quarta-feira, 26 de março de 2025

Os deveres a cumprir


Segundo a universalidade das regras criadas e impostas pelos homens a cada homem, em tempos passados. O mal (ou o bem) é que os egoísmos competem com os altruísmos, além das grandes divergências culturais, nos espaços actualmente invadidos, que proporcionarão, por vezes, limitações comportamentais, segundo as divergências entre os povos e os respectivos poderios culturais e económicos, específicos de um multiculturalismo decididamente frenético nestes tempos da fraternidade universal - com as orientações específicas das praxes hodiernas, de inclinação preferencial pelo invasor fugitivo do seu país instável. É o que subentendemos do magnífico estudo de PATRÍCIA FERNANDES.

A impossibilidade da sociedade cosmopolita

Se reconhecermos o valor da identidade cultural, então a ideia da sociedade multicultural (onde diferentes grupos culturais vivem a sua identidade) não é viável. Pelo menos em sociedades democráticas.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 24 mar. 2025, 00:2020

1A sociedade cosmopolita

A célebre frase com que Kant conclui a sua “Crítica da Razão Prática”– “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão:O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim” – simboliza um aspecto fundamental do seu pensamento, e que será recebido com todo o fulgor pelo liberalismo: o conceito de universalidade. Todos os homens estariam sujeitos ao mesmo céu estrelado e encontrariam no seu espírito a mesma lei moral, que a razão lhes impõe como imperativo categórico. As regras morais – os deveres morais – valem, assim, para todos os homens, são universais.

É este universalismo que encontramos igualmente na sua teoria do conhecimento: se não é possível conhecer a realidade em si, uma vez que lidamos com o mundo a partir de estruturas específicas (as condições de possibilidade do conhecimento), ainda assim é possível falar de um modo de conhecer humano, uma vez que todos os homens partilhariam essas estruturas cognitivas.

As consequências políticas e éticas deste universalismo são claras. Apesar das diferenças sociais e culturais, há um substrato comum partilhado por todos os homens que permite chegar a uma compreensão comum, pelo que, através da faculdade de comunicação partilhada racionalmente, seria possível encontrar princípios éticos universais – e, até, aprovar uma «declaração universal» dos direitos humanos.

Se partilhamos esse substrato comum, então é possível o mundo pensado pelos estóicos, também eles partindo de uma razão universal como aquilo que nos liga: é possível – até desejável – um mundo cosmopolita com uma convivência pacífica e saudável entre pessoas de diferentes culturas e nacionalidades. Afinal, todas as sociedades são compostas por indivíduos e os indivíduos, partilhando uma racionalidade comum, podem chegar a entendimentos morais e políticos comuns e criar sociedades diversas e pacíficas. “Não sou ateniense, nem grego. Mas sim um cidadão do mundo”, como dizem os azulejos em Lisboa.

2A identidade cultural

Após a publicação da «Crítica da Razão Pura», Kant recebeu de dois autores alemães uma crítica poderosa ao seu pensamento. Um desses filósofos foi J. G. Hamann, que Isaiah Berlin, em The roots of romanticism, considera “a primeira pessoa a declarar guerra, da forma mais aberta, violenta e completa, ao Iluminismo”. Esse ataque resultava de Hamann questionar o universalismo da razão kantiana: Kant teria desprezado o papel da linguagem ao pensar as categorias que condicionam o acesso à coisa em si, considerando-as como universais quando eram simplesmente reflectidas a partir da língua alemã. Outras línguas, com outras categorias e diferentes estruturas, conheceriam mundos diferentes.

Mas será o contributo de J. G. von Herder a influenciar mais fortemente um caminho paralelo às Luzes e àquele universalismo, ao chamar a atenção para o papel da linguagem e da cultura no modo como pensamos e experienciamos o mundo à nossa volta. A experiência do mundo não seria, assim, universal, mas seria condicionada pelas normas culturais a que cada indivíduo está sujeito. Estava aberto o caminho para o romantismo ou um certo particularismo nacional: o mundo não seria constituído por indivíduos dotados da mesma Razão transcendental, mas por indivíduos que pertencem a grupos culturais distintos.

Herder será uma referência não só para os pensadores nacionalistas do século XIX, mas também para o domínio da antropologia cultural no século XX (e a sua perspetiva relativista), com uma influência particular nas teorias multiculturalistas.

