segunda-feira, 12 de julho de 2021

Quem se lembra de se sobrecarregar com flores

 

A tão grande distância de casa? A culpa foi toda da Paula, por se ter afadigado assim. Só me pergunto se, não fora a sua intervenção, figura miúda em desespero de causa, a sair da sua fila e a discutir com a autoridade policial, a fila ainda hoje lá não estaria, infindável, as máquinas dos bilhetes em greve, ou avariadas, em sintonia com o tempo parado, num país tantas vezes parado no tempo…

Tudo com Covid em cima, no desespero do emperramento, em cenário de passividade quebrada por uma decisão que a indignação ditou, na sobrecarga das suas flores - para mais, verdes - e na premência dos compromissos próprios… E as flores a pôr a nota caricata no arrojo da discussão que, contra o esperado, até resultou.

Eis o texto da Paula:

 “CP: uma experiência de sonho.”

Vim calmamente a pé, do Bairro Alto, descendo os degraus dos passeios da rua do elevador da Bica. Os elevadores pararam a meio caminho, ou avariados, ou porque decidiram que não valia a pena mexer-se, por estarem vazios os dois. Não percebi, mas ambos retrocederam. Fui tirando as minhas fotos da praxe, de prédios, rio, céu e uma pomba na calçada íngreme.

Cais do Sodré, Time Out e a florista. Um ramo de flores - verde das flores com verde do acompanhamento, e a esperança de chegar a casa rapidamente. “Lisbonne étouffe”, calor de rachar, excesso de pessoas e há flores que são sensíveis. Estação dos comboios, uma menos um quarto. Bichas excessivamente longas nas máquinas de bilhetes, que não andavam - seis máquinas, três de cada lado, e, do que eu escolhi, duas bloqueadas; só uma, cansada, trabalhava. Turistas, imigrantes, línguas variadas... a multidão acumulava-se já até ao meio do Pingo Doce, em duas filas. Inúmeras pessoas a desistir de ir de comboio onde quer que fosse, outras a mudar para a fila do lado (?), que engrossava.

Bilheteiras fechadas, era dia de greve. Ainda um rapaz (inglês?) que, à minha frente curtiu música, abanando a cabeça, durante muito tempo, até começar a aborrecer-se com o tempo, o segundo da fila, tentou ajudar a primeira - uma rapariga (inglesa?) que carregava no ecrã, inseria moedas e notas que eram rejeitadas, olhava para a máquina, mas não desistia - chegando mesmo a emprestar-lhe o seu próprio cartão multibanco. Nada!, a nossa boa máquina não reagia.

Aproximei-me para ajudar, também (até aí a minha participação apenas consistira em tocar nos botões de ajuda das duas máquinas bloqueadas, para as pôr a apitar. Mas a greve era a sério e ninguém atendeu). Li a enorme mensagem em Português e disse-lhes: “Pois é, no paper, no tickets, no cards, so impossible to travel with these three machines.” Olhámo-nos.

Saí corajosamente do meu lugar, o terceiro, e dirigi-me aos quatro polícias que disciplinavam mansamente a fila do Pingo Doce, ao nosso lado: dois mancebos, uma jovem e um senhor mais idoso, que não se desencostou de uma fita que o amparava, mais além, à porta do supermercado. Pedi aos polícias mais jovens que me abrissem a porta da gare, pois já tinha perdido dois comboios, estava há uma hora em pé sem me mexer, quase, as três máquinas não funcionavam, do nosso lado, a fila do outro tornava-se monstruosa, e , finalmente eu tinha um cartão caducado mas cheio de dinheiro que a pandemia deixara acumular.

Um deles, alta e garbosa figura, assegurou-me que as máquinas estavam todas a funcionar. Ao fim da terceira vez que produziu, convicto, esta afirmação assertiva, eu, já de cabelos em pé (também por causa do gel que agora uso por estarem curtos), quase gritei que, em vez de estar ali em pé nas suas pernas a julgar que estava tudo certo naquele mar de gente, fosse verificar as máquinas.

