segunda-feira, 31 de março de 2025

Os efeitos da globalização

 

Analisados cientificamente – filosoficamente - por PATRÍCIA FERNANDES. E tudo por via das descolonizações, na origem destes estudos moralistas, criadores de compromissos étnicos e éticos … ou talvez justificativos da falta destes últimos, por vezes, sobretudo da parte dos motivados para lhes apontar os efeitos negativos, no caso das colonizações.

Factos e percepções

Talvez noutro planeta, em que tenhamos mentes que procuram a verdade em vez de mentes morais, as políticas cosmopolitas façam sentido. Neste mundo convém que estejam de acordo com a nossa natureza.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 31 mar. 2025, 00:201

1A hipótese de Gláucon

Continuemos com Jonathan Haidt e a sua hipótese, levantada no livro A mente justa, de que a moralidade é uma ferramenta adaptativa na medida em que possibilita aos homens cooperarem em grandes grupos e sem relação de parentesco, tornando-se, assim, mais capazes de garantir a sobrevivência.

Haidt recorre ao segundo livro d’A República, quando Platão coloca na boca de Gláucon a experiência do anel de Giges: esse anel permite que nos tornemos invisíveis e, por isso, capazes de cometer todos os actos que nos sejam favoráveis sem sermos vistos pelos outros. Segundo Gláucon, nenhum homem que possuísse um tal anel agiria com justiça:

 “não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses.”

De acordo com esta hipótese, ninguém é justo por vontade própria, mas apenas por constrangimento. É o julgamento dos outrosé porque somos seres morais e moralistas – que nos obriga a adequar o nosso comportamento às regras morais da sociedade em que estamos inseridos. A hipótese de Gláucon está, assim, de acordo com a ideia de que a moralidade faz parte do nosso design evolutivo para permitir a cooperação: é mais importante ser visto como agindo moralmente do que ser moral pois é isso que gera confiança nos outros membros do grupo.

A perspectiva opostaa de Platão, expressa por Sócrates no diálogoé designada como perspetiva racionalista: a razão orienta-nos no conhecimento da justiça e o comportamento adequa-se a esse conhecimento. De acordo com Sócrates, é mais importante ser virtuoso do que parecer virtuoso – o que nos dá uma concepção intrigante da natureza humana: as pessoas seguiriam princípios que consideram justos mesmo que parecessem injustos aos olhos dos outros. Devemos, provavelmente, a esta visão de Platão a ideia de que os filósofos são pessoas excêntricasembora não especialmente mais virtuosas do que os restantes mortais.

As religiões (sobretudo as monoteístas) revelam-se, neste sentido, mais perspicazes do que Platão: a existência de um Deus que tudo vê e tudo sabe torna o anel de Giges ineficaz. E daí que tudo seja possível após a morte de Deus: sem esse constrangimento moral, os limites ao comportamento do homem tornam-se frágeis – demasiado frágeis quando somos demasiado humanos.

2Abelhas e chimpanzés

Jonathan Haidt propõe que pensamos a natureza humana como sendo 90% chimpanzé (e, nessa medida, somos eminentemente egoístas, na busca permanente de satisfazer objectivos próprios) e 10% abelha (porque somos capazes de colaborar em grupos maiores). Essa competência colaborativa permite superar o nosso egoísmo ao activar o nosso lado altruísta e solidário e é accionada como um interruptor, a que Haidt chama interruptor-colmeia.

O interruptor-colmeia faz com que sintamos a pertença ao grupo e fortalece as nossas relações dentro desse grupo através de duas ferramentas principais: a oxitocina e os neurónios-espelho. Mas há um aspecto relevante a reter: estas ferramentas funcionam apenas dentro do grupo e não produzem efeito para a humanidade em sentido amplo. Temos mentes grupais, evoluímos dentro de tribos, e é por essa razão que a investigação em psicologia evolutiva mostra que somos mais solidários e empáticos para com aqueles que se assemelham a nós.

Mais uma vez, a percepção é fundamental. As pessoas que se parecem connosco accionam o interruptor-colmeia e quando não há essa semelhança física precisamos de sinalizações de pertença ao grupo, como encontramos nos estudos etnográficos que descrevem códigos de pintura e vestuário. Mas também o sabemos por experiência própria quando vamos ao futebol e sentimos, na aproximação ao estádio do nosso clube, que estamos a chegar a casa.

O que vestimos e como nos comportamos constituem sinais que enviamos permanentemente aos outros – e, acima de tudo isto, o modo como falamos. A língua liga-nos de maneira muito intensa e é por isso que tendemos a sentir desconforto quando estamos no nosso país e não ouvimos falar português à nossa volta: não nos sentimos em casa, no nosso grupo, em segurança. E é também por isso que tendemos a sentir-nos melhor em países que falam a nossa língua e nos sentimos ligados a essas pessoas de forma mais intensa do que a pessoas de outras nacionalidades.

Isto acontece porque a sinalização que nos é dada pela língua (e pelos restantes elementos) é a de pertença à mesma moralidade e isso activa o nosso lado cooperativo e diminui a ansiedade competitiva que sentimos quando não estamos entre os nossos. É uma reacção biológica natural: quando não estamos no nosso grupo, sentimo-nos inseguros.

