De paixão. Um livro sobre a minha terra,
explorando espaços que eu atravessei, citando nomes que tão bem conheci, de
avenidas que percorri, uma cidade onde habitei – na Belegarde da Silva, já no
meu tempo de casada em primeiras núpcias, avenida onde vivia o Rui Knopfli, a
Praça 7 de Março, onde às vezes não propriamente “petiscávamos sardinhas” -
como na casa da Mariquinhas da nossa Amália, (inexistentes na ementa da mesma, na
versão primeira, do Alfredo Marceneiro) – mas tomávamos talvez a coca-cola ou a
cerveja nocturnas, aos sábados à noite, de regresso de um filme num qualquer
desses cinemas que cita – Varietá, Scala, Gil Vicente, Manuel Rodrigues, já nem
sei bem, pois não foram assim tantas as vezes desse convívio primeiro, em breve
a vida, já de trabalho e outras “competências”, nos afastara desses primeiros
amigos – Knopfli, Eugénio Lisboa – que a chegada a Lourenço Marques, após a
formatura em Coimbra, prodigalizara, como amigos do Rui, dos tempos do liceu “Salazar”,
nome este que, reparei, não é citado no romance de Teolinda Gersão – “A Árvore
das Patacas” – em breve me apercebendo do tabu que representou esse nome,
apenas insinuado em perífrase, como responsável engenhoso pela manutenção de um
status colonial que revolução posterior naturalmente desfaria.
Amei o livro. Muito, é certo, pela
profusão desses nomes de sítios – Namaacha, Marracuene, Bilene… - que povoaram
não só a minha adolescência, e ficaram presentes em fotos desses tempos de
piqueniques aos domingos, a esses sítios e sobretudo à praia da Polana, levados
no carro de uns primos – desses de casamento por procuração, embora o da Amélia
- mãe da protagonista Guita, de “A Árvore das Patacas” - o tenha sido por
anúncio, num jornal metropolitano, como tantos fizeram.
Sim, foram sobretudo essas recordações
de sítios que eu conheci, e que a narradora traz à baila, num desígnio não de
saudade, pois que se tratou de uma vivência passageira - sendo a autora
protagonista de outras muitas vivências que a ilustraram, segundo leio na sua
biografia posta à disposição pela Internet – mas intencionalmente específico
para historiar uma ocupação de um espaço – que outros mais espaços
exemplificariam em idêntico percurso colonialista ocupacional, nesse século 20
de mais amplo relevo em desenvolvimento, pela obstinação de um velho patriota
chefe, sacrificando – ou não, pois que muitos foram os que por lá ficaram, ou
ficariam por amor, desses tropas enviados para proteger os “portugueses de
segunda”, da debandada final.
Trata-se, inegavelmente, de um livro
magnificamente escrito, a dimensão poética o envolvendo, quer nas referências
aos espaços e à natureza, quer no tom arrastado e ambíguo de um enredo que se
vai abrindo gradualmente, quer nas referências espaciais e a personagens e suas
vivências, de que se não descodifica logo o papel – Laureano o pai, Amélia a
mãe, Guita, a filha – e suas personalidades na “entourage” que lhes servirá de
apoio – quer, enfim, num estilo magnificamente elaborado, muitas vezes sentencioso
ou poético que nos faz relê-lo, apesar da não citação dos espaços e ruas onde
vivi na infância – a casa da 5 de Outubro, na esquina com a João de Deus,
situada entre a Baixa e o Alto Maé – casa do Estado que o meu pai arranjou
quando em 44 regressámos a Lourenço Marques, para junto dele, que era
Guarda-Fiscal, passados os tempos da Guerra, numa travessia atlântica e índica
mais cordata, com paragens por S. Tomé, Luanda, Lobito, que Teolinda Gersão
igualmente refere a propósito da viagem de Amélia, casada por procuração, na frustração
de um seu namoro anterior, desfeito. Mas essas ruas, - 5 de Outubro, Luciano
Cordeiro – onde brinquei descalça, não são referenciadas, não estando dentro
dos parâmetros da tese acerca do pedantismo racista da sociedade branca,
justificativo de todas as descolonizações, conquanto a ideia dos bidonvilles
franceses para os emigrantes do nosso país de trabalhadores mal pagos, ou mesmo
outras explorações tão apontadas por cá, não sejam parâmetro a ter em conta na
tese da escritora, no seu desígnio anticolonialista à la page, merecedor de prémio, quando realizado, como é o caso,
com digna perícia.
A I parte, uma filha na sua infância
fantasista, amando o pai e com ele brincando, receando a mãe, mulher frustrada
e áspera, e amando a criada negra que a amamentou, juntamente com a sua própria
filha, um pai pacífico e trabalhador e bom companheiro de brincadeiras da
filha, uma mãe rigidamente agarrada à sua costura e aos seus muitos recalcamentos
magoados, de ódios, invejas e frustrações.
A II parte leva-nos a Amélia, aos seus
passeios solitários ao domingo, pelos espaços citadinos, nas suas fantasias de
engrandecimento próprio, ao percorrer os espaços das elites, Polana,
bairro de Sommerschield, o Caracol,
satisfazendo sonhos de grandeza, para contar às clientes invejosas. A história
em analepse da sua infância e juventude frustradas em Portugal, o casamento por
anúncio e foto respectiva, com Laureano que em correspondência a fora
convencendo, com as suas descrições sobre Lourenço Marques e arredores, o
gradual desapego dos seus – marido e filha - que a levam a uma fuga para novo
casamento na Austrália.
A III Parte, a história de Guita e seus
muitos companheiros e amigos, muitos, negros, na ânsia da escritora de demonstração
de fraternidade e anti-racismo, bem contrários aos comportamentos obrigatoriamente
racistas dos colonos brancos vivendo na cidade do asfalto, os negros na do
caniço de desconforto e árvores, dos sonhos amantes de Guita, procurando
incansavelmente a sua meiga ama Lóia, que um dia não voltou. E os amores de
Guita, estudante, com Rodrigo, a descolonização e uma falsa informação de
gravidez, desta, originando o desapego e a fuga daquele, com o pai, a eles
contrário – ficção novelesca – mais uma – de que se compõe a tessitura da
banalidade humana.
Romance de tese, é claro, belo no seu
estilo, banal na sua intriga, para efeitos de sátira, de resto, tal como a que
é despejada em torno da tal sociedade de elites, contrastando com a simpatia de
um povo colonizado que a pata do colonizador importunou.
É claro que se augura o bem para essa
terra independente e livre da tal pata colonialista. Mas a personagem Guita não
permaneceria nessa terra, levada na avalanche temerosa das consequências de uma
permanência instável, demonstradora de que o povo nativo não seria tão doce
assim, e que conviria escapar, ainda que fosse para casa de alguma tia áspera,
empregando-se num café, para sobreviver. Na restauração, como se diz hoje.
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