Um dos aspectos mais curiosos do multiculturalismo é o facto de a sua principal virtude – o reconhecimento da importância da cultura na formação da identidade – não ser tomada de modo consequente. De acordo com o espírito multiculturalista, o nosso modo de ver o mundo encontra-se enraizado numa cultura particular e o acto de desenraizar alguém – impondo-lhe outra cultura ou uma norma cosmopolita – é um exercício de violência sobre essa pessoa. Mas este argumento conduz-nos à impossibilidade da sociedade cosmopolita.

Se reconhecermos o valor da identidade cultural, então a ideia de uma sociedade multicultural e multiculturalista – composta por diferentes grupos culturais que podem viver de forma plena a sua identidade – deixa de ser viável. Pelo menos, em sociedades democráticas.

3A identidade nacional

Em A Mente Justa, o psicólogo social Jonathan Haidt debruça-se sobre o estudo da moralidade como parte do nosso design evolutivo. De acordo com Haidt, evoluímos para nos tornarmos seres morais pelo facto de a moralidade se revelar uma ferramenta fundamental para a sobrevivência de animais sociais, como os humanos, que vivem em grandes grupos.

Desde a década de 1970 que o gene egoísta de Richard Dawkins procurou explicar o comportamento humano como resultado da vontade egoísta de prolongar a sua existência genética. Esta ideia explicaria porque agimos altruisticamente para com os membros das nossas famílias, não só com os descendentes directos, mas também para com outros mais distantes. Mas como explicar o altruísmo fora do parentesco?

Durante algum tempo levantou-se a hipótese do altruísmo recíproco – ajudar na esperança de vir a ser ajudado ou por ter recebido ajuda antes –, mas a hipótese mais promissora veio de uma perspectiva grupal: somos egoístas quando competimos com membros do nosso grupo, mas tornamo-nos solidários dentro e para com os membros do nosso grupo quando este está em competição (não necessariamente em conflito) com outros grupos.

Trata-se da hipótese de selecção multinível e é a partir desta hipótese que Haidt formula a sua teoria da mente moral: a moralidade serviria como ferramenta por fortalecer as ligações dentro do grupo e aumentar assim as hipóteses de colaboração e sobrevivência. Ligamo-nos aos membros do nosso grupo por regras de moralidade comuns, valorizando certos princípios e sendo moralistas uns com os outros por forma a garantir que todos os membros do grupo se mantêm ligados a essas regras. Como diz Haidt:

Se vir uma centena de insectos a trabalharem juntos com vista a um objectivo comum, pode apostar que são irmãos. Mas, quando vê cem pessoas a trabalhar num estaleiro de construção ou a marchar para a guerra, ficaria surpreendido se todos se revelassem membros de uma grande família. Os seres humanos são os campeões do mundo em cooperação para lá dos laços familiares, e em grande medida fazemo-lo ao criar sistemas formais e informais de responsabilidade.”

A hipótese de Haidt oferece-nos pistas importantes para reflectir sobre a possibilidade da sociedade cosmopolita. Por um lado, Haidt é um universalista (subscrevendo a hipótese kantiana) na medida em que entende que o ser humano evoluiu no sentido de se tornar um ser moral; por outro lado, Haidt subscreve a hipótese particularista (como a levantada pelos identitários culturais) de que cada cultura apresenta a sua própria moralidade, permitindo a distinção entre os grupos e oferecendo um sentido de identidade.

E é esta dimensão de pertença ao grupo que se revela fundamental: pois é ela que nos permite superar a nossa natureza egoísta. É pela sensação de pertença ao grupo – com a partilha de regras morais – que nos tornamos capazes de agir altruisticamente, colaborar com os outros e abandonar o nosso lado mais egoísta. Não porque pomos de parte os nossos interesses pessoais, mas porque agir em nome de um bem maior (o grupo) é agir em prol dos nossos interesses pessoais. Afinal, nunca teríamos triunfado se não fôssemos capazes de cooperar em grandes grupos e não é possível cooperar em grandes grupos sem uma moralidade partilhada.