3Factos e perceções

Considerando os aspectos anteriores, a oposição entre factos e percepções, que tem marcado o espaço público entre nós nos últimos meses, deve ser enquadrada como mais um exemplo de uma longa lista de discussões que ignora o corpo e o modo como desenvolvemos esquemas mentais e psicológicos no processo de evolução. Na verdade, o ser racional de Platão – retomado por Descartes e Kant – é uma mera invenção filosófica e todo o conhecimento acumulado ao longo do século XX – desde a neurologia à psicologia evolutiva – demonstram os erros antropológicos dessa hipótese filosófica.

Em Os perigos da percepção, BOBBY DUFFY enumera a longa lista de vieses e limitações que condicionam a nossa forma de pensar e recupera as estratégias que têm vindo a ser propostas por muitos investigadores a partir da seguinte constatação: os seres humanos dificilmente cedem ou alteram as suas ideias perante factos – a nossa mente não evoluiu para se tornar um cientista na procura pela verdade, como diz Jonathan Haidt. E por isso a opção de “atirar factos” para cima das pessoas (como muitos políticos, jornalistas e comentadores habitualmente fazem) é uma estratégia pouco sensata.

O primeiro problema com esta opção é a de que ela tende a produzir o efeito contrário: sentimos que estamos a ser atacados, insultados, diminuídos e tendemos a reagir defensivamente. Em sentido oposto, os estudos revelam que devemos apelar ao lado mais emotivo – tentando chegar ao elefante, na imagem de Haidt – e, por isso, estratégias narrativas, que apelam às emoções e partem de histórias individuais, revelam-se muito mais eficazes.

O segundo problema de “apelar a factos” é que os “factos” políticos tendem a ser produto de interpretações prévias. Um exemplo claro no que diz respeito à discussão sobre imigração prende-se com o uso das palavras “imigrante” e “cidadão português” e que se torna evidente quando se fala no número de imigrantes em Portugal para mostrar que a “percepção” da maioria das pessoas está errada. Pode parecer que estamos a falar de “factos”, mas estas informações resultam de um uso disputável e ambíguo das palavras, uma vez que “cidadania” e “nacionalidade” perderam hoje parte do seu sentido. No caso português, isso é bastante claro na medida em que adquirir a cidadania portuguesa se tornou um mero processo burocrático e de tal forma facilitado que, nos últimos anos, se transformou numa mercadoria que cidadãos estrangeiros ponderam adquirir, em comparação com outras, no mercado global da “cidadania”. Mas a maioria das pessoas continua a olhar para a cidadania a partir do seu sentido tradicional: como o reconhecimento de pertença a uma comunidade que, dentro das fronteiras de um determinado território, partilha um compromisso, uma responsabilidade e uma moralidade, tornando possível cooperar para lá dos laços de parentesco e estabelecer projectos colectivos para o futuro.

Em terceiro lugar, não vale a pena “atirar factos” para cima das pessoas quando os factos ignoram a nossa dimensão biológica. É o que acontece com o chamado benefício dos imigrantes para a segurança social. Os sistemas contributivos do Estado Social assentam numa lógica de reconhecimento, confiança e solidariedade: aceitamos (alguns com maior facilidade do que outros) uma contribuição obrigatória para um bolo comum a partir de uma lógica de solidariedade que se baseia no reconhecimento do outro como parte do nosso grupo. Trata-se de um sistema perspicaz e que funcionou durante décadas porque está de acordo com a nossa lógica grupal: contribuímos porque reconhecemos que a outra pessoa pertence ao nosso grupo. Mas a partir do momento em que nos afastamos de uma solidariedade grupal e a segurança social passa a ser apresentada como uma mera ferramenta burocrática, a lógica da solidariedade cai por terra. Como demonstram os psicólogos sociais, nós não produzimos oxitocina para com a humanidade – só para com o nosso grupo. E é por essa razão que David Goodhart escreve há muitos anos sobre o problema da diversidade a mais (o artigo de Goodhart é de 2004!). Um país too diverse é um país que não mantém redes de confiança e solidariedade (é biologicamente improvável) e o Brexit é, também, uma resposta democrática a essa diversidade a mais – mesmo contra todos os factos que foram atirados para cima dos britânicos.

Um quarto aspecto que importa ter em conta é o facto de os estudos demonstrarem que, mais do que a proporção de imigrantes, o que importa é a rapidez com que a mudança ocorre. Em Povo vs. Democracia, Yascha Mounk analisa as tendências de voto nas grandes cidades (com maior diversidade étnica) por comparação com as pequenas cidades, com menor diversidade mas em que a subida da imigração foi muito rápida. A reacção das populações contra a imigração é muito mais forte nestas últimas porque reagem a essa rápida mudança e à angústia demográfica que decorre de a moralidade partilhada estar a ser posta em causa. A mudança rápida gera a sensação de que todos podem accionar o anel de Giges e não respeitar as regras morais que eram partilhadas e que estão muito para lá do mero cumprimento da lei. Esse sentimento de perda e deslaçamento traduz-se numa sensação de insegurança e é nesse sentido que as pessoas associam insegurança à imigração: não precisam de números para o sentir, nem os “factos” desmentem a sensação que têm. A de que já não se sentem entre os seus e que por isso não estão seguras.

Talvez num outro planeta, em que os seres vivos tenham evoluído para ter mentes que procuram a verdade em vez de mentes morais, estas políticas cosmopolitas façam sentido. Neste mundo, convém que as políticas estejam de acordo com a nossa natureza.

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COMENTÁRIOS

Fernando Oliveira: Artigo, como os anteriores, simplesmente Muito bom! Do maior interesse no mundo em que caímos.

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