O dedo nas feridas, uma ironia de AG sem tréguas, demonstradora de uma profunda sabedoria
humana, acompanhada de infindável liberdade crítica, de quem talvez, se inclua
a si próprio nessa reflexão feroz e certeira sobre todos nós, comensais
esperando sorrateiramente e indefinidamente o milagre da multiplicação dos
pães.
A Europa armada em boa
Os estadistas que iluminam a Europa percebem que, por incrível que
pareça, é preferível aliviarem-se de palavras de apoio a Kiev do que aguentarem
com as consequências de um apoio real.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador
OBSERVADOR, 08 mar. 2025, 00:2015
Apesar da ajuda militar,
financeira e humanitária dos EUA e da Europa, a Ucrânia está há três anos a
resistir à Rússia sem grandes avanços no que toca a expulsá-la dos territórios
invadidos. Alguns peritos defendem o desgaste do regime russo por
esta via, embora não cheguem a acordo quanto à duração do processo, que em
teoria pode ir dos seis aos trinta anos. O carácter vago do projecto não admira: por
regra, trata-se dos exactos peritos que às quartas-feiras garantem que a
capacidade russa está por um fio e aos sábados juram que, ou nos acautelamos,
ou os russos atravessam os Pirenéus e entram por Vilar Formoso não tarda. No
mínimo, a situação é pouco clara.
O
que é claríssimo é a nova administração americana não pretender continuar a
financiar ou a proteger a Ucrânia, pelo menos de forma activa e directa.
Talvez
isto se deva à suspeita, confirmada em numerosas cabeças, de que Trump é um
agente ou um parceiro de Putin. Ou então Trump sonha, e bem pode sonhar,
aliar-se a Putin para contrabalançar a influência da China. Ou Trump apenas se
ajusta ao interesse do seu eleitorado, que não se interessa por despejar fundos
avantajados num conflito a nove mil quilómetros de Washington. Ou outra
hipótese qualquer. Ao contrário de tantos, não sei a resposta.
Sei é que, daqui em diante, a Ucrânia –
ou, para ser rigoroso, a Rússia – ameaça ser uma preocupação exclusiva da
Europa, o que, se formalmente é um golpe na tradição de os EUA nos salvarem do
abismo e pagarem boa parte das contas, geograficamente nem é disparatado.
Assim, após décadas de sono relaxado, os senhores que
mandam na UE e em meia-dúzia de países passaram à acção. “Acção” é
maneira de dizer. Em voz alta, lançam frases bombásticas e, cada um por si para
exibir coesão, produzem planos a um ritmo diário (por enquanto, vão em três:
Europe Plus, Coalition of the Willing e, por meros 800
mil milhões, ReArm Europe; para a semana alguém deve engendrar um quarto e um
quinto). Em voz baixa, rezam para que a América acabe por se envolver no
assunto de alguma maneira e os livre de trapalhadas.
Donos de mentes privilegiadas, os
estadistas que iluminam a Europa percebem que, por incrível que pareça, é
preferível aliviarem-se de palavras de apoio a Kiev do que aguentarem com as
consequências de um apoio real. O apoio real tem custos, materiais e, no
limite, humanos. Sobretudo
seria complicado conciliar os prometidos aumentos nos gastos da defesa com o
conforto assistencialista a que nos habituámos. E mais complicado seria
convencerem as populações a aceitarem a austeridade com a leveza com que
partilham fotografias de Zelensky no Instagram. E suponho a impossibilidade de
enviar para a frente de combate jovens que não esperneiem. ReArm Europe? Em
2024, as verbas que a Europa despejou na Rússia para compra de combustíveis
superaram a ajuda à Ucrânia: os tropas do teclado são valentes, mas é escusado
passar frio.
Não tenho certezas sobre a actuação
de Trump, e os eventuais resultados da actuação de Trump, que com típica
bravata jurou terminar num dia uma guerra que prossegue dois meses depois da
tomada de posse. Tenho a
certeza de que não devemos confiar cegamente nas boas intenções de criaturas
que estilhaçaram cultural e socialmente o continente, que prendem ou ambicionam
poder prender cidadãos por opiniões “on line”, que aceitam ou impõem a
crença em 72 “géneros” como os mártires do Islão crêem nas 72 virgens, que
sustentam a “Palestina” e ignoram ou partilham o anti-semitismo. E que,
com espectacular coerência, passaram o primeiro quartel do século a armar,
patrocinar e “apaziguar” Putin, tão apaziguado que nos intervalos das
negociatas só invadiu a Geórgia e a Crimeia, além de assassinar opositores em
Moscovo ou Londres.
É triste constatar que, enquanto a
euforia épica não lhes sai do bolso e não os obrigam a pegar em armas e sair do
sofá, milhões de entusiastas afirmam-se preparados para, em nome da liberdade,
seguir criaturas cujos pergaminhos na matéria são algo escassos. A nossa sorte
é que não devem ir longe: sob a neblina da bazófia, que possui em abundância, a
Europa não tem união, não tem vontade, não tem dinheiro e não tem jovens.
O que a Europa tem, e o Ocidente em peso também, é a
tradição recente (tosse) de os
governos domesticarem as massas com apocalipses sortidos, sejam climáticos,
gripais ou, lá está, bélicos. O exercício “legitima” a crescente
concentração de poder e, em simultâneo, distrai das humilhações a que essa
concentração nos sujeita.
O
provável é que o futuro avance por um de dois caminhos. Ou
os EUA e a rudeza de Trump cozinham uma paz precária e injusta na Ucrânia, a
repetição de um precedente arriscado na medida em que premeia o agressor como o
premiaram em 2008 e 2014, ou por
catastrófico milagre a Europa resolve mesmo enfrentar até ao limite uma
potência nuclear. No primeiro caso, estaremos em perigo. No segundo,
estaremos desgraçados. Ambos são caminhos escuros, e não foi Trump que nos
deixou na encruzilhada.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO DONALD TRUMP ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA VLADIMIR
PUTIN RÚSSIA
COMENTÁRIOS (de 15)
José Paulo
Castro: E algures lá pelo meio, AG menciona a raiz
do mal europeu que é o seu - único no Mundo - modelo social
assistencialista. Não tivessem criado esse 'progresso' insustentável em
qualquer outra parte do mundo e poderiam estar a enfrentar os seus problemas. Assim, para o manter e aos
votos que sustentam os líderes, continuam a criar novos problemas sem resolver
os que já têm: demografia, insegurança, declínio económico.
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