domingo, 4 de julho de 2021

Não o quer calar


Um dos primeiros comentadores de Jaime Nogueira Pinto. Não quer calar o mestre, conquanto o vá displicentemente, (julga ele – já que não ofende quem quer mas quem pode) e, sim, abjectamente (em avaliação sintomática de pequenez moral), descrevendo, segundo os seus padrões de estulta inveja. Percebe-se porquê. Quer recrear-se com a argumentação sabiamente organizada e pertinente do Historiador, que lhe proporciona mais luzes, assim como a todos nós, que o não invejamos, e o escutamos ou lemos avidamente, na tranquila demonstração das suas teses, de confronto entre uma maior permeabilidade ao saber no tempo dos reis absolutos, do que hoje, em que se impõem leis, com menor respeito pela liberdade da consciência humana, no colapso dos valores morais. Não, não queremos que JNP se cale, as suas palavras são maná, neste nosso deserto, quem sabe se de proveito, como motor, ao menos, de uma maior consciência moral…

Absolutismos /premium

Bossuet foi bem menos absolutista e intolerante e bem menos lesto em usar a arma censória do que hoje o são os virtuosos portadores da liberdade e da tolerância.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 02 jul 2021

Na França da consolidação do absolutismo de Luís XIV, onde pontificava Bossuet e a sua “política tirada das palavras da Sagrada Escritura”, os dois conhecimentos essenciais e bastantes para o homem eram “a Teologia e a Gramática: a Teologia para conhecer os mistérios de Deus e da Criação; a Gramática para os traduzir e transmitir”.

Outras narrativas e autoridades legitimadoras viriam, mas ali “a bíblia” era mesmo a Bíblia e, logo, o campo de batalha dos que queriam, na intemporal denúncia de Espinosa, “extorquir dos livros santos a confirmação dos seus devaneios e dos seus sistemas, a fim de os cobrirem com a autoridade de Deus.”

E no final desse século XVII, que vivera toda a crise político-religiosa da Guerra dos Trinta Anos no coração da Europa, e da Revolução Inglesa, com os seus muitos radicais autoritários e messiânicos, os focos de polémica e dissidência acendiam-se. Em França, depois de Bayle e da sua “desconstrução dos milagres”, aparecia a Histoire Critique du Vieux Testament, de Richard Simon, seguida de outras obras polémicas sobre a Bíblia. Richard Simon era um oratoriano que estudara as línguas orientais – hebreu, siríaco, copta, árabe – e que, nas bibliotecas da ordem, compilara e comparara manuscritos bíblicos. Tratava a Bíblia, o Velho e o Novo Testamento, como um livro de História, fazendo a exegese das fontes, das percepções alternativas e das versões contraditórias dos doutores judeus. E Bossuet ia contrapondo e reagindo a Simon e ao uso que fazia da História e dos seus métodos para examinar os Livros Sagrados, minando a autoridade interpretativa da Igreja.

Estávamos na França do Rei-Sol mas, ainda assim, o poderoso Jacques-Bénigne Bossuet, bispo, teólogo, orador e defensor do poder divino e absoluto do Rei, resistia à tentação de usar a arma censória contra Simon: tinha, dizia-se, demasiado amor pelas almas, respeito pela razão e vontade de esclarecer os espíritos para o fazer.

Achei interessante lembrar esta polémica, que durou anos, em plena França absolutista, perante o clima de progressiva proibição, interdito e denúncia que vivemos hoje, em plena democracia liberal.

Aqui, longe do absolutismo, cada vez mais se cala a controvérsia e se adensa a ausência de qualquer espécie de “amor pelas almas, respeito pela razão e vontade de esclarecimento dos espíritos”. Até porque os radicais “devaneios” dos que agora querem impor os “seus sistemas” são apressadamente confirmados e autorizados, não já dissecando e torcendo os “livros santos”, mas evocando sacrossantas cartilhas de duvidosa proveniência, arremessadas ao povo como Progresso, Ciência e Direitos Humanos.

Acresce ainda que quem hoje está do lado do poder, não só não hesita em recorrer à “arma censória” como ainda insiste em pousar como tolerante dissidente, como bom rebelde, como advogado de (quase) todas as vítimas,  ou como vítima, propriamente dita; defendendo a ortodoxia e perseguindo em seu nome mas querendo passar por heterodoxo.

À semelhança dos que outrora implantaram regimes totalitários em nome do proletariado, desencadeando a luta de classes e instalando-se no poder como vanguarda das “vítimas da fome”, esta nova vaga de “revolucionários da tolerância”, herdeira não já da dureza e seriedade da revolução de Outubro mas da ludicidade burguesa do Maio francês, quer instalar-se ou manter-se no poder, impondo uma cultura totalitária em nome de um novo rol de vítimas de um outro tipo de fomesfrequentemente mais metafóricas ou imaginárias do que reais. Não é já, por isso, a “ditadura do proletariado”, mas o absolutismo das “minorias”, ou de certas minorias – as susceptíveis de integrarem o catálogo de um novo, volátil e versátil “proletariado” a instrumentalizar, um “proletariado” vitimado pelo racismo, pelo sexismo, pela homofobia, pela transfobia de opressores também já pré-catalogados.

Este poder “em nome das vítimas” é, assim, uma herança da contra-cultura dos anos 60, que, por índole e táctica, quer guardar o melhor de dois mundos, e não pode, por isso, admitir que está hoje do lado do poder ou mais que instalada e estabelecida como cultura dominante – e ao “serviço do capital”.

Porque não pode deixar de ser sintomático que o “grande capital” e as “forças vivas” do sistema sejam agora “progressistas” – dos bilionários da Big-Tech (e dos dez mais ricos dos Estados Unidos, tirando os irmãos Koch), à Academia e aos grandes media. E não pode também deixar de ser sintomática a neutralidade colaborante de grande parte das elites sociais, que, sobretudo em sociedades periféricas, como a nossa, têm medo da sombra, são intelectualmente inseguras e precisam de assumir posições “dominantes” para não ficarem nervosas.

A nova vaga tem, assim, tudo a seu favor – tudo menos, talvez, o povo, o povo comum, o “Terceiro Estado”, incluindo a classe média em perda; precisamente aqueles a quem quer calar, chamando-lhes deploráveis e fascistas sempre que “votam mal”.  E, aparentemente, têm vindo a “votar mal” mais do que o desejável, porque o avanço eleitoral da “não esquerda” na Europa é claro.

Mas o que também é claro é que os mandarins desta contra-cultura chegada ao topo do poder político-cultural, estão a recorrer cada vez mais à “arma censória”. Será a percepção do avanço de um “poder popular” (ou “populista”) que está a motivar a radicalização frenética, a permanente deturpação dos factos, a tendência denunciatória e incriminatória de toda a dissidência ou discordância como manifestação de “fascismo” a que temos vindo a assistir?

E como a luta de classes saiu do horizonte e as tentativas violentas de assalto ao poder dos anos vinte e trinta tiveram consequências trágicas e inesquecíveis para os comunistas italianos, alemães, espanhóis e seus aliados, a actual repressão já não é nem pode ser a dos Estalines e dos Maos, ou sequer a dos românticos latinos, Castro e Che. Não. A repressão faz-se agora mais à Maio de 68 em versão revista e aumentada – é a marcha da distorção, da denúncia, do silenciamento, do cancelamento; o uso dos aparelhos comunicacionais para apedrejar qualquer dessacralização, séria ou humorística, das vacas sagradas do novo credo, denunciando prontamente como “discurso de ódio” ou “homofobia” até mesmo a ausência de hossanas e incitando “os estudantes” à histeria reactiva ao mais leve indício de não-alinhamento com a “verdade estabelecida”.

Dois casos recentