Concorde com os ditames sobre Camilo, a
quem se reconhece a genialidade e riqueza criativas, a temática de Eça, talvez por
girar mais sobre o meio urbanístico, aprazivelmente mais confortável e
reconhecido, com personagens do foro citadino da nossa preferência, além de paralela
com a do tipo de livros da nossa adolescência, com personagens próximas, cuja tipificação
as projecta para as actualidades de todo o sempre – para além de um sentido de
graça irónica talvez mais leve que a mordaz de Camilo – tal temática e técnica
romanesca fazem de Eça o escritor da nossa preferência, como artista da palavra
e do humor leve, a criatividade menos densa, talvez, mas de um realismo mais
próximo não só da nossa realidade vivencial, como também liberto do
egocentrismo do escritor Eça de Queirós – não o mágico da palavra, mas
indiscutivelmente o mágico da graça ligeira e da leveza criativa, discursiva e,
afinal, bem realista.
Camilo, nos 200 anos de um escritor genial
Camilo escreveu muitíssimo mais do que
Eça; não tinha tempo de corrigir os originais, trabalhava como “um remador de
Ben-Hur”, qual escravo dos editores amarrado à produção em massa para ganhar a
vida.
JAIME
NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 22 mar. 2025, 00:1815
No Domingo passado, 16 de Março, completaram-se dois séculos sobre o
nascimento em Lisboa, na Rua da Rosa, de um dos melhores escritores
portugueses, Camilo Castelo Branco – ou Camilo, tout court.
É
um conhecimento de infância. Tive um tio camilianista fanático, bibliófilo e
bibliómano, pesquisador por alfarrabistas de primeiras edições do romancista.
Não tinha filhos e eu passava muitos fins-de-semana em casa dele, em Vila do
Conde. Era ali que ele juntava outros da mesma tribo, também devotos do
escritor, para falarem interminavelmente de edições antigas, primeiras ou
segundas, e das histórias dessas edições, do seu tempo de escrita e publicação,
das anedotas à volta de raridades e falsas raridades.
Porque Camilo foi um fenómeno de produção e de qualidade na produção. Mais de
duzentos títulos – romances, novelas, História, teatro, polémicas, até poesia.
Coisas que eu, miúdo, com nove ou dez anos, à mesa dos mais velhos, ia ouvindo,
juntamente com as histórias da sorte e do azar de romances como A Infanta
Capelista– sobre uma Maria José, bastarda de El-Rei D. Miguel –, que Camilo
teria mandado destruir antes da edição em livro, constava que a pedido do
imperador D. Pedro II do Brasil, e que teria ido parar à Salsicharia Francesa,
para embrulhar artigos de mercearia. Um
cliente, um tal António Rebelo, teria dado pelo achado e adquirido as “folhas
de embrulho” que restavam, salvando alguns, poucos, exemplares, dos quais mais
tarde se publicariam duas edições fac-simile, fazendo da Infanta Capelista
uma preciosa raridade camiliana.
(Há anos, a propósito de um livro de
futurologia política sobre uma Administração americana que não veio a
acontecer, lembrei-me deste episódio camiliano e dos presumíveis destinos, mais
ou menos úteis, mais ou menos nobres, das obras malogradas.)
Mais
tarde, Camilo reescreveu e reeditou o tema da infanta capelista em O carrasco
de Victor Hugo José Alves,tornando-o menos ofensivo para a família real de
Portugal e do Brasil.
Camilo ou Eça?
Os
grandes poetas, como Camões e Pessoa, são quase sempre os grandes conhecedores
da pátria, da nação, do colectivo histórico, da comunidade política, da herança
e identidade de um povo entre os povos; conhecem-na, (re)constroem-na e
exprimem-na nos seus altos e baixos, no seu modo peculiar de absorver e
exprimir o universal. Já os grandes escritores apanham mais as
pessoas. E os grandes escritores do
seculo XIX que retrataram os portugueses, o seu modo de ser, a sua identidade
ou as suas identidades, são incontornavelmente Camilo e Eça de Queirós.
Eça, como confessaria numa carta ao
seu amigo conde de Arnoso, conhecia sobretudo Lisboa; e, de Lisboa,
a “sociedade”, a “classe alta”; talvez por isso continuemos a descobrir nas
nossas “elites” – e na classe político-empresarial-futebolística deste último
meio século não faltam exemplares – Gouvarinhos,
Dâmasos Salcedos, Acácios. Já Camilo dá-nos outros portugueses,
mais rústicos, os das terras de Portugal, mesmo que vindos para a capital; e,
entre eles, mais os do Norte, os das “novelas do Minho”, os da Samardã, os das
invasões francesas e das guerras civis, os que, quando ofendidos, vão a casa
buscar o bacamarte e voltam com ele para lavar a honra com o sangue do ofensor.
E há a quantidade e a qualidade. Camilo
escreveu muitíssimo mais do que Eça; não tinha tempo de corrigir os originais, trabalhava que nem “um remador de Ben-Hur”
(para usar a imagem do inigualável Nelson
Rodrigues), ou qual escravo dos editores, amarrado à produção em massa e
em série para ganhar a vida, correndo sempre atrás do prejuízo. Bem ao
contrário de Eça de Queirós, funcionário diplomático e bem casado. Embora
gastador e devedor e, curiosamente, também “filho de mãe incógnita”, Eça nunca viveu o trágico sorvedouro das
dívidas e da angústia que daí vem. Camilo passou por essa e por outras
desgraças.
Por isso, na cadeia da Relação do Porto,
em 10 de Agosto de 1861, quando cumpria pena por adultério com Ana Plácido, depois da
queixa-crime do marido traído, escrevia ao seu primeiro biógrafo, Vieira de
Castro: “A página mais crível e
instrutiva da minha biografia será aquela em que escreveres que a desgraça é a
pedra de toque onde se aquilatam os amigos.” Vira “os muitos em que se fiava” a
desaparecer; mas não deixara de ver “em redor aqueles com quem não contava”.
As mulheres e a “mulher fatal”
Fora
assim a sua vida – trágica, desde o berço. Fruto de uma aventura do pai, Manuel Joaquim
Botelho Castelo Branco, irmão do Simão Botelho que ele havia de imortalizar em Amor
de Perdição –o Romeu e Julieta português, escrito em duas semanas, na prisão.
Antes
do encontro com a sua mulher fatal, Camilo entregou-se a amores jovens,
aventureiros e mal-aventurados, seduções e paixões rústicas e freiráticas,
relações inominadas e ambíguas… Bernardina Amélia, Fanny Owen, a “costureira do
Candal” … até que, num baile na Assembleia Portuense, em 1848, conheceu a mulher da sua vida, Ana Plácido, casada com
o “brasileiro” de torna-viagem Pinheiro Alves. Ana, nesse dia, “vestia de
branco, com enfeites de fitas escarlates nos cabelos, como escreveria o
apaixonado em Cenas Inocentes da Comédia Humana.
Paixão
verdadeira desde o primeiro instante, com o desajeitado Romeu a passarinhar-se
pela rua do Almada, onde morava a sua Julieta, que estaria à janela, com alguma
provocação. Porque a acreditar em Mestre Aquilino, um entre a
dúzia de biógrafos de Camilo – dos seus contemporâneos Vieira de Castro,
Freitas Fortuna, Alberto Pimentel, até Pascoaes, Agustina, Alexandre Cabral –, Ana Plácido já teria sido amante de António
Ferreira Quiques, um portuense amigo de Camilo, possível pai biológico de
“Manuelinho”, que no registo apareceria como filho do marido da mãe, do
propriamente dito Pinheiro Alves.
Camilo
foi para Lisboa, mas voltou ao Porto e voltou a vê-la, dez anos depois, em
Braga, no Bom Jesus do Monte. Ana Plácido,
que tivera uma boa educação, em família burguesa e numerosa, descrevia o
marido, o “brasileiro” Pinheiro Alves, como “mau homem e repelente” e acabaria
por fugir com Camilo. Os amantes seriam condenados. Mais tarde, depois de
livres, mas sempre perseguidos pela
desgraça, viveram juntos em S. Miguel de Seide, onde tiveram dois filhos.
Foi este homem de vida atribulada e até
trágica que contou admiravelmente o Portugal do seu tempo em folhetos e
romances com títulos curiosíssimos, como Maria não me mates que sou tua mãe, O parente dos cinquenta e três
monarcas, Mistérios de Lisboa, Doze casamentos felizes, Novelas do Minho, Noites
de Insónia, Eusébio Macário, e a sua continuação, A Corja. E A Brasileira de
Prazins.
É uma obra extraordinária, um retrato
de Portugal do século XIX, das invasões francesas ao fontismo. Além da
verdade e realidade das personagens e dos enredos, fica um estilo e uma
linguagem únicos, expressivos e variados: do romantismo de Maria Moisés, das Novelas do Minho, ao
verrinoso dos panfletos contra inimigos literários e existenciais, a quem não
poupava, como o poeta brasileiro Tomás Filho.
Romancista histórico?
De
certo modo, os romances e novelas de Camilo são romances “históricos” que nos
dão, não só a História e a evolução política no tempo e na língua, como Maria
Helena Carvalhão Buescu demonstrou a propósito de Amor de Perdição e
de A Queda de um Anjo, mas que nos mostram, através das personagens e das
histórias, o tempo, bem agitado, que vai do miguelismo e da guerra civil ao
final do rotativismo. Por isso a Teresa do Amor de Perdição diz ao pai
que não casa com quem ele quer, e Mariana, plebeia, apaixona-se pelo fidalgo
Simão Botelho, que é tio de Camilo, irmão de Manuel Joaquim, pai do escritor.
A teia romanesca camiliana apanhou todos
estes protagonistas do seu tempo, um tempo que faz a transição das oligarquias
tradicionais, noblesse de sang e noblesse de robe (nas
famílias de Simão Botelho e de Camilo) para as classes novas do
constitucionalismo, do Porto burguês e liberal, dos “brasileiros”, dos
“eleitos” deputados e barões de que o Calisto Elói de A Queda de um Anjo é
um fidelíssimo retrato, um irmão próximo do Abranhos de Eça, retratos ainda
vivos e actuais da nova oligarquia liberal-democrática.
Camilo
era assim. Pintou o século XIX como ele foi em Portugal e na Europa, um filho
das guerras da Revolução e do Império – primeiro das invasões francesas e da
guerra miguelistas-liberais; depois do liberalismo convulso até à Regeneração,
pelo golpe militar de Saldanha.
Em Eusébio Macário e na Brasileira de
Prazins quis mostrar-se à vontade na nova religião do romance realista. Mas
Camilo não era só capaz de realismo literário; era um realista existencial, que entendia a continuidade da natureza
humana e a continuidade dos portugueses. Os mestres do liberalismo,
Garrett e Herculano, antigos voluntários e combatentes da nova fé,
desiludiram-se da nova ideia com a prática; Herculano, retirando-se para Vale
de Lobos e dizendo que o estado da pátria lhe dava vontade de morrer, Garrett
fazendo a crítica ao materialismo dos barões e agiotas do liberalismo,
lembrando nas Viagens na minha Terra que
Jesus lhes faria o mesmo que aos vendilhões do Templo.
Camilo,
crítico do absolutismo português, no Perfil do Marquês de Pombal, crítico da oligarquia liberal, em A
Queda de um Anjo, autor de uma charge ao miguelismo nortenho nessa saga
burlesca que é A Brasileira de Prazins, em que um sósia do príncipe exilado
mobiliza para a contra-revolução a reacção do Portugal Velho, parece
não ter tido nem ilusões nem desilusões políticas. Talvez porque a todos visse
como homens, protagonistas e figurantes do seu tempo e da sua pátria na grande
comédia ou tragédia humana. Um som e uma fúria que contou com humor e sentido
do trágico em mais de duas centenas de títulos, alguns milhares de personagens,
dezenas de milhares de páginas – de boa literatura, acrescente-se.
Pena que o tenham trocado por
moeda mais nova e mais barata; e logo num tempo em que a consciência crítica de
si, dos outros, do país e do mundo está tão em falta.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA LITERATURA
COMENTÁRIOS (de 15)
Boris Pasternak: Belíssima crónica. Redescobri Camilo
recentemente - reler a sua vasta obra aos 50 anos (a minha vetusta idade) dá-me
uma alegria redobrada. Há nele uma relação natural com o Portugal profundo,
certamente mais real do que no Eça cosmopolita. Para quem, como eu, vive fora
de Portugal há 30 anos, Camilo enche-me a alma de Portugalidade. Rui Guerreiro: Mais uma pérola de artigo, que
agradeço. São estes momentos de JNP e alguns outros (poucos) colunistas que me
levam a manter a assinatura do Observador. Meio Vazio: É clara evidência da confusão
de critérios que tomou conta da nossa "Inteligência" e das nossas
"elites" que Camilo Castelo Branco - seguramente o melhor cuidador da
Língua Portuguesa depois de Vieira - tenha cedido nos curricula escolares
oficiais o lugar a Saramagos, Coutos, Jorges, Tavares e demais tralha. Manuel Lisboa: Partilho a admiração por
Camilo Castelo Branco. Excelente crónica. Cisca Impllit: Ler é bom e faz falta em
Portugal Carlos
Medeiros: Este artigo deve ter dado muito gosto e prazer a quem o escreveu, mas
seguramente, não tanto quanto eu tive ao lê-lo. Bom fim-de-semana.
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