Analisados cientificamente –
filosoficamente - por PATRÍCIA
FERNANDES. E tudo por via das descolonizações, na origem destes
estudos moralistas, criadores de compromissos étnicos e éticos … ou talvez justificativos
da falta destes últimos, por vezes, sobretudo da parte dos motivados para lhes
apontar os efeitos negativos, no caso das colonizações.
Factos e percepções
Talvez noutro planeta, em que
tenhamos mentes que procuram a verdade em vez de mentes morais, as políticas
cosmopolitas façam sentido. Neste mundo convém que estejam de acordo com a
nossa natureza.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola
de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 31 mar. 2025, 00:201
1A hipótese de Gláucon
Continuemos com Jonathan
Haidt e a sua hipótese, levantada no livro A mente justa, de que a moralidade é uma ferramenta adaptativa na medida em que
possibilita aos homens cooperarem em grandes grupos e sem relação de
parentesco, tornando-se, assim, mais capazes de garantir a sobrevivência.
Haidt recorre ao segundo livro d’A República, quando Platão coloca na boca de Gláucon a experiência do anel de Giges: esse anel
permite que nos tornemos invisíveis e, por isso, capazes de cometer todos os actos
que nos sejam favoráveis sem sermos vistos pelos outros. Segundo Gláucon, nenhum homem que possuísse um tal anel agiria com
justiça:
“não haveria ninguém, ao que parece, tão
inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se
abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o
que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse,
matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre
os homens, como se fosse igual aos deuses.”
De acordo com esta hipótese, ninguém
é justo por vontade própria, mas apenas por constrangimento. É o
julgamento dos outros – é porque somos seres morais e moralistas – que nos obriga a adequar o nosso comportamento às regras morais da sociedade em que
estamos inseridos. A hipótese de Gláucon está, assim, de acordo com a
ideia de que a moralidade faz parte do nosso design
evolutivo para permitir a cooperação: é mais importante ser visto como
agindo moralmente do que ser moral pois é isso que gera confiança nos outros
membros do grupo.
A perspectiva oposta – a de Platão, expressa por Sócrates no
diálogo – é designada como perspetiva racionalista: a
razão orienta-nos no conhecimento da justiça e o comportamento adequa-se a esse
conhecimento. De acordo com Sócrates, é mais importante ser virtuoso do que parecer virtuoso – o que nos dá uma concepção intrigante da
natureza humana: as pessoas seguiriam princípios
que consideram justos mesmo que parecessem injustos aos olhos dos outros. Devemos,
provavelmente, a esta visão de Platão a ideia de que os
filósofos são pessoas excêntricas – embora
não especialmente mais
virtuosas do que os
restantes mortais.
As religiões (sobretudo as monoteístas) revelam-se, neste sentido, mais
perspicazes do que Platão:
a existência de um Deus que tudo vê e tudo sabe torna o anel de Giges
ineficaz. E daí que
tudo seja possível após a morte de Deus: sem esse constrangimento moral, os
limites ao comportamento do homem tornam-se frágeis – demasiado frágeis quando
somos demasiado humanos.
2Abelhas e chimpanzés
Jonathan Haidt propõe que pensamos a
natureza humana como sendo 90%
chimpanzé (e, nessa medida, somos
eminentemente egoístas, na busca permanente de satisfazer objectivos
próprios) e 10% abelha (porque
somos capazes de colaborar em grupos maiores). Essa competência
colaborativa permite superar o nosso egoísmo ao activar o nosso lado altruísta
e solidário e é accionada como um
interruptor, a que Haidt chama interruptor-colmeia.
O interruptor-colmeia faz com que
sintamos a pertença ao grupo e fortalece as nossas relações dentro desse grupo
através de duas ferramentas principais: a oxitocina e os neurónios-espelho. Mas há um
aspecto relevante a reter: estas ferramentas funcionam apenas dentro do
grupo e não produzem efeito para a humanidade em sentido amplo. Temos
mentes grupais, evoluímos
dentro de tribos, e é por essa razão que a investigação em psicologia evolutiva mostra que somos mais
solidários e empáticos para com aqueles que se assemelham a nós.
Mais uma vez, a percepção é
fundamental. As pessoas que
se parecem connosco accionam o interruptor-colmeia e quando não há essa
semelhança física precisamos de sinalizações de pertença ao grupo, como
encontramos nos estudos etnográficos que descrevem códigos de pintura e
vestuário. Mas também o sabemos por experiência própria quando vamos ao futebol e sentimos, na
aproximação ao estádio do nosso clube, que estamos a chegar a casa.
O que vestimos e como nos comportamos
constituem sinais que enviamos permanentemente aos outros – e, acima
de tudo isto, o modo como falamos. A língua liga-nos de maneira muito intensa e é por isso que
tendemos a sentir desconforto quando estamos no nosso país e não ouvimos falar
português à nossa volta: não nos sentimos em casa, no nosso grupo, em segurança. E é também por isso que tendemos a
sentir-nos melhor em países que falam a nossa língua e nos sentimos ligados a
essas pessoas de forma mais intensa do que a pessoas de outras nacionalidades.
Isto acontece porque a sinalização que nos é dada pela língua
(e pelos restantes elementos) é a de pertença à mesma moralidade e isso activa
o nosso lado cooperativo e diminui a ansiedade competitiva que
sentimos quando não estamos entre os nossos. É uma reacção biológica
natural: quando não estamos no nosso grupo, sentimo-nos inseguros.
