) a facilitar-lhe acesso à raiz do drama envolvendo a freira; e descobre que o cardeal africano (africano mas conservador, logo, mostrando pouca caridade pelos seus irmãos “homossexuais” e “predador”) tinha tido, quando sacerdote, uma relação com a referida freira, da qual nascera uma criança. Lawrence confronta o cardeal e leva-o, renitente, a desistir do papado.

Com o conservador “moderado” fora da corrida, e um outro conservador – desmedidamente ambicioso, ardiloso, mentiroso e manipulador, como só os conservadores sabem ser – desmascarado, faltava o verdadeiro conservador, aquele que os “bons” tinham a certeza absoluta que não podia ser Papa  (sendo que esta certeza, como todas as certezas dos “bons” da fita, não se inclui na certeza má, contra a qual fala o decano como a maior inimiga da unidade). O cardeal italiano, de Veneza, o cardeal Tedesco (Sergio Castellito) é então esse conservador de caricatura. É um energúmeno que quer fazer a guerra aos muçulmanos, a quem chama animais, queimar as mesquitas, e expulsar os infiéis; e aparece sempre despenteado, descomposto e a fumar charuto. É um conservador imaginado pela Esquerda, como também podia ser um progressista imaginado pela Direita roncante.

Enfim, a orientação política do autor do livro é conhecida, bem como a sua ideia de que a política e o poder dominam tudo, mesmo uma assembleia dos mais ilustres prelados da catolicidade.

Vem depois a principal nota ideológica do filme – a certeza de que a dúvida é o grande sinal de fé e que a certeza é o grande pecado e o grande inimigo da “unidade”.

Ora a dúvida, a dúvida crítica, a dúvida e discussão do acidental, não há cristão que não a tenha ou possa ter, e até a dúvida de fé. Dúvida e fé, como escrevia Bento XVI, são realidades em que tanto “o crente como o não crente participam, cada um à sua maneira”, impedindo-os de “se fecharem totalmente em si mesmos”; e como alguém também diz no filme, o próprio Jesus Cristo, teve, como homem, essa angústia e essa dúvida na agonia na cruz. Porém, condenar a certeza como o grande inimigo da unidade, da santidade e da perfeição é já outra coisa.

A eleição de um papa hermafrodita a aparecer como inesperada manifestação do “Espírito” por razões de puro oportunismo político-ideológico é também toda uma outra – e demagógica – coisa. A narrativa, que até aí seguia uma agenda subliminar de propaganda, equilibrada pela forma e pela acção (mais de thriller político-policial do que de conclave) deixa de ser subliminar. Ir arranjar um papa hermafrodita (condição percentualmente raríssima) não lembraria ao próprio MafarricoMas fica a dúvida.

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COMENTÁRIOS (de 19):19

Isabel Amorim: Muito boa análise como sempre de JNP. Vi o filme e a certa altura desconfiei que trazia água no bico, pensei é que seria um transexual. Cenários e actores bons mas previsível. Não acho piada a filmes que querem surpreender mas que acabam por ser previsíveis. Um flop... Mais do mesmo. Cansativo. Curioso não fazerem produção deste estilo com a religião muçulmana para variar, parece que só existe uma religião, a católica (ou cristã) ou então até se percebe a esta hora a probabilidade de começarem a explodir salas de cinema aleatoriamente seria também previsível e incómodo....            Miguel Seabra: Para ganharem o Óscar o papa tinha mesmo de ser transsexual, hermafrodita não chega….fica pra próxima….             António Fernandes: Acho piada não brincarem com outras religiões ou será por não quererem as 100 virgens no céu?        Luís Rodrigues: Do Conclave e de Anora vi recentemente cerca de metade da duração. Nos dois casos apercebi-me de que estava a desperdiçar esse bem precioso que é o tempo, e desisti de ver o restante. Embora o primeiro seja um produto mais bem confeccionado que o segundo, ambos ilustram a decadência do cinema, seja pelo seguidismo das modas ou pela simples inépcia.         Maria Emília Ranhada Santos: Muito importante artigo, pois o grande ataque neste momento é sem sombra de dúvida à Igreja Católica! Tudo serve para a tentar destruir, mas isso nunca vai acontecer e esta é uma certeza absoluta, porque foi o próprio Jesus Cristo quem o disse! Quem domina a CS em todas as esferas é o poder financeiro, está tudo dito! Há tempos li algo, já não sei onde foi, a dizer que o chefão dos maçons, tinha ido ter uma reunião com certos cardeais do Vaticano, para acordarem uma união entre as duas comunidades! Não sei se é verdade, mas a sê-lo, o que podemos mais esperar? Mas eleger um papa hermafrodita significa que é mesmo essa seta maçónica que está por detrás! Não é esse "papa" que certamente os cristãos verdadeiros vão seguir!      Jose Marques > Ruço Cascais: Vai de retro fedorento!

 

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