sábado, 1 de março de 2025

Uma questão

 

Mais para cada um de nós sentir na pele, do que para “extrapolar” repetidamente. Não havia necessidade.

Aqui que ninguém nos ouve

Para lá, e para cá, de Badajoz, ninguém ouve o prof. Marcelo, ninguém ouve os governantes, ninguém ouve os vultos da oposição, ninguém ouve os 950 comentadores que se atropelam nas televisões.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 01 mar. 2025, 00:201

Há três semanas participei, com André Azevedo Alves e Jaime Nogueira Pinto, num jantar-palestra (acho que é a expressão em uso) organizado pela Oficina da Liberdade e realizado no Clube de Leça, um espaço privado que fica, sem grandes surpresas, em Leça da Palmeira. A sala encheu-se de pagantes, que rondaram salvo o erro os duzentos. Cerca de cem interessados já não conseguiram lugar. Pelos padrões nacionais, a noite foi uma espécie de sucesso, em parte graças aos outros dois oradores mas sobretudo graças ao tema: Trump.

Na minha intervenção final, toquei no assunto e notei que aquela pequena multidão estava ali porque, gostando ou não do presidente americano (e estavam ali pessoas que o abominam), Trump importa – e não estou a falar do aumento das tarifas. Independentemente dos convidados, duvido que uma sessão similar, e gratuita, dedicada ao dr. Montenegro ou ao prof. Marcelo enchesse uma cabine telefónica. As sumidades da política nacional nem aos portugueses importam. O que é nacional não só não é bom como é irrelevante. E se a irrelevância é cada vez maior, a falta de noção dessa irrelevância é cada vez mais ridícula.

Com embaraçosa regularidade, eventos microscópicos trazem à superfície o brutal contraste entre o que significamos e o que julgamos ou fingimos significar no mundo. Há dias, Paulo Rangel, que talvez 70% dos portugueses saibam que é ministro dos Negócios Estrangeiros, “advertiu” (rezava a notícia da Lusa) os EUA de que a União Europeia “tem uma palavra a dizer nas negociações sobre a Ucrânia”. Suspeito que, na mansão de Mar-a-Lago, alguém perdeu o sono. Entretanto, o dr. Montenegro já ligou a Zelensky para “reiterar” (volto a citar) o “firme apoio” de Portugal à causa ucraniana. Após três anos, Zelensky pôde enfim relaxar.

Convém ressalvar que o actual governo até é comparativamente modesto nestes exercícios de desprezo pela realidade. Se vamos falar de deslumbramento, que fale Sua Santidade, o presidente da República. Esta semana, recém-chegado do Brasil e da enésima demonstração de reverência ao sr. Lula, o prof. Marcelo resolveu aproveitar as mudanças na selecção de jornalistas admitidos na Casa Branca para explicar que a América está a resvalar para uma ditadura.

Por acaso, ignorância ou desleixo, o prof. Marcelo não explicou que a administração Biden “cancelara” 400 e tal jornalistas. O prof. Marcelo não explicou que a associação antes responsável pela escolha, a WHCA, conspirou para ocultar dos cidadãos o declínio mental de Biden e impor uma ortodoxia informativa enviesada para o lado que se adivinha. O prof. Marcelo não explicou de que modo é que legitimar a arbitrariedade do poder através de não sei quantos estados de emergência se distingue de uma medida dictatorial. Essas minúcias, somadas ao beija-mão a Fidel no início dos seus mandatos e às incontáveis vergonhas da década seguinte, não o impediram de, pousado numa cátedra imaginária, se aliviar de considerações acerca do arquétipo democrático que ele imagina representar. Não satisfeito, 24 horas depois questionou, com a responsabilidade que o define, a “legitimidade jurídica” de Trump “para atacar a soberania de parceiros” (?). Suponho que o prof. Marcelo se encontra genuinamente convencido de que tem lições a dar à humanidade, mesmo que a plateia não ultrapasse o punhado de infelizes forçados a aturá-lo.

A sorte é que ninguém o ouve. Para lá, e para cá, de Badajoz, ninguém ouve o prof. Marcelo, ninguém ouve os governantes, ninguém ouve os vultos da oposição, ninguém ouve os 950 comentadores que se atropelam nos estúdios televisivos a fim de autopsiar a “actualidade”, ninguém ouve, e é pena, o anónimo que num T2 do Cacém critica sem piedade o desconchavo destes tempos. A insignificância portuguesa é tão grandiosa que, à semelhança dos imigrantes ilegais, não se deixa condicionar por fronteiras: dois Antónios, Guterres e Costa, continuam insignificantes ainda que elevados a cargos internacionais de “prestígio”. O primeiro, que desabafa no Conselho dos Direitos Humanos para emissários de Cuba e do Sudão, é o porta-voz oficioso da Pequena Greta, a activista do “clima” e do Hamas; o segundo, que despeja platitudes em dialectos indecifráveis, é respeitado por Ana Gomes e pelo dr. Rangel. A influência global de ambos rivaliza com a do anónimo do Cacém.

É por isto que a visita de Macron, uma pausa de férias, foi o que foi. Mal viram um arremedo de estadista, o PR cobriu-o de beijos, o ainda PM passeou-o de mãos dadas, e não me admiraria que, no Porto, além das chaves da cidade, da varanda dos Aliados e de um “tratado de amizade”, Rui Moreira tivesse pedido o francês em casamento. Aparece por aí um estrangeiro “importante” (pelos padrões europeus, calma) e a nossa relevância de plástico desfaz-se em cacos e ternuras. Somos assim pequenitos e isso nem é novidade ou grande problema. É apenas esquisita a crescente ilusão contrária, a teimosia numa existência ideal e nunca vivida. É impossível levar a sério quem se esforça tão desastrada e infantilmente para ser levado a sério, axioma que vale para as excelências caseiras e, pela ordem natural das coisas, para o país em peso. O peso que não temos, aqui que ninguém nos ouve.

Donald Trump     Estados Unidos da América     América     Mundo     Luís Montenegro     Política     Presidente Marcelo     Paulo Rangel     António Guterres     António Costa     Rui Moreira     Emmanuel Macron     França     Europa

COMENTÁRIOS (de 20):

Maria Paula Silva: Tinha visto há um bom bocado o video da visita do Zelensky à Casa Branca e ainda estou banzada com a agressividade que tudo aquilo transpirava. Nem sei o que pense. Adiante.

Macron. Continuamos a ser uns pirosos, convencidos de que não somos provincianos e tudo aquilo era "super romântico". Os beijos e as mãos dadas deixaram-me embevecida. Gosto de ver esta política actual, é muito semelhante a uma peça de teatro. Continuamos a fazer figuras de par vos perante os estrangeiros, deve ser por isso que incrementámos o turismo e escancarámos as portas à imigração. Não gosto de pagar o ordenado a esta gente, vocês não sei. AG: Parabéns, o texto é muito bom com algumas frases magistrais.

 

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