Os rapazes liam muito Júlio Verne, mas não me lembro de ver essa leitura
entre as raparigas. Nós, as moças, preferíamos os livros de amor, de capa azul,
de escritoras francesas ou espanholas, as Dellys as Max du Veuzit - com a sua
obra-prima “John chauffeur russo” e outros -
e as Magalis, sucedâneos aos das colecções infantis e mais tarde a colecção de
capa amarela, que tinha obras-primas, com que íamos aperfeiçoando o
conhecimento, talvez falso, ou menos verdadeiro, do mundo. Mas não esqueço “CORAÇÃO”,
e “A MARAVILHOSA VIAGEM DO NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA”, que o professor
de português da minha irmã aconselhara às moças do 3º ano (7º actual) e juntamente
os livros das Irmãs Bronte e tantas obras de capa amarela, da minha abertura
para a vida do sentimento - naturalmente tabu na família, por pudor vindo dos
confins dos tempos. É certo que havia colegas de maior intelectualidade que não
se limitavam a esses livros para a adolescência, provavelmente possuidoras as
suas famílias de bibliotecas mais vastas, mas a estante do meu pai, além dos
livros de autores portugueses – que me foram muito úteis – nada tinha a ver com
os de capa azul da minha avidez devedora a quem mos emprestava. Mas a crónica
do Dr. JAIME NOGUEIRA PINTO é expressiva do conhecimento de um autor de
aventuras, que os rapazes, sobretudo, liam, e o retrato que dele faz de viageiro
pelo mundo, e dos prazeres que proporcionou, a si próprio e a tantos outros
rapazes, é bem expressivo e necessário nos dias de hoje, em que raramente
se vê a mocidade a ler, como “no meu tempo adolescente” ou mesmo no posterior,
do Dr. Jaime Nogueira Pinto, que não se
importa de assim prestar expressiva homenagem a um escritor enriquecedor do
saber viageiro pelo mundo, e não só…
«O grande imaginador: Nos 120 anos da morte de Júlio Verne»
Os heróis de Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como
que “homens novos”, homens de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de
um modo geral, os romances de Verne acabavam bem.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 29 mar. 2025, 00:1817
Júlio Verne, popularmente considerado
o precursor ou o antepassado próximo da literatura de ficção científica, morreu
há 120 anos, a 24 de Março de 1905.
Fui
desde cedo um leitor apaixonado da ficção científica que me chegou, como à
maior parte dos da minha geração, pela colecção Argonauta dos Livros do Brasil. A Argonauta apareceu em 1953, e foi
talvez em 1956, nas vésperas de entrar
para o liceu D. Manuel II, que comecei a ler os livros, à medida que iam
saindo. E fi-lo regularmente, aí até ao número 200.
Li os primeiros números no Verão, numa
praia da Foz do Douro, uma dessas
praias do Estado Novo dos anos 50 cheias de regras e rituais – com cabo do mar,
baloiços, fatos de banho com peitilho ou camisola interior e três horas de
“digestão”. Horas sagradas,
que tínhamos de passar “a descansar”, entre o almoço frugal de sanduiches
mistas e o banho das cinco da tarde.
Anos
mais tarde, no Algarve, o meu sobrinho Pedro havia de me
perguntar: “Tio Jaime, acredita na
digestão?” Nessa altura já tinha perdido “a fé”, mas quando era
novo, todos acreditávamos na digestão. E mesmo que não acreditássemos tínhamos de recolher à barraca durante três
horas, independentemente das nossas crenças e vontades. Por isso, foi estendido
na toalha de franjas, debaixo da lona grossa da barraca que li muita Argonauta
(também se acreditava que não era bom apanhar o sol a pique da hora do almoço e
que a leitura não fazia mal ao estômago).
Os livros, em formato de bolso, tinham
umas capas lindas, de Lima de Freitas e
de Cândido Costa Pinto. Eram de Costa
Pinto a capa do primeiro número da colecção – Perdidos na Estratosfera, de A.
M. Low – e a de A Sexta Coluna, de Robert Heinlein, um verdadeiro épico do
género que então me impressionou consideravelmente. E foi assim que fui descobrindo os grandes escritores da Science
Fiction: a poesia das Crónicas Marcianas, de Ray Bradbury, que em Fahrenheit
451 identificou uma distopia de destruição de livros cara aos totalitários de
todas as tribos; os robots e a robótica e os ciclos históricos da Fundação e do
Império, de Isaac Asimov; Arthur C. Clarke e a sua Odisseia no Espaço; o
extraordinário mundo feudal de Frank Herbert, o criador de Dune, que David
Lynch adaptaria ao cinema; e outros, como A. E. Vvan Vogt, Fredric Brown, Brian
Aldiss, Poul Anderson e Philip K. Dick, um dos “últimos”. E a sobressair num
género dominantemente masculino, Ursula Le Guin, a criadora do fabuloso Feiticeiro
de Terra-Mar.
Mas
a minha iniciação na “literatura de antecipação”, tal como a de muitos, em
Portugal e no mundo, tinha acontecido antes, com as “viagens extraordinárias” de Júlio Verne, onde se misturavam o imaginário, a ciência e a
geografia.
Uma literatura de antecipação
Não
era bem ficção científica era uma “antecipação” imaginativa a partir de
invenções e acontecimentos relativamente próximos. Não nos
podemos esquecer – e às vezes esquecemo-nos sob o impacto das
surpresas e maravilhas científicas e técnicas da nossa Idade – que o núcleo
duro das invenções que ainda fazem o nosso quotidiano são da segunda metade do
século XIX: o
telégrafo, a electricidade, o telefone, o cinema, o automóvel, o avião. Ora Júlio
Verne nasceu em 1828 e morreu em 1905, ou seja,
viveu o politicamente agitado século XIX
francês, desde a monarquia
tradicional restaurada de Carlos X de Bourbon até à Terceira República jacobina
e anti-clerical de Loubet e Combes.
Não me lembro exactamente qual foi o
primeiro livro de Verne que li, mas quase que ia jurar que foi A Ilha
Misteriosa. A trama é um modelo da narrativa verneana, inspirada
no clássico Robinson Crusoe, de Daniel
Defoe (1719), no Robinson Suíço, de Johann Wyss (1812), e numa narrativa
próxima do tempo do autor, a de François Édouard Raynal, que naufragara nas
ilhas Auckland, no Pacífico Sul.
A Ilha Misteriosa saiu primeiro em folhetim jornalístico,
entre Janeiro de 1874 e Dezembro de 1875, com ilustrações de Jules Férat. Faz
parte das “viagens extraordinárias”, uma série de romances em que Verne combina
aventura, maravilhoso, mistério, geografia, imaginação, ciência e tecnologia.
Durante
o cerco de Richmond, cinco prisioneiros, cinco abolicionistas, conseguem
escapar em balão; depois de cinco dias e quase dez mil quilómetros, chegam a
uma ilha deserta do Pacífico. A personagem mais importante do grupo é o
engenheiro Cyrus Smith, que leva com ele o criado Nab; há um jornalista, Gedeon
Spillet, um marinheiro, Pencroff, e o jovem Herbert. Cyrus é o típico herói de
Verne – um homem de coragem, de cultura e de ciência, um chefe natural, que não
só vai assegurar a sobrevivência do grupo como a “colonização acelerada” da
ilha, valendo-se da convergência de talentos e conhecimentos dos
expedicionistas. Assim, a ilha “Lincoln” transforma-se num espaço civilizado,
sob o qual vela o grande herói verneano, o capitão Nemo, o do Nautilus e
das 0.000 Léguas Submarinas.
Verne
nasceu em Nantes, na ilha Feydeau, perto do Quai Jean-Bart, onde passou
toda a infância, o que lhe estimulou o
gosto da viagem, do mar, das ilhas. Foi
para Paris nos anos 1850 onde conheceu, além de Alexandre Dumas e Victor Hugo,
Jacques Arago, viajante e geógrafo, que completara uma volta ao mundo em 1817,
a bordo do l’Uranie. E, claro, o seu editor Hetzel, que encontrou
em 1862 e com quem iria ter uma colaboração modelo e de longa duração. Um
editor crítico que levantava objecções e fazia sugestões que o autor aceitava,
também criticamente, como bem o documenta a correspondência entre os dois.
