sábado, 8 de março de 2025

Como sempre

 

O dedo nas feridas, uma ironia de AG sem tréguas, demonstradora de uma profunda sabedoria humana, acompanhada de infindável liberdade crítica, de quem talvez, se inclua a si próprio nessa reflexão feroz e certeira sobre todos nós, comensais esperando sorrateiramente e indefinidamente o milagre da multiplicação dos pães.

A Europa armada em boa

Os estadistas que iluminam a Europa percebem que, por incrível que pareça, é preferível aliviarem-se de palavras de apoio a Kiev do que aguentarem com as consequências de um apoio real.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 08 mar. 2025, 00:2015

Apesar da ajuda militar, financeira e humanitária dos EUA e da Europa, a Ucrânia está há três anos a resistir à Rússia sem grandes avanços no que toca a expulsá-la dos territórios invadidos. Alguns peritos defendem o desgaste do regime russo por esta via, embora não cheguem a acordo quanto à duração do processo, que em teoria pode ir dos seis aos trinta anos. O carácter vago do projecto não admira: por regra, trata-se dos exactos peritos que às quartas-feiras garantem que a capacidade russa está por um fio e aos sábados juram que, ou nos acautelamos, ou os russos atravessam os Pirenéus e entram por Vilar Formoso não tarda. No mínimo, a situação é pouco clara.

O que é claríssimo é a nova administração americana não pretender continuar a financiar ou a proteger a Ucrânia, pelo menos de forma activa e directa. Talvez isto se deva à suspeita, confirmada em numerosas cabeças, de que Trump é um agente ou um parceiro de Putin. Ou então Trump sonha, e bem pode sonhar, aliar-se a Putin para contrabalançar a influência da China. Ou Trump apenas se ajusta ao interesse do seu eleitorado, que não se interessa por despejar fundos avantajados num conflito a nove mil quilómetros de Washington. Ou outra hipótese qualquer. Ao contrário de tantos, não sei a resposta.

Sei é que, daqui em diante, a Ucrânia – ou, para ser rigoroso, a Rússia – ameaça ser uma preocupação exclusiva da Europa, o que, se formalmente é um golpe na tradição de os EUA nos salvarem do abismo e pagarem boa parte das contas, geograficamente nem é disparatado. Assim, após décadas de sono relaxado, os senhores que mandam na UE e em meia-dúzia de países passaram à acção.Acção” é maneira de dizer. Em voz alta, lançam frases bombásticas e, cada um por si para exibir coesão, produzem planos a um ritmo diário (por enquanto, vão em três: Europe Plus, Coalition of the Willing e, por meros 800 mil milhões, ReArm Europe; para a semana alguém deve engendrar um quarto e um quinto). Em voz baixa, rezam para que a América acabe por se envolver no assunto de alguma maneira e os livre de trapalhadas.

Donos de mentes privilegiadas, os estadistas que iluminam a Europa percebem que, por incrível que pareça, é preferível aliviarem-se de palavras de apoio a Kiev do que aguentarem com as consequências de um apoio real. O apoio real tem custos, materiais e, no limite, humanos. Sobretudo seria complicado conciliar os prometidos aumentos nos gastos da defesa com o conforto assistencialista a que nos habituámos. E mais complicado seria convencerem as populações a aceitarem a austeridade com a leveza com que partilham fotografias de Zelensky no Instagram. E suponho a impossibilidade de enviar para a frente de combate jovens que não esperneiem. ReArm Europe? Em 2024, as verbas que a Europa despejou na Rússia para compra de combustíveis superaram a ajuda à Ucrânia: os tropas do teclado são valentes, mas é escusado passar frio.

Não tenho certezas sobre a actuação de Trump, e os eventuais resultados da actuação de Trump, que com típica bravata jurou terminar num dia uma guerra que prossegue dois meses depois da tomada de posse. Tenho a certeza de que não devemos confiar cegamente nas boas intenções de criaturas que estilhaçaram cultural e socialmente o continente, que prendem ou ambicionam poder prender cidadãos por opiniões “on line”, que aceitam ou impõem a crença em 72 “géneros” como os mártires do Islão crêem nas 72 virgens, que sustentam a “Palestina” e ignoram ou partilham o anti-semitismo. E que, com espectacular coerência, passaram o primeiro quartel do século a armar, patrocinar e “apaziguar” Putin, tão apaziguado que nos intervalos das negociatas só invadiu a Geórgia e a Crimeia, além de assassinar opositores em Moscovo ou Londres.

É triste constatar que, enquanto a euforia épica não lhes sai do bolso e não os obrigam a pegar em armas e sair do sofá, milhões de entusiastas afirmam-se preparados para, em nome da liberdade, seguir criaturas cujos pergaminhos na matéria são algo escassos. A nossa sorte é que não devem ir longe: sob a neblina da bazófia, que possui em abundância, a Europa não tem união, não tem vontade, não tem dinheiro e não tem jovens. O que a Europa tem, e o Ocidente em peso também, é a tradição recente (tosse) de os governos domesticarem as massas com apocalipses sortidos, sejam climáticos, gripais ou, lá está, bélicos. O exercício “legitima” a crescente concentração de poder e, em simultâneo, distrai das humilhações a que essa concentração nos sujeita.

O provável é que o futuro avance por um de dois caminhos. Ou os EUA e a rudeza de Trump cozinham uma paz precária e injusta na Ucrânia, a repetição de um precedente arriscado na medida em que premeia o agressor como o premiaram em 2008 e 2014, ou por catastrófico milagre a Europa resolve mesmo enfrentar até ao limite uma potência nuclear. No primeiro caso, estaremos em perigo. No segundo, estaremos desgraçados. Ambos são caminhos escuros, e não foi Trump que nos deixou na encruzilhada.

GUERRA NA UCRÂNIA      UCRÂNIA      EUROPA      MUNDO      DONALD TRUMP      ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA      AMÉRICA      VLADIMIR PUTIN      RÚSSIA

COMENTÁRIOS (de 15)

José Paulo Castro: E algures lá pelo meio, AG menciona a raiz do mal europeu que é o seu - único no Mundo - modelo social assistencialista. Não tivessem criado esse 'progresso' insustentável em qualquer outra parte do mundo e poderiam estar a enfrentar os seus problemas. Assim, para o manter e aos votos que sustentam os líderes, continuam a criar novos problemas sem resolver os que já têm: demografia, insegurança, declínio económico.

Nenhum comentário: