sexta-feira, 23 de julho de 2021

Lições da nossa experiência

Com máscara, sem máscara, sobra sempre uma lição escrita. Esta, de Paulo Tunhas, para recreação e entendimento do nosso caso somítico. Da China a Portugal /premium A humanidade é mesmo ligada por características comuns e, por mais diferentes que sejam os tipos antropológicos criados pelo totalitarismo e pela democracia, há sempre umas semelhançazinhas aqui e ali PAULO TUNHAS OBSERVADOR, 22 jul 2021 Aqui há vários anos, deixei praticamente de ler coisas sobre o horror dos totalitarismos. Em parte, porque acreditava que sabia tudo o que de essencial havia a saber sobre o fenómeno – o que não deixava de ser em parte verdade, a partir do momento em que se percebe que há um princípio de ilimitação do crime intrínseco a esses regimes -, em parte porque estava farto de pensar o pior e apetecia-me passar mais tempo a pensar o melhor. Mantive esta regra informal, com uma excepção ou outra, durante muito tempo. E ainda me esforço para a manter, sendo as excepções aquelas que me parecem úteis para iluminar a nossa situação presente. E é por a história da Revolução Cultural chinesa (1962-1976) apresentar, à superfície – quer dizer: longe da abissal profundidade da morte de milhões –, algumas semelhanças com o movimento woke, que me pus a ler coisas sobre essa época de terror que provocou o habitual entusiasmo imoderado de muitos intelectuais ocidentais. Reli o que tinha em tempos lido de Simon Leys (pseudónimo do grande sinólogo belga Pierre Ryckmans) e li pela primeira vez o último volume, The Cultural Revolution, da triologia que Frank Dikötter dedicou ao regime maoista. É claro que entre o horror totalitário e a democracia há um caminho imenso que não se percorre de um só passo. Mas, como não poderia deixar de ser, há uma continuidade entre as paixões do homem totalitário e as paixões do homem democrático. Não poucas vezes descobrem-se as primeiras no interior das segundas. Depois da Grande Fome (1958-1962), provocada pelo “Grande Salto em Frente” de Mao Tsé-tung, que fez – pela própria fome ou pelos massacres que à época tiveram lugar – pelo menos cerca de 45 milhões de mortos, Mao sentiu o chão debaixo de si pouco seguro. A maneira que encontrou para resolver o seu problema foi a chamada “Revolução Cultural”, que não foi senão uma gigantesca guerra civil, fomentada pelo próprio Mao, em que se opuseram constantemente facções contrárias, todas elas reivindicando-se do “pensamento Mao Tsé-tung” (é nessa altura que é publicado o Pequeno Livro Vermelho e que o “culto da personalidade” atinge dimensões nunca vistas), que Mao apoiava alternadamente. Os chefes das facções eram todos eles, num certo sentido, criaturas de Mao, a começar por Lin Piao – dado a fobias extremas, nomeadamente no que respeita à água: o simples ruído da água corrente provocava-lhe diarreias – e pela mulher de Mao, Chiang Ch’ing, e a acabar no mais ignorado dos Guardas Vermelhos. Mao ia-os apoiando até suspeitar que lhe procuravam suceder. De facto, o seu grande medo era o de que algum deles se tornasse o “Khrushchov chinês”, isto é, que lhe fizesse a ele o que Khrushchov fez a Estaline, o seu modelo, no XXº Congresso do PCUS. Para eliminar essa possibilidade era necessário inventar a continuação da “luta de classes” – “Nunca esquecer a luta de classes!” era um slogan da altura – no interior do regime e fingir que tudo começava do zero. Diz o excerto de um discurso de 1958 recolhido no Pequeno Livro Vermelho que a pobreza e a miséria são “coisas más na aparência, mas boas na realidade. A pobreza leva à mudança, à acção, à revolução. Sobre uma folha branca, tudo é possível; podemos escrever e desenhar o que há de mais novo e de mais belo”. Mao fartou-se de escrever e de desenhar. A educação devia, em consequência, ser inteiramente revista, de modo a fazer desaparecer qualquer vestígio do ensino burguês, incluindo as avaliações dos estudantes segundo os critérios tradicionais. Destruíram-se