sábado, 29 de março de 2025

Sim, está escrito


Escreveu-o Camilo, escreveu-o Eça, escreve-o também, hoje, Manuel Barbosa de Matos, Manuel Fúria de pseudónimo literário, em análise crítica que me parece de primor. Um texto enviado pelo Ricardo, que o colheu na Internet, um texto lúcido, um texto hipocondríaco, que é a nossa doença de estimação, virados que somos sobre o nosso mundo de busca de perfeição pessoal, talvez, responsável pelo agreste que imputamos na imperfeita conduta alheia. Deve estar tudo certo, aquilo que se diz de Montenegro e de que ele não se preocupa, aparentemente. Somos autocríticos, desde que outros nos descreveram – com maior ou menor ironia, talvez de íntima fúria - (caso de Eça, que o confrontou com povos mais “trabalhados” - moralmente falando - que conheceu) – com maior ou menor seriedade, caso de Camilo, por íntima convicção de postura analítica de extremo ardor de vivência sofrida. Mas com efeito, os comportamentos das pessoas da saliência pública estão na berra, visíveis que se tornam nos meios de comunicação, mais ou menos directos. Um desses comportamentos foi, ultimamente, desde a sua aparição como pretendente à esfera governativa, o de Luís Montenegro, de riso pendente, senhor de si e sem dar cavaco sobre atitudes tomadas, julgo que considerando-se acima do mundo que decidiu dirigir. Não gostei, de facto, dos seus ares de riso indiferente a julgamentos possíveis de quem esperava mais de um certo ar que empunha, de aparente simpatia humana. Que o seu sorriso exibe – se não for antes, de superioridade e altivez, que não terão razão de ser. Não deixámos de detestar, todavia, os ataques de André Ventura, no seu alarde provocatório altissonante, de quem, provavelmente, desejava para si o cargo de Montenegro. É certo, para destruir um status de inovação política decididamente pouco sagaz, em tantos aspectos, que uma revolução já cinquentenária introduziu no nosso país.

«Esta crónica não é sobre o caso Montenegro. É sobre a diferença entre ver Portugal como Eça ou como Camilo. Eça ironizava o País. Camilo sofria com ele. Eu prefiro o segundo. Portugal não se explica com indignação elegante. Explica-se com vinho, filhos ao colo, e o Eugénio a dizer: “Fechar? Fechar para quê?” O País não se corrige. Reconhece-se.

O verdadeiro escritor amaldiçoa o país que escreve. Depois de o lermos, já não sabemos se ele o inventou ou se as coisas sempre foram assim. Camilo não descreveu o seu tempo — condenou-nos para sempre ao seu nome. Desde então, não somos outra coisa, senão personagens suas: trágicos, sôfregos, envergonhados. E, de tempos a tempos, há um caso que o confirma com lucidez.

Luís Montenegro é uma dessas personagens. Não por acaso — por fidelidade. Porque, em Portugal, o romance é sempre este.

O caso da empresa de Luís Montenegro foi escrito com cem anos de antecedência. O protagonista é o bacharel de província, de nome limpo, ambicioso sem pressa, educado sem subtilezas. Crente na honra — mas disposto a dobrá-la pela família. Convencido de que tudo se resolve, tudo se entende e, no fim, tudo se perdoa.

É uma história sem vilões. Em vez deles, fidalgos hesitantes, repartições indecisas, quotas mal passadas, vinho em rascunho, contratos que cheiram a papel antigo. E há o povo — que não odeia o esquema, desde que seja próximo, paternal, nortenho e venha com a melhor das desculpas: “foi pelos filhos”. Desde que não lhe custe directamente, tudo se aceita.

Ainda na semana passada, comentava o caso com o Eugénio e perguntei: — Então a empresa é para fechar?

Na pausa de rachar a lenha, bruto como o Rio Vizela, o Eugénio resumiu tudo: — Fechar? Fechar para quê? Aquilo era só facturar!

Facturar, em Portugal, é vitalidade. Sempre. Legislar, ao lado disto, é um entretém ocioso de utilidade esotérica: serve para ocupar o tempo e disfarçar o embaraço de quem acredita na força das regras.

A frase do Eugénio ficou a latejar. Não porque seja nova, mas porque ninguém a diz com vergonha. Tem aquele aroma a terra molhada, o travo do vinho novo, e o conforto da moral que já não se discute. Lisboa ouve e enternece-se. Vizela ri-se. E o País assente. O Eugénio sabe. O Eugénio é Portugal.

Camilo também sabia. Sempre soube que a nossa tragédia verdadeira não é moral — é doméstica. Que o português aceita tudo, desde que envolva uma casa, um nome de família e um sonho vagamente enológico.

Montenegro montou uma empresa. A empresa facturava. Os filhos herdaram as quotas. O PS apontou o dedo. O Chega ameaçou cortá-lo. O Governo caiu — e ninguém percebeu porquê.

A personagem está bem desenhada. Vem do Norte. É formal. É educada. Registou uma marca de vinho no meio da tempestade — com serenidade e método. Como quem sabe que o povo perdoa tudo, menos a hesitação. Não houve escândalo. Houve normalidade. O “isto resolve-se” tornado doutrina. O jeitinho como modelo de sociedade.

Montenegro é o bacharel que acredita na sua própria compostura até ao momento em que ela se torna um empecilho. A integridade, para ele, não é uma convicção: é uma herança. E, como todas as heranças, é passível de partilha, doação, adiamento ou mal-entendido.

A corrupção, aqui, não é fria nem criminosa. É morna. Caseira. Conivente. Só escandaliza se vier de Lisboa, se for tecnocrática, se falar com distanciamento. Mas se trouxer vinho, sotaque nortenho e filhos ao colo —então é outra coisa. É humanidade.

Quando Marcelo lhe chamou “rural”, não foi só um insulto de ocasião — foi o reacender da tensão entre o velho verniz liberal e a teimosia da província. Foi Eça a levantar-se do panteão, escandalizado com Camilo. Foi o Portugal elegante, estrangeirado, a olhar de cima para o Portugal trágico, bruto e afectivo. Foi a pátria dividida: azuis e brancos contra vermelhos e azuis; os que se ralam com as aparências e os que só querem que os filhos tenham o que comer.

O Governo lá caiu. Montenegro, por enquanto, não. Mas se cair, cairá de pé, entre pipas e escrituras, convencido de que fez tudo certo.

E o Eugénio, cheirando a molhado e ressoando como o barulho da enxada no granito, há-de murmurar:
— Era um dos nossos.

Está escrito. Por Camilo.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

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