Verne e os outros
Em
1864, Verne publicou Cinq Semaines en Ballon, o primeiro
romance da série “viagens
extraordinárias”, que um crítico classificou como “roman cientifique”. Théophile Gautier, referindo-se ao novo
género, falou em “quimera cavalgada e dirigida por um espírito matemático”;
outros consideram-no uma “maravilha científica” e chamaram a Verne “pioneiro do romance científico”.
Por esse tempo, Edgar Alan
Poe já publicara os contos e A
Narrativa de Arthur Gordon Pym, e Émile Zola, num artigo de 1866, não pôde deixar de
comparar “o pesadelo Edgar Poe” à “fantasia amável e instrutiva” de Verne.
Outros críticos, reconhecendo a
originalidade do fantástico de Poe na literatura de viagens de Homero a Defoe,
passando pelas narrativas marítimas dos portugueses, reconheceriam também em
Verne a originalidade da convergência “viagem, geografia, ciência, técnica e
aventura”.
Os heróis de Verne, como o capitão
Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens de uma nova Renascença,
justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances de Verne acabavam bem. Quando comparamos o fantástico de Júlio
Verne, com as suas máquinas e invenções que procuram sempre respeitar os dados
científicos e técnicos do tempo, e a vindoura literatura de futuríveis do
século XX – as distopias clássicas de Huxley, Orwell ou Bradbury, com os horrores
das sociedades perfeitas de Brave New World, ou a tirania institucional de 1984
ou de Fahrenheit 451 – a diferença e a ruptura são chocantes. E não terá
sido só por o século XX ter visto as primeiras utopias postas em prática,
porque nos finais do século XIX, a partir de 1895, já H. G. Wells tinha escrito
A Máquina do Tempo, (1895), O Homem Invisível (1897), A Guerra dos Mundos e Os
Primeiros Homens na Lua (1901).
Verne escrevera “Da Terra à Lua”em 1865
e era, até por geração, o pioneiro: a crítica não resistiria à comparação. E mesmo em França, onde os livros de Wells
foram traduzidos a partir de 1898, revistas como o Mercure de France, a Revue
de Paris e a Revue des deux mondes preferiam o inglês a Verne.
A morte de Verne, em 1905, trouxe um
clamor de elogios e até um certo espírito de reparação dos que tinham
desdenhado o compatriota, preferindo o inglês. Reparação
com algum exagero compensatório, como
o do crítico Adré Lamie, que comparou o autor de A Ilha Misteriosa a Cervantes
e a Balzac.
Verne é mais realista, mais científico, mais hábil a encontrar e
encadear mil peripécias do que Wells; Wells
é mais filosófico, mais problemático, mais desligado do técnico-científico.
Verne é optimista em geral e
moderamente optimista quanto à natureza humana e, além disso, é um homem de fé
no Criador e na Criação. Wells não parece alinhar nesse optimismo.
Talvez por isso Verne seja um autor para
a juventude, para a iniciação num mundo de aventura, como Robert Louis
Stevenson, ou James Fenimore Cooper, ou Mark Twain, enquanto Wells é um
precursor do século XX. Um século que não trouxe as maravilhas que Verne tinha
previsto, em que os submarinos serviram para afundar cargueiros civis e em que
as grandes invenções foram acontecendo sobretudo a partir das guerras e para
servir a guerra.
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA LITERATURA
COMENTÁRIOS (de 17)
Coxinho: Creio que comecei cedo demais a explorar o universo de Júlio Verne.
Consequência imediata foi a preferência desviada para a leitura de livros
"mais próprios" para garotos da minha idade, ou seja, menos
elaborados, menos exigentes do ponto de vista da formação científica e
literária. Hoje arrependo-me de ter
falhado essa experiência tão estimulante. Mas a verdade é que também já não
seria capaz, hoje, de colmatar essa falha... Ana Luís
da Silva: Jaime Nogueira Pinto com este artigo despertou-me saudosos momentos vividos
na leitura das aventuras de Julio Verne, sobretudo nas férias, e acrescento
outros títulos: Miguel Strogoff, Viagem ao Centro da Terra, Dois Anos de Férias, que devorei
na versão livro de bolso Europa América, e também A
Volta ao Mundo em 80 Dias, Escola
de Robinsons, A Caça ao Meteoro,
O Doutor Ox e outros da Livraria
Bertrand. São aventuras enxutas de neuroses e psicoses, centradas em resolver
desafios e não em perorar sobre problemas. Uma leitura saudável, limpa das
extravagâncias imorais e amorais da nossa época perturbada, que recomendo para
a leitura dos adolescentes. Muito a propósito para servir de contrabalanço à mini-série
televisiva de que toda a gente fala e que não vou ver (Adolescência) por não precisar de passar
parte do meu tempo livre a carpir sobre
os males deste nosso tempo, degenerescente por
razões que estou saturada de conhecer. Mais uma vez, muito grata ao autor pelas
linhas que ao sábado escreve e partilha com os leitores do Observador.
Carlos Chaves: É por ter faltado à nossa juventude tudo isto,
estímulo da imaginação pela leitura, regras e códigos de conduta, férias em
família e amigos, instrução e educação digna destes nomes... que se calhar
estamos a assistir a jovens desconsertados, como há pouco assisti na SIC
Notícias, uma jovem a dizer a propósito dos jacarandás em Lisboa, que as
árvores têm mais direito a estarem ali do que as pessoas!!!! miguel
cardoso: Leitor de Júlio Verne desde muito novo (comecei aos 7 anos, hoje tenho
setenta) por influência do meu Avô, médico distinto, tendo exercido a sua
actividade em Castelo Branco entre 1914 e meados dos anos cinquenta. Li-os nos
seus exemplares, alguns ainda do sec.XIX editados pela David Corazzi, Editor,
com capas lindíssimas e sugestivas, escritos na ortografia de antes do acordo
ortográfico do início do sec XX, onde aceitar se escrevia "acceitar"
e oferecer, "offerecer", apóstrofos e "ph" abundantes.
Acrescia que normalmente tinham duas ilustrações feitas à pena, a preto e
branco, de grande romantismo e qualidade. Juntando com o diálogo divertido com
esse meu Avô, num encontro de gerações em que o antes e depois se encontravam e
complementavam. E eu aprendia e formava-me. Marcou-me isto
para toda a vida e não posso deixar de agradecer aos Senhor Dr. Jaime
Nogueira Pinto ter-me trazido esta lembrança. madalena
colaço: Como refere JNP, Verne nasceu e cresceu nesse politicamente agitado século
XIX francês. Século, como também lembra, de invenções que fazem ainda parte do
nosso quotidiano. A 3 de junho de 1839, François Arago, matemático, físico,
astrónomo, eleito deputado pelos Pirenéus Orientais, dirigiu-se aos seus
colegas no palácio Bourbon, para que estes aprovassem um projecto lei que
concedia ao Sr Daguerre e ao Sr Nièpce uma pensão vitalícia pela cedência do
processo de fixação das imagens obtidas na câmara escura. Nesse magnífico
discurso, Arago, refere que ele próprio testara o processo para que não
restassem dúvidas de que se tratava de uma invenção e que esta invenção
prestaria à Arqueologia e Belas-Artes serviços de valor. Garantia que o
processo poderia ser utilizado por qualquer cidadão e que esperava também
retirar benefícios para a ciência. Finalizou, apresentado várias vistas de
Paris, as primeiras fotografias da cidade, que Daguerre fizera no seu estúdio.
Samuel Morse, que estava em Paris a divulgar o seu telégrafo, cruza-se com
estas imagens. Fica de tal forma impressionado com esta técnica que reproduzia
com toda a exactidão a natureza, que escreve ao seu irmão referindo "que
até uma pequena letra de uma loja, que escapa ao nosso olho, é visível à
lupa". Na época de Verne a política é agitada, mas o dinheiro dos impostos
era muito bem escrutinado para onde ia e para que servia. Hoje, qual o
político, que se interessa em detalhar para onde vai o dinheiro dos nossos
impostos?
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