segunda-feira, 10 de março de 2025

Passar rasteiras


Também era um costume nos nossos tempos de adolescência malandra. Eu tenho esse pecado na minha consciência, que provocou um estatelamento desajeitado, como foram tantos estatelamentos meus, nas correrias infantis. Mas escada-abaixo, nunca nos passaria pela cabeça, nem mesmo no mundo de hoje, tão habitado por vilezas que deixam o Belzebu a milhas de distância em qualidade prática do Mal, a merecer o fundo do poço ou até mesmo um poço sem fundo, buraco negro idêntico ao das suas consciências tenebrosas. Mas, sim, houvesse quem as empurrasse, a essas vilezas, e não em sonhos, que pecado não seria e só o paraíso mereceria.

Escada abaixo

Quando uma coisa nos passa pela cabeça, a noção de proibição absoluta vai por água abaixo. Resta-nos esperar que isso se passe quando não estamos acordados.

MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 09 mar. 2025, 00:171

De onde vem o sentimento que faz pouco do budista em nós? Como é que um santo pode perder a paciência? Que vantagens tem o infanticídio? Perguntas destas admitem várias respostas. Alguns bem-entendido não concederão nenhuma. Para esses, os santos não podem por definição perder a paciência, o infanticídio nunca é atraente, e a placidez alpina triunfa sempre. Outros entretanto secretamente, ou em voz baixa, reconhecerão que as respostas a perguntas dessas podem muito bem depender das circunstâncias.

É todavia imoral deliberar com tempo sobre as circunstâncias particulares em que o infanticídio pode fazer sentido; e também imaginar a mais famosa rainha-mãe da antiguidade vestida de monge budista a espezinhar canteiros completos de irmãs flores. Deliberar maduramente é demasiadas vezes o primeiro passo para admitir todas as justificações. Compreender que alguém tenha feito uma coisa anima-nos a saltar por cima do inquérito à verdadeira natureza das suas razões. A compreensão dos outros pode afugentar a distinção entre perceber porque alguém fez uma coisa e aplaudir quem a fez.

Dá-se não obstante o caso de que mesmo os budistas, os santos e as rainhas-mães (ou de modo geral os educadores infantis), nobres como geralmente são, não são de ferro. Admitir que nunca fariam uma coisa é uma profissão de voz alta que só ocorre quando estão acordados e lúcidos. Um santo de cabeça perdida não está porém completamente acordado. Como o poeta, também dormita; e é talvez só porque dormitou que se tornou subsequentemente santo. De facto, quando uma coisa nos passa pela cabeça, a noção de proibição absoluta vai por água-abaixo. Resta-nos esperar que isso se passe quando não estamos acordados; embora essa esperança só nos acometa quando estamos acordados.

É nestas circunstâncias que a vontade de empurrar outras pessoas pela escada abaixo parece viável.  Há qualquer coisa nas escadas, sobretudo nas que descem, que nas mentes meio-acordadas ajuda e encoraja a precipitação. Todos reconhecemos que as escadas das nossas escolas tinham vantagens singulares. Corríamos nesse tempo por elas abaixo em grande algazarra, empurrando-nos uns aos outros com desprendimento para cascatas de degraus que entonteciam, e que nos permitiam sem dificuldade a correcção dos costumes alheios por que a escola é famosa. A eficácia dessas escadas antigas perdura ainda em nós.

Dá-se assim ainda o caso de, antes de adormecer, ou por um momento mesmo acordados, o nosso olhar de lince conseguir localizar com uma precisão mais particular o objecto da nossa fúria. Ei-lo que se aproxima sem saber de umas escadas precipitosas. Ter uma voz enervante, ou usar óculos, só nos aumenta a fúria; mas a fúria pode em princípio aplicar-se a qualquer pessoa sem óculos; ou da televisão. Aproximamo-nos mentalmente com passos silenciosos do poço da escada, estendemos a mão ou outro instrumento de justiça que esteja à mão, e confiamo-nos às disposições relevantes da lei da gravidade.

ERRO EXTREMO      OBSERVADOR

COMENTÁRIOS:

Américo Silva: Cerca de 30 mulheres antifascistas manifestaram-se nuas em Paris, protegidas pela polícia, menos sorte terá tido uma outra que não era antifascista nem foi protegida pela polícia, e foi atirada pelas escadas do metro abaixo.

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