3Factos e perceções
Considerando os aspectos anteriores, a oposição
entre factos e percepções, que tem marcado o espaço público entre nós nos últimos
meses, deve ser enquadrada como mais um exemplo de uma longa lista de
discussões que ignora o corpo e o modo como desenvolvemos esquemas mentais e
psicológicos no processo de evolução. Na verdade, o ser racional de Platão
– retomado por Descartes e Kant – é uma mera invenção filosófica e todo o conhecimento acumulado ao longo do
século XX – desde a neurologia à psicologia evolutiva – demonstram os erros antropológicos dessa hipótese
filosófica.
Em Os perigos da percepção, BOBBY
DUFFY
enumera a longa lista de vieses e limitações que condicionam a nossa forma
de pensar e recupera as estratégias que têm vindo a ser propostas por muitos
investigadores a partir da seguinte constatação: os seres
humanos dificilmente cedem ou alteram as suas ideias perante factos – a nossa mente não evoluiu para se tornar
um cientista na procura pela verdade, como diz Jonathan Haidt. E por isso a opção de “atirar factos”
para cima das pessoas (como muitos políticos, jornalistas e comentadores habitualmente
fazem) é uma estratégia pouco sensata.
O primeiro problema com esta opção é a de que ela tende a produzir o
efeito contrário: sentimos
que estamos a ser atacados, insultados, diminuídos e tendemos a reagir
defensivamente. Em sentido oposto, os estudos revelam que devemos apelar ao lado mais emotivo –
tentando chegar ao elefante, na imagem de Haidt – e, por isso, estratégias
narrativas, que apelam às emoções e partem de histórias individuais, revelam-se
muito mais eficazes.
O segundo problema de “apelar a factos”
é que os “factos” políticos
tendem a ser produto de interpretações prévias. Um exemplo claro no que diz
respeito à discussão sobre imigração prende-se com o uso das palavras
“imigrante” e “cidadão português” e que se torna evidente quando se fala no
número de imigrantes em Portugal para mostrar que a “percepção” da maioria das
pessoas está errada. Pode parecer que estamos a falar de “factos”, mas estas informações resultam de um uso
disputável e ambíguo das palavras, uma vez que “cidadania” e “nacionalidade”
perderam hoje parte do seu sentido. No caso português, isso é bastante
claro na medida em que adquirir a
cidadania portuguesa se tornou um mero processo burocrático e de tal forma
facilitado que, nos últimos anos, se transformou numa mercadoria que cidadãos
estrangeiros ponderam adquirir, em comparação com outras, no mercado global da
“cidadania”. Mas a maioria das pessoas continua a olhar para
a cidadania a partir do seu sentido tradicional: como o reconhecimento de
pertença a uma comunidade que, dentro das fronteiras de um determinado
território, partilha um compromisso, uma responsabilidade e uma moralidade,
tornando possível cooperar para lá dos laços de parentesco e estabelecer projectos
colectivos para o futuro.
Em terceiro lugar, não vale a pena “atirar factos” para cima
das pessoas quando os factos ignoram a nossa dimensão biológica. É o
que acontece com o chamado benefício dos imigrantes para a segurança social. Os
sistemas contributivos do Estado Social assentam numa lógica de reconhecimento,
confiança e solidariedade: aceitamos (alguns com maior facilidade do que
outros) uma contribuição obrigatória para um bolo comum a partir de uma lógica
de solidariedade que se baseia no reconhecimento do outro como parte do nosso
grupo. Trata-se de
um sistema perspicaz e que funcionou durante décadas porque está de acordo com
a nossa lógica grupal: contribuímos porque reconhecemos que a outra pessoa
pertence ao nosso grupo. Mas a partir do momento em que nos
afastamos de uma solidariedade grupal e a segurança social passa a ser
apresentada como uma mera ferramenta burocrática, a lógica da solidariedade cai
por terra. Como demonstram os psicólogos sociais, nós não
produzimos oxitocina para com a humanidade – só para com o nosso grupo. E é por essa razão que David Goodhart escreve
há muitos anos sobre o problema da diversidade a mais (o artigo de
Goodhart é de 2004!). Um país too diverse
é um país que não mantém redes de confiança e solidariedade (é biologicamente
improvável) e o Brexit é, também, uma resposta democrática a essa
diversidade a mais – mesmo contra todos os factos que foram atirados para cima
dos britânicos.
Um quarto aspecto que importa
ter em conta é o facto de os estudos demonstrarem que, mais do que a proporção de imigrantes, o que importa é a rapidez com
que a mudança ocorre. Em Povo vs. Democracia, Yascha Mounk analisa as tendências de voto nas grandes
cidades (com maior diversidade étnica) por comparação com as pequenas cidades,
com menor diversidade mas em que a subida da imigração foi muito rápida. A reacção
das populações contra a imigração é muito mais forte nestas últimas porque
reagem a essa rápida mudança e à angústia demográfica que decorre de a
moralidade partilhada estar a ser posta em causa. A mudança rápida gera a sensação de que
todos podem accionar o anel de Giges e não respeitar as regras morais que eram
partilhadas e que estão muito para lá do mero cumprimento da lei. Esse
sentimento de perda e deslaçamento traduz-se numa sensação de insegurança e é
nesse sentido que as pessoas associam insegurança à imigração: não precisam de números para o sentir,
nem os “factos” desmentem a sensação que têm. A de que já não se sentem entre
os seus e que por isso não estão seguras.
Talvez num outro planeta, em que os
seres vivos tenham evoluído para ter mentes que procuram a verdade em vez de
mentes morais, estas políticas cosmopolitas façam sentido. Neste mundo, convém
que as políticas estejam de acordo com a nossa natureza.
COMENTÁRIOS
Fernando
Oliveira: Artigo, como os anteriores,
simplesmente Muito bom! Do maior interesse no mundo em que caímos.
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