templos e bibliotecas. A linguagem do “pensamento Mao Tsé-tung” tornou-se a linguagem única admissível. Criaram-se personagens com biografias fictícias, como o bravo soldado Lei Feng, que resumiam em si, para servir de exemplo, todo o fervor maoista, no seu combate contra “monstros e demónios”. No meio desta guerra civil destinada, do princípio ao fim, à consolidação do seu poder e à eliminação de todos os seus adversários – até Lin Piao, o fiel dos fiéis, encontra a morte em 1971 -, perde-se a conta ao número de vidas desaparecidas e às humilhações sem nome a que são submetidos todos os que vão sendo declarados, por uma facção ou outra, inimigos do maoismo, tal como não há limite para as autocríticas, que florescem a velocidade inédita. Não falta sequer o ocasional canibalismo, mais trivial durante a Grande Fome, um canibalismo teoricamente justificado pela luta de classes: “Canibalismo? Era a carne de um proprietário! A carne de um espião!”, explicava o chefe de um comité revolucionário. Quando Mao morre, em 1976, a festa acaba. Em vida, conseguiu evitar o aparecimento de um “Khrushchov chinês”, isto é, de alguém que o condenasse. Condenados, depois, foram alguns dos que o apoiavam. Entre os muitos julgados, encontrava-se Chiang Ch’ing, a viúva de Mao e figura eminente do chamado Bando dos Quatro: “Eu era o cão do Presidente. Mordia quem quer que fosse que ele me mandasse morder”, declarou para a eternidade. É difícil transitar do horror totalitário para a mais pacata vida das democracias, mas está longe de ser impossível, como disse antes, encontrar certas tendências totalitárias no movimento woke: a ideia de que se pode começar tudo como numa página em branco; a multiplicação das humilhações públicas e das consequentes autocríticas; a o derrube das estátuas e dos vestígios do passado; a transformação da linguagem; e por aí adiante. De facto, nem sequer é necessário ir tão longe quanto isso. Basta pensar no nosso manso Portugal de hoje. Querem alguém que seja tanto uma criatura do seu mestre como Eduardo Cabrita? Trata-se obviamente de uma ficção inventada por António Costa. Só existe politicamente por isso e deixará de existir mal o mestre lhe diga para desaparecer. É por isso que é inútil interrogá-lo sobre o que quer que seja. Querem combates contra “monstros e demónios”? É ler, por exemplo, os relatos que a imprensa divulgou das Jornadas parlamentares do PS em Caminha ou toda a escola de pensamento que gosta de “malhar na direita”. Querem culto da personalidade? Ascenso Simões publicou recentemente um artigo tão grotesco sobre Costa que me recuso a detalhá-lo aqui, algo do género “Sigamos o pensamento António Costa a caminho da liberdade, com o sol dentro do nosso coração”. Mas basta lembrar que foi ele o primeiro director da campanha de Costa para as eleições de 2015, aquelas que ele perdeu para Passos Coelho. Foi substituído por causa de uns cartazes muito maoistas que anunciavam uma brilhante página em branco na qual tudo podia radiosamente ser escrito e por uns outros em que apareciam fotografias de indivíduos que narravam os tormentos pelos quais passaram durante a troika e que eram, de facto, funcionários de uma Junta de Freguesia lisboeta do PS. E, é claro, Ascenso Simões alçou-se à celebridade nacional com o seu famoso artigo onde lamentava o pouco sangue que correra no dia 25 de Abril e onde reclamava a destruição do Padrão dos Descobrimentos. Querem um Lei Feng lusitano? Esperem um bocado, que ainda vai aparecer algum jovem empresário socialista – chamemos-lhe Valentim Feliciano – que interpreta as sublimes directivas de Costa na execução do PRR com o exemplar fervor da juventude que conta, aquela que traz consigo o futuro, a paz dos povos e a mensagem do “pensamento António Costa”. Estamos, é claro, muito longe do horror totalitário, graças a Deus, e não estou a ver Pedro Nuno Santos e Fernando Medina a acusarem-se um ao outro de serem o “Khrushchov português”, mas, à nossa escala, não é, no conjunto, um espectáculo bonito. Enfim, a humanidade é mesmo ligada por características comuns e, por mais diferentes que sejam os tipos antropológicos criados pelo totalitarismo e pela democracia, há sempre umas semelhançazinhas aqui e ali. POLÍTICA CHINA MUNDO COMUNISMO PS COMENTÁRIOS josé maria: Da China a Portugal passando pela América: Facts about poverty and hunger in America. Even in the world’s greatest food-producing nation, children and adults face poverty and hunger in every county across America. In 2019, 34 million people lived in poverty in America. For a family of four, that means earning just $25,000 per year. Before the coronavirus pandemic, more than 35 million people faced hunger in the United States, including more than 10 million children.A household that is food insecure has limited or uncertain access to enough food to support a healthy life. Children are more likely to face food insecurity than any other group in the United States. Feeding America. Org João Vieira > josé maria: O sonho dos pais fundadores foi, claramente, um erro e os milhões de mortos do comunismo apenas danos colaterais. Vendam já o mundo à China por um prato de caracóis. Francisco Tavares de Almeida: Paulo Tunhas abre, não direi uma janela mas um postigo de esperança. Com tudo e todos centrados no pensamento de António Costa, quando este for para Bruxelas substituir Michel, talvez o edifício partidário socialista impluda. manuel soares > MartinsFrancisco Tavares de Almeida: A coisa perde muito do seu sal se não reparar que, conforme o texto, para os sequazes do tipo Ascenso Simões, seguindo a mentalidade do velho maoísmo, não se trata do pensamento "DE" A. Costa mas sim do "pensamento António Costa", um pensamento objectivo que, embora indissociável da pessoa, como no "pensamento Mao", continuará a agir nos seus fiéis sem a sua presença. Francisco Tavares de Almeida > manuel soares Martins: Lamento menorizar a sua erudição mas o pensamento, com ou sem de, António Costa é circular: esgota-se nele próprio. Aliás esse pensamento, com ou sem de, tem o objectivo de qualquer vírus: perpetuar-se e multiplicar-se (talvez por isso há quem diga "isto" não começou na China pois a variante Delta já cá anda desde 2015). Admitindo com alguma boa vontade que esse pensamento, com ou sem de, possa ser transposto para o PS ou seja, para a objectivo de continuar a ocupação do Estado, a influência na justiça e o controlo das narrativas, na ausência do maestro a coisa pode tender a esboroar-se. É que não vejo segundo e sucessor com a sua habilidade e, se Santos Silva, como já ameaçou, regressar ao ensino, não sobra nenhum com inteligência. que mereça destaque. Antes pelo contrário: Meu caro, "o fenómeno", como lhe chama, é velho como a humanidade e mais antigo até, pois tudo leva a crer que foi criado pelos primeiros primatas, porém só adquiriu o actual significado quando houve gente que se começou a opor aos totalitarismos, primeiro pontualmente, e depois regularmente, desde a Revolução Francesa. Foi aliás graças aos totalitarismos que surgiu uma coisa chamada "democracia", que mais não é que o totalitarismo citadino, ligado ao território, primeiro o dos "cidadãos", e depois o dos Estados enquanto unidades territoriais, por oposição ao totalitarismo meramente tribal com que tudo começou, o dos vigaristas - os chamanes ou feiticeiros, ou seja os fala-barato como os "comentadores", de que hoje temos muitos exemplos na política e na justiça - um deles até chegou a Presidente - ou o dos "senhores de pendão e caldeira", ou seja os que andavam com uma bandeira e um caldeirão para alimentar quem os seguia, dos quais também temos um exemplo quase perfeito no Rui Rio - em todo o caso é o que ele julga - e um "mais-que-perfeito", no Costa e na sua camarilha. Curiosamente no futebol, é que eles se "realizam", pois conseguem ser simultaneamente as duas coisas. Na política é mais complicado pois só há lugar para um: o 1º Ministro!!! Todavia a democracia é uma coisa do passado. Tal como o totalitarismo. Em todo o caso no singular, ou seja um totalitarismo de cada vez... porque hoje, graças ao progresso e às novas tecnologias, temos os totalitarismos todos de uma vez!!! É assim uma espécie de "King sintético"... as Copas, o Rei de Copas, as Damas, as Duas últimas, os "homens", e 13 vazas - tudo ao mesmo tempo!!! António Sennfelt: Parabéns a Paulo Tunhas por mais um dos seus oportunos textos! Mas será que continuando nós a seguir "o pensamento de António Costa a caminho da liberdade com o sol dentro do nosso coração" estaremos assim tão longe do horror do totalitarismo? f Teixeira: O que admiro nestas crónicas é a forma elevada e até elegante como o autor expõe as misérias cá do burgo. Ler estes textos, é um prazer obrigatório, que se repete a cada quinta-feira e que, de forma inteligente, nos alerta para o buraco em que estamos a deixar afundar o país. Obrigado. Ahmed Gany: " Qualquer que tenha sido o preço da revolução chinesa, obviamente teve êxito não só produzindo uma administração mais dedicada e eficiente senão inclusive no fomento de uma alta moral e propósito comunitário (...) "A experiência social na China, sob a liderança de Mao, é uma das mais importantes e bem-sucedidas na história humana " - David Rockefeller. Alberto Rei: O wokismo da China ?, não me parece. Mais talvez de Cuba, como o PS, manifestou há dias. Semelhanças com a China de Mao? também não me parece, apesar de aqui e acolá Tunhas demonstrar um culto da personalidade inadmissível, tal a falta de competência e de classe de Costa. Não tem pinta nenhuma, é um desbragado. Mas tem mais, a China totalitarista, soube construir "um socialismo com características chinesas", com certos limites aos cidadãos, mas com ordem para estes enriquecerem. E Portugal? vai ao bolso dos cidadãos continuadamente, e empréstimos internacionais. Os holandeses sabem bem como a gente gasta o dinheiro, sem qualquer sentido de futuro. Não há qualquer semelhança com a China. voando sobre um ninho de cucos: Não há semelhançazinhas: há grandes pontos de convergência. Um dado curioso: em 2015 Ascenso Simões foi afastado por causa do cartaz enganador. Há seis anos ainda se tinham em conta pelo menos as aparências. Hoje ninguém quer saber disso. E por favor, não usem os cães para metáforas políticas: os cães são animais muito dignos . deles se diz que podemos esperar fidelidade canina, que são o melhor amigo do «homem», que lambem as mãos do dono e reconhecem a sua voz. Eu não conheço nenhum político que possa encaixar neste perfil. E finalmente há aquele célebre provérbio : os cães ladram e a caravana passa. Ontem António Costa deve ter pensado muito neste provérbio se bem que com outras palavras: deve ter mandado a oposição para aquele sítio cujo som é bastante semelhante ao da árvore venerada pelos druidas. Carlos Quartel: Um alerta sério, De facto, passo a passo , o PS se vai corporizando em Costa, só Costa e as suas criaturas. A crónica é assustadora e, esperemos, exagerada, mas lá está a capacidade manipuladora, lá está a corte obediente e lá estão os cães de Mao. Correndo o leque de personagens do topo do PS, só encontramos gente cinzenta, sem ideias próprias, vigilantes e agressivos, prontos a morder para protecção do dono. Uma interessante e fresca abordagem da situação, parabéns ao autor ,,,, Zé da Esquina: Excelente artigo, para guardar! Ainda bem que existem jornalistas ou intelectuais com a coragem e o discernimento para nos elucidarem sobre as 'manigâncias' desses regimes totalitários e da cegueira ideológica dos que os seguem. Uns, muitos poucos, são os líderes; mas idiotas úteis abundam com fartura em cada esquina, sempre prontos para idolatrar o líder, prontos para novo grande salto em frente... Cisca Impllit: Cada vez mais - mais gosto da lucidez de Paulo Tunhas. E transmitida à compreensão simples.

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