É por esta razão que todas as tentativas políticas de enfraquecer a moralidade comum (que nas sociedades modernas foi criada em torno do estado-nação) encontram tanta resistência: ideias utópicas como de países de portas abertas, mundo sem fronteiras ou sociedades cosmopolitas estão, por definição, condenadas ao fracasso pois assentam na convicção de que não é necessária uma identidade cultural comum que ligue as pessoas entre si. Mas uma sociedade sem uma moralidade partilhada – uma sociedade em que somos só indivíduos a perseguir objetivos própriosé um mundo de animais solitários e deprimidos, em permanente conflito uns com os outros e com hipóteses de sobrevivência diminuídas.

De certa maneira, a maioria das pessoas sente isto. Pelo que não é surpreendente que as populações se mobilizem, democraticamente, para demonstrar a impossibilidade das sociedades cosmopolitas.

MUNDO      SOCIEDADE      POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 20):

Rui Lima: Patrícia Fernandes , os seus artigos revelam muito saber e conhecimento da nossa sociedade e do Homem, obrigado por os escrever. Há 2 frases que retém a minha atenção: «…não é possível cooperar em grandes grupos sem uma moralidade partilhada.» “…é um mundo de animais solitários e deprimidos, em permanente conflito uns com os outros e com hipóteses de sobrevivência diminuídas » Vejo e vi a evolução das cidades na Europa nos últimos 40 anos posso confirmar o que escreve, não há a mínima colaboração entre povos de culturas diferentes, vivem de costas voltados até ao dia em que ficarão de frente. Temo esse dia, é o que já acontece em outras áreas do mundo onde países são mantas de retalho culturais, acredito que o Líbano é o futuro da Europa .         Carlos Chaves: Cara Patrícia Fernandes, envie este seu texto para o Largo do Rato número 2 e para Rua da Palma número 268, ambas em Lisboa, respectivamente a sede do PS e do bloco de esquerda!         Coxinho: Contributo importante -- que poderia ser decisivo se honestamente analisado pelos esquerdóides -- para a compreensão dos fenómenos de falência das tentativas de multiculturalização. Tudo o que é forçado e contraria a natureza sofre, naturalmente, uma reacção de rejeição.         Português de bem: O multiculturalismo não funciona em lado nenhum no mundo. Digam-me um, apenas um país no mundo em que várias culturas coabitem de forma amistosa e harmoniosa. Não existe. A única maneira de haver alguma "paz podre", é uma das culturas ir abdicando da sua própria cultura para aceitar a dos outros. Curiosamente, são sempre os europeus que fazem isso. Porquê? Porque têm medo de serem chamados de racistas ou xenófobos e, como tal, os outros vivem a sua vida e a sua cultura tranquilamente. Em Portugal vêem-se praças invadidas de islâmicos a rezar, mas os que defendem isto são os mesmos que criticam quando cristãos se juntam para eventos em Portugal e que dizem que Portugal é um país laico. O multiculturalismo não funciona sem que quem acolhe abdique dos seus princípios e valores culturais, e é assim que se destrói uma sociedade, uma cultura, um país.                 Francisco Almeida: Como sempre, um texto pedagógico. Na aplicação à política nacional, além do óbvio à esquerda, explica bem porque não posso votar IL apesar de me identificar com o seu programa económico. Ou porventura estou a complicar e a IL é mais um partido de esquerda.                    Paul C. Rosado: Mais um excelente texto, baseado na ciência e não na fantasia esquerdista.               José Paulo Castro: Simples e demonstrado.                     Mafra FM: Magnífico e instrutivo artigo - obrigado.                  Maria Isabel Ferreira: Muito claro e objectivo. As razões do fracasso das ideias globalistas e cosmopolitas estão espelhadas na revolta visceral, contra as políticas identitárias, que vão empurrando as pessoas, acantonadas e despojadas das suas crenças e valores, para a direita radical, a única que lhes acena com o regresso de valores e de uma moralidade que garanta a coesão social, ou seja, a ideia de pertença a um grupo alargado, previsível e seguro. O resto são utopias marxistas ou globalistas de uma sociedade idealizada, libertina, asséptica, controlada pelo Estado, censurada e expurgada de qualquer patriotismo ou nacionalismo, cosmopolita e diversa em cultura, género, raça, religião, etc.                     Duarte Rocha: Excelente!

Nenhum comentário: