Segundo a universalidade das regras criadas e impostas pelos homens a
cada homem, em tempos passados. O mal (ou o bem) é que os egoísmos competem com
os altruísmos, além das grandes divergências culturais, nos espaços actualmente
invadidos, que proporcionarão, por vezes, limitações comportamentais, segundo
as divergências entre os povos e os respectivos poderios culturais e económicos,
específicos de um multiculturalismo decididamente frenético nestes tempos da
fraternidade universal - com as orientações específicas das praxes hodiernas,
de inclinação preferencial pelo invasor fugitivo do seu país instável. É o que
subentendemos do magnífico estudo de PATRÍCIA FERNANDES.
A impossibilidade da sociedade cosmopolita
Se reconhecermos o valor da
identidade cultural, então a ideia da sociedade multicultural (onde diferentes
grupos culturais vivem a sua identidade) não é viável. Pelo menos em sociedades
democráticas.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola
de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 24 mar. 2025, 00:2020
1A sociedade cosmopolita
A célebre frase com que Kant conclui a
sua “Crítica da Razão Prática”– “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e
veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior
assiduidade delas se ocupa a reflexão: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim” – simboliza
um aspecto fundamental do seu pensamento, e que será recebido com todo o fulgor
pelo liberalismo: o conceito
de universalidade. Todos os
homens estariam sujeitos ao mesmo céu estrelado e encontrariam no seu espírito
a mesma lei moral, que a razão lhes impõe como imperativo categórico. As regras
morais – os deveres morais – valem, assim, para todos os homens, são universais.
É este universalismo que encontramos
igualmente na sua teoria do conhecimento: se não é possível conhecer a
realidade em si, uma vez que lidamos com o mundo a partir de estruturas
específicas (as condições de possibilidade do conhecimento), ainda assim é
possível falar de um modo de conhecer humano, uma vez que todos os homens
partilhariam essas estruturas cognitivas.
As consequências políticas e éticas
deste universalismo são claras. Apesar das
diferenças sociais e culturais, há um substrato comum partilhado por todos os
homens que permite chegar a uma compreensão comum, pelo que, através da
faculdade de comunicação partilhada racionalmente, seria possível encontrar
princípios éticos universais – e, até, aprovar uma «declaração universal» dos
direitos humanos.
Se partilhamos esse substrato comum,
então é possível o mundo pensado pelos estóicos, também eles partindo de uma
razão universal como aquilo que nos liga: é
possível – até desejável – um mundo cosmopolita com uma convivência pacífica e
saudável entre pessoas de diferentes culturas e nacionalidades. Afinal,
todas as sociedades são compostas por indivíduos e os indivíduos, partilhando
uma racionalidade comum, podem chegar a entendimentos morais e políticos comuns
e criar sociedades diversas e pacíficas. “Não
sou ateniense, nem grego. Mas sim um cidadão do mundo”, como dizem os azulejos em Lisboa.
2A identidade cultural
Após
a publicação da «Crítica da
Razão Pura», Kant recebeu de dois autores alemães uma
crítica poderosa ao seu pensamento. Um desses filósofos foi J.
G. Hamann, que Isaiah Berlin, em The roots of
romanticism, considera “a primeira pessoa a declarar guerra,
da forma mais aberta, violenta e completa, ao Iluminismo”. Esse ataque resultava de Hamann
questionar o universalismo da razão kantiana: Kant teria desprezado o papel da
linguagem ao pensar as categorias que condicionam o acesso à coisa em si,
considerando-as como universais quando eram simplesmente reflectidas a partir
da língua alemã. Outras línguas, com outras categorias e diferentes estruturas,
conheceriam mundos diferentes.
Mas será o contributo de J. G. von
Herder a influenciar mais fortemente um
caminho paralelo às Luzes e àquele universalismo, ao chamar a atenção para o
papel da linguagem e da cultura no modo como pensamos e experienciamos o mundo
à nossa volta. A
experiência do mundo não seria, assim, universal, mas seria condicionada pelas
normas culturais a que cada indivíduo está sujeito. Estava aberto o caminho para o romantismo
ou um certo particularismo nacional: o mundo não seria constituído por
indivíduos dotados da mesma Razão transcendental, mas por indivíduos que
pertencem a grupos culturais distintos.
Herder será
uma referência não só para os pensadores nacionalistas do século XIX, mas
também para o domínio da antropologia cultural no século XX (e a sua perspetiva
relativista), com uma influência particular nas teorias multiculturalistas.
Um dos aspectos mais curiosos do
multiculturalismo é o facto de a sua principal virtude – o reconhecimento da
importância da cultura na formação da identidade – não ser tomada de modo
consequente. De acordo com o espírito multiculturalista, o nosso modo de ver o
mundo encontra-se enraizado numa cultura particular e o acto de desenraizar alguém – impondo-lhe outra cultura ou uma norma
cosmopolita – é um exercício de violência sobre essa pessoa. Mas este argumento
conduz-nos à impossibilidade da sociedade cosmopolita.
Se
reconhecermos o valor da identidade cultural, então a ideia de uma
sociedade multicultural e multiculturalista
– composta por diferentes grupos culturais que podem viver de forma plena a sua
identidade – deixa de ser viável. Pelo menos, em sociedades democráticas.
3A identidade nacional
Em A Mente Justa, o psicólogo social Jonathan Haidt debruça-se
sobre o estudo da moralidade como parte do nosso design evolutivo. De acordo com Haidt, evoluímos para nos
tornarmos seres morais pelo facto de a moralidade se revelar uma ferramenta
fundamental para a sobrevivência de animais sociais, como os humanos, que vivem
em grandes grupos.
Desde
a década de 1970 que o gene egoísta de Richard Dawkins procurou explicar o comportamento humano como
resultado da vontade egoísta de prolongar a sua existência genética. Esta ideia explicaria porque agimos
altruisticamente para com os membros das nossas famílias, não só com os descendentes
directos, mas também para com outros mais distantes. Mas como
explicar o altruísmo fora do parentesco?
Durante algum tempo levantou-se a
hipótese do altruísmo recíproco – ajudar na esperança de vir a ser ajudado
ou por ter recebido ajuda antes –, mas a hipótese mais promissora veio de uma
perspectiva grupal: somos egoístas
quando competimos com membros do nosso grupo, mas tornamo-nos solidários dentro
e para com os membros do nosso grupo quando este está em competição (não necessariamente em conflito) com
outros grupos.
Trata-se da hipótese de selecção
multinível e é a partir desta hipótese que Haidt formula a sua teoria da mente
moral: a moralidade serviria como ferramenta por fortalecer
as ligações dentro do grupo e aumentar assim as hipóteses de colaboração e
sobrevivência. Ligamo-nos aos membros
do nosso grupo por regras de moralidade comuns, valorizando certos princípios e
sendo moralistas uns com os outros por forma a garantir que todos os membros do
grupo se mantêm ligados a essas regras. Como diz Haidt:
“Se
vir uma centena de insectos a trabalharem juntos com vista a um objectivo
comum, pode apostar que são irmãos. Mas, quando vê cem pessoas a trabalhar num
estaleiro de construção ou a marchar para a guerra, ficaria surpreendido se
todos se revelassem membros de uma grande família. Os seres humanos são os
campeões do mundo em cooperação para lá dos laços familiares, e em grande medida
fazemo-lo ao criar sistemas formais e informais de responsabilidade.”
A hipótese de Haidt oferece-nos pistas
importantes para reflectir sobre a
possibilidade da sociedade cosmopolita. Por um lado, Haidt é um
universalista (subscrevendo a hipótese kantiana) na medida em que entende que o ser humano evoluiu no
sentido de se tornar um ser moral; por outro lado, Haidt subscreve a hipótese particularista (como a levantada pelos
identitários culturais) de que cada cultura apresenta a sua própria moralidade,
permitindo a distinção entre os grupos e oferecendo um sentido de identidade.
E é esta dimensão de pertença ao grupo
que se revela fundamental: pois é ela
que nos permite superar a nossa natureza egoísta. É pela sensação de pertença ao grupo – com a partilha de regras
morais – que nos tornamos capazes de agir altruisticamente, colaborar com os
outros e abandonar o nosso lado mais egoísta. Não porque pomos de parte os nossos
interesses pessoais, mas porque agir em nome de um bem maior (o grupo) é agir em
prol dos nossos interesses pessoais. Afinal, nunca teríamos
triunfado se não fôssemos capazes de cooperar em grandes grupos e não é
possível cooperar em grandes grupos sem uma moralidade partilhada.
É por esta razão que todas as
tentativas políticas de enfraquecer a moralidade comum (que nas sociedades modernas foi criada em
torno do estado-nação) encontram tanta resistência: ideias utópicas como de países de portas
abertas, mundo sem fronteiras ou sociedades cosmopolitas estão, por definição,
condenadas ao fracasso pois assentam na convicção de que não é necessária uma
identidade cultural comum que ligue as pessoas entre si. Mas uma
sociedade sem uma moralidade partilhada – uma sociedade em que somos só
indivíduos a perseguir objetivos próprios – é
um mundo de animais solitários e deprimidos, em permanente conflito uns com os
outros e com hipóteses de sobrevivência diminuídas.
De certa maneira, a maioria das pessoas sente isto. Pelo que não é
surpreendente que as populações se mobilizem, democraticamente, para demonstrar
a impossibilidade das sociedades cosmopolitas.
COMENTÁRIOS (de 20):
Rui Lima: Patrícia
Fernandes , os seus artigos revelam muito saber e conhecimento da nossa
sociedade e do Homem, obrigado por os escrever. Há 2 frases
que retém a minha atenção: «…não é possível cooperar em grandes grupos sem uma
moralidade partilhada.» “…é um mundo de animais solitários e deprimidos, em
permanente conflito uns com os outros e com hipóteses de sobrevivência
diminuídas » Vejo e vi a evolução das cidades na Europa nos últimos 40 anos posso
confirmar o que escreve, não há a mínima colaboração entre povos de culturas
diferentes, vivem de costas voltados até ao dia em que ficarão de frente. Temo
esse dia, é o que já acontece em outras áreas do mundo onde países são mantas
de retalho culturais, acredito que o Líbano é o futuro da Europa . Carlos Chaves: Cara Patrícia Fernandes, envie
este seu texto para o Largo do Rato número 2 e para Rua da Palma número 268,
ambas em Lisboa, respectivamente a sede do PS e do bloco de esquerda! Coxinho: Contributo importante -- que
poderia ser decisivo se honestamente analisado pelos esquerdóides -- para a
compreensão dos fenómenos de falência das tentativas de multiculturalização.
Tudo o que é forçado e contraria a natureza sofre, naturalmente, uma reacção de
rejeição. Português
de bem: O multiculturalismo não funciona em lado nenhum no mundo. Digam-me um,
apenas um país no mundo em que várias culturas coabitem de forma amistosa e
harmoniosa. Não existe. A única maneira de haver alguma "paz podre",
é uma das culturas ir abdicando da sua própria cultura para aceitar a dos
outros. Curiosamente, são sempre os europeus que fazem isso. Porquê? Porque
têm medo de serem chamados de racistas ou xenófobos e, como tal, os outros
vivem a sua vida e a sua cultura tranquilamente. Em Portugal vêem-se praças
invadidas de islâmicos a rezar, mas os que defendem isto são os mesmos que
criticam quando cristãos se juntam para eventos em Portugal e que dizem que
Portugal é um país laico. O multiculturalismo não funciona sem que quem acolhe
abdique dos seus princípios e valores culturais, e é assim que se destrói uma
sociedade, uma cultura, um país. Francisco
Almeida: Como sempre, um texto pedagógico. Na aplicação à política nacional, além do
óbvio à esquerda, explica bem porque não posso votar IL apesar de me
identificar com o seu programa económico. Ou porventura estou a complicar e a
IL é mais um partido de esquerda. Paul C.
Rosado: Mais um
excelente texto, baseado na ciência e não na fantasia esquerdista. José
Paulo Castro: Simples e demonstrado. Mafra
FM: Magnífico e
instrutivo artigo - obrigado. Maria
Isabel Ferreira: Muito claro e objectivo. As razões do fracasso das ideias globalistas e
cosmopolitas estão espelhadas na revolta visceral, contra as políticas
identitárias, que vão empurrando as pessoas, acantonadas e despojadas das suas
crenças e valores, para a direita radical, a única que lhes acena com o
regresso de valores e de uma moralidade que garanta a coesão social, ou seja, a
ideia de pertença a um grupo alargado, previsível e seguro. O resto são utopias
marxistas ou globalistas de uma sociedade idealizada, libertina, asséptica,
controlada pelo Estado, censurada e expurgada de qualquer patriotismo ou
nacionalismo, cosmopolita e diversa em cultura, género, raça, religião, etc. Duarte Rocha: Excelente!
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