Também era um costume nos nossos tempos
de adolescência malandra. Eu tenho esse pecado na minha consciência, que
provocou um estatelamento desajeitado, como foram tantos estatelamentos meus, nas
correrias infantis. Mas escada-abaixo, nunca nos passaria pela cabeça, nem
mesmo no mundo de hoje, tão habitado por vilezas que deixam o Belzebu a milhas
de distância em qualidade prática do Mal, a merecer o fundo do poço ou até mesmo
um poço sem fundo, buraco negro idêntico ao das suas consciências tenebrosas. Mas,
sim, houvesse quem as empurrasse, a essas vilezas, e não em sonhos, que pecado
não seria e só o paraíso mereceria.
Escada abaixo
Quando uma coisa nos passa pela
cabeça, a noção de proibição absoluta vai por água abaixo. Resta-nos esperar
que isso se passe quando não estamos acordados.
MIGUEL TAMEN Colunista
do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da
Literatura) na Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 09
mar. 2025, 00:171
De onde vem o sentimento que faz
pouco do budista em nós? Como é que um santo pode perder a paciência? Que
vantagens tem o infanticídio? Perguntas destas admitem várias respostas. Alguns
bem-entendido não concederão nenhuma. Para esses, os santos não podem por
definição perder a paciência, o infanticídio nunca é atraente, e a placidez
alpina triunfa sempre. Outros entretanto secretamente, ou em voz baixa,
reconhecerão que as respostas a perguntas dessas podem muito bem depender
das circunstâncias.
É
todavia imoral deliberar com tempo sobre as circunstâncias particulares em que
o infanticídio pode fazer sentido; e também imaginar a mais famosa rainha-mãe da
antiguidade vestida de monge budista a espezinhar canteiros completos de irmãs
flores. Deliberar maduramente é demasiadas vezes o primeiro
passo para admitir todas as justificações. Compreender que alguém tenha feito uma
coisa anima-nos a saltar por cima do inquérito à verdadeira natureza das suas
razões. A compreensão dos outros pode
afugentar a distinção entre perceber porque alguém fez uma coisa e aplaudir
quem a fez.
Dá-se não obstante o caso de que mesmo os budistas, os santos e as
rainhas-mães (ou de modo geral os educadores infantis), nobres como geralmente
são, não são de ferro. Admitir que
nunca fariam uma coisa é uma profissão de voz alta que só ocorre quando estão
acordados e lúcidos. Um santo de cabeça perdida não está porém
completamente acordado. Como o
poeta, também dormita; e é talvez só porque dormitou que se tornou
subsequentemente santo. De facto,
quando uma coisa nos passa pela cabeça, a noção de proibição absoluta vai por
água-abaixo. Resta-nos esperar que isso se passe quando não estamos
acordados; embora essa esperança só nos acometa quando estamos acordados.
É nestas circunstâncias que a vontade de
empurrar outras pessoas pela escada abaixo parece viável. Há
qualquer coisa nas escadas, sobretudo nas que descem, que nas mentes
meio-acordadas ajuda e encoraja a precipitação. Todos reconhecemos que as
escadas das nossas escolas tinham vantagens singulares. Corríamos nesse tempo
por elas abaixo em grande algazarra, empurrando-nos uns aos outros com
desprendimento para cascatas de degraus que entonteciam, e que nos permitiam
sem dificuldade a correcção dos costumes alheios por que a escola é famosa. A eficácia dessas escadas antigas perdura
ainda em nós.
Dá-se assim ainda o caso de, antes de
adormecer, ou por um momento mesmo acordados,
o nosso olhar de lince conseguir localizar com uma precisão mais particular o
objecto da nossa fúria. Ei-lo que
se aproxima sem saber de umas escadas precipitosas. Ter uma voz enervante, ou
usar óculos, só nos aumenta a fúria; mas a fúria pode em princípio aplicar-se a
qualquer pessoa sem óculos; ou da televisão. Aproximamo-nos mentalmente com
passos silenciosos do poço da escada, estendemos a mão ou outro instrumento de
justiça que esteja à mão, e confiamo-nos às disposições relevantes da lei da
gravidade.
COMENTÁRIOS:
Américo Silva: Cerca
de 30 mulheres antifascistas manifestaram-se nuas em Paris, protegidas pela
polícia, menos sorte terá tido uma outra que não era antifascista nem foi
protegida pela polícia, e foi atirada pelas escadas do metro abaixo.
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