domingo, 25 de julho de 2021

Amei


De paixão. Um livro sobre a minha terra, explorando espaços que eu atravessei, citando nomes que tão bem conheci, de avenidas que percorri, uma cidade onde habitei – na Belegarde da Silva, já no meu tempo de casada em primeiras núpcias, avenida onde vivia o Rui Knopfli, a Praça 7 de Março, onde às vezes não propriamente “petiscávamos sardinhas” - como na casa da Mariquinhas da nossa Amália, (inexistentes na ementa da mesma, na versão primeira, do Alfredo Marceneiro) – mas tomávamos talvez a coca-cola ou a cerveja nocturnas, aos sábados à noite, de regresso de um filme num qualquer desses cinemas que cita – Varietá, Scala, Gil Vicente, Manuel Rodrigues, já nem sei bem, pois não foram assim tantas as vezes desse convívio primeiro, em breve a vida, já de trabalho e outras “competências”, nos afastara desses primeiros amigos – Knopfli, Eugénio Lisboa – que a chegada a Lourenço Marques, após a formatura em Coimbra, prodigalizara, como amigos do Rui, dos tempos do liceu “Salazar”, nome este que, reparei, não é citado no romance de Teolinda Gersão – “A Árvore das Patacas” – em breve me apercebendo do tabu que representou esse nome, apenas insinuado em perífrase, como responsável engenhoso pela manutenção de um status colonial que revolução posterior naturalmente desfaria.

Amei o livro. Muito, é certo, pela profusão desses nomes de sítios – Namaacha, Marracuene, Bilene… - que povoaram não só a minha adolescência, e ficaram presentes em fotos desses tempos de piqueniques aos domingos, a esses sítios e sobretudo à praia da Polana, levados no carro de uns primos – desses de casamento por procuração, embora o da Amélia - mãe da protagonista Guita, de “A Árvore das Patacas” - o tenha sido por anúncio, num jornal metropolitano, como tantos fizeram.

Sim, foram sobretudo essas recordações de sítios que eu conheci, e que a narradora traz à baila, num desígnio não de saudade, pois que se tratou de uma vivência passageira - sendo a autora protagonista de outras muitas vivências que a ilustraram, segundo leio na sua biografia posta à disposição pela Internet – mas intencionalmente específico para historiar uma ocupação de um espaço – que outros mais espaços exemplificariam em idêntico percurso colonialista ocupacional, nesse século 20 de mais amplo relevo em desenvolvimento, pela obstinação de um velho patriota chefe, sacrificando – ou não, pois que muitos foram os que por lá ficaram, ou ficariam por amor, desses tropas enviados para proteger os “portugueses de segunda”, da debandada final.

Trata-se, inegavelmente, de um livro magnificamente escrito, a dimensão poética o envolvendo, quer nas referências aos espaços e à natureza, quer no tom arrastado e ambíguo de um enredo que se vai abrindo gradualmente, quer nas referências espaciais e a personagens e suas vivências, de que se não descodifica logo o papel – Laureano o pai, Amélia a mãe, Guita, a filha – e suas personalidades na “entourage” que lhes servirá de apoio – quer, enfim, num estilo magnificamente elaborado, muitas vezes sentencioso ou poético que nos faz relê-lo, apesar da não citação dos espaços e ruas onde vivi na infância – a casa da 5 de Outubro, na esquina com a João de Deus, situada entre a Baixa e o Alto Maé – casa do Estado que o meu pai arranjou quando em 44 regressámos a Lourenço Marques, para junto dele, que era Guarda-Fiscal, passados os tempos da Guerra, numa travessia atlântica e índica mais cordata, com paragens por S. Tomé, Luanda, Lobito, que Teolinda Gersão igualmente refere a propósito da viagem de Amélia, casada por procuração, na frustração de um seu namoro anterior, desfeito. Mas essas ruas, - 5 de Outubro, Luciano Cordeiro – onde brinquei descalça, não são referenciadas, não estando dentro dos parâmetros da tese acerca do pedantismo racista da sociedade branca, justificativo de todas as descolonizações, conquanto a ideia dos bidonvilles franceses para os emigrantes do nosso país de trabalhadores mal pagos, ou mesmo outras explorações tão apontadas por cá, não sejam parâmetro a ter em conta na tese da escritora, no seu desígnio anticolonialista à la page, merecedor de prémio, quando realizado, como é o caso, com digna perícia.

A I parte, uma filha na sua infância fantasista, amando o pai e com ele brincando, receando a mãe, mulher frustrada e áspera, e amando a criada negra que a amamentou, juntamente com a sua própria filha, um pai pacífico e trabalhador e bom companheiro de brincadeiras da filha, uma mãe rigidamente agarrada à sua costura e aos seus muitos recalcamentos magoados, de ódios, invejas e frustrações.

A II parte leva-nos a Amélia, aos seus passeios solitários ao domingo, pelos espaços citadinos, nas suas fantasias de engrandecimento próprio, ao percorrer os espaços das elites, Polana, bairro de Sommerschield, o Caracol, satisfazendo sonhos de grandeza, para contar às clientes invejosas. A história em analepse da sua infância e juventude frustradas em Portugal, o casamento por anúncio e foto respectiva, com Laureano que em correspondência a fora convencendo, com as suas descrições sobre Lourenço Marques e arredores, o gradual desapego dos seus – marido e filha - que a levam a uma fuga para novo casamento na Austrália.

A III Parte, a história de Guita e seus muitos companheiros e amigos, muitos, negros, na ânsia da escritora de demonstração de fraternidade e anti-racismo, bem contrários aos comportamentos obrigatoriamente racistas dos colonos brancos vivendo na cidade do asfalto, os negros na do caniço de desconforto e árvores, dos sonhos amantes de Guita, procurando incansavelmente a sua meiga ama Lóia, que um dia não voltou. E os amores de Guita, estudante, com Rodrigo, a descolonização e uma falsa informação de gravidez, desta, originando o desapego e a fuga daquele, com o pai, a eles contrário – ficção novelesca – mais uma – de que se compõe a tessitura da banalidade humana.

Romance de tese, é claro, belo no seu estilo, banal na sua intriga, para efeitos de sátira, de resto, tal como a que é despejada em torno da tal sociedade de elites, contrastando com a simpatia de um povo colonizado que a pata do colonizador importunou.

É claro que se augura o bem para essa terra independente e livre da tal pata colonialista. Mas a personagem Guita não permaneceria nessa terra, levada na avalanche temerosa das consequências de uma permanência instável, demonstradora de que o povo nativo não seria tão doce assim, e que conviria escapar, ainda que fosse para casa de alguma tia áspera, empregando-se num café, para sobreviver. Na restauração, como se diz hoje.


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