A jovem polícia dirigiu-se ao lado direito, o meu interlocutor ao esquerdo de quem entra no Cais. A figura feminina afiançou-me de que, ali, tudo estava a funcionar. Do outro lado estava instalada a confusão. Perguntei à minha interlocutora se achava que eu e os outros atrás de mim íamos passar à frente de todos os que esperavam pacientemente a sua vez daquele lado. Pedi-lhe novamente que me abrisse o portão. Não tinha chave, nem tinha nada a ver com a CP. Quis saber (um pouco agressivamente, talvez) o que estava então ali a fazer, pôs as duas mãos no ar contra o meu ramo de flores verdes ao ombro, desculpou-se que a sua missão era garantir a segurança, tal como a dos outros três colegas.

No meu tom de tenor/baixo, quase contrabaixo, interroguei-a sobre se não seria da sua competência e dos seus colegas (que, entretanto tinham voltado à calma mansidão do Pingo Doce e se encontravam em conversa amena) recomendar às pessoas, felizmente de máscara, que mantivessem o distanciamento social, coladas que estavam todas ao parceiro da frente no seu lento caminho para mais depressa chegar às máquinas. A jovem polícia nada tinha a ver com isso, também. Não podia obrigar ninguém. Mandou-me chamar o segurança da estação para tratar do meu caso.

Detesto ser obrigada e, na minha miopia, agravada pelos óculos escuros embaciados de máscara, não via tal figura. Furiosamente, dirigi-me ao café, perguntando à menina que atendia (uma simpatia!) se me podia indicar o caminho para o e a segurança. Informou-me que não tinha ainda visto ninguém, entrara há pouco ao trabalho, mas que havia um botão onde eu podia carregar, no meio das portas que abrem para as plataformas hoje vazias.

Agarrei-me à tábua salvadora, o botão, e... “abre-te, Sésamo”, surgiu, calma e eletronicamente, o segurança, senhor de idade experiente. Expliquei-lhe a minha situação de cartão caducado com dinheiro não gasto, como era habitual, devido à pandemia, máquinas desvairadas, bichas até quase ao jardim da praça, restaurada junto ao rio e onde o sol brilhava sobre as árvores, iluminando o quiosque com esplanada em que costumo tomar a cola zero do relaxamento, no final das minhas viagens pela capital, enquanto aprecio pessoas, bicicletas e trotinetes no seu vaivém turístico, e tiro fotografias aos passarinhos.

Tinha um neto para ir buscar, ainda longe, e sentia a angústia que experimento sempre perante portas fechadas. Não podia abri-las, eram as regras. Peguei na minha voz grave, já em desespero mais esganiçada (a minha assertividade é a do refilanço gritado), acrescentando que tinha e estava com claustrofobia e, ou ele me abria imediatamente a porta para a plataforma e o comboio das duas, ou eu chamava o 112 e ia para casa de ambulância com a minha paranóia.

Abriu-me uma das portas com a sua chave-mestra, pedindo, por favor, ao pé daquele mar de gente arregalada, que nunca dissesse que tinha sido ele a fazê-lo. Percebi: não haveria “picas” nos comboios, a greve era para se cumprir.

Despedi-me, aproveitando rapidamente a porta aberta, e saltei, com as minhas habituais dores nos pés, para o terceiro comboio a menos de cinco minutos da sua partida.

“Nunca direi, senhor técnico amável, quem me concedeu, exatamente 47 anos, 3 meses e poucas horas depois do 25 de abril, a liberdade.” o segredo é a alma do negócio e eu sou muito criativa. Apreendi o empreendedorismo na escola (de há uns anos para cá), desde que esta forma de pensamento e resolução de problemas se tornou indispensável nas OP Jovens e ganhámos uns bancos e mesas de madeira, junto ao lago, à sombra da nossa querida oliveira Indira e dos plátanos, em frente à pedra do moinho, símbolo da Escola, noutro canteiro de plátanos, com a inscrição:

“Se és homem decidido, precisas de um moinho que trabalhe com as nuvens sem dependeres dos regatos”

Também a sala de professores está decorada com enorme placa de azulejos pintados de motivos diversos, consoante o gosto e o talento de cada professor, durante uma semana cultural, há muitos anos, cozidos na mufla e juntos num painel monumental encimado por outro dos versos de Ibn Mucana:

“O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre.”

Quanto aos plátanos, permitem-nos refrescar ideias e trabalhar ao ar livre, quando os alunos estão em aulas. Apenas a máscara, nos dois últimos anos, nos tem aliviado a alergia e a falta de ar.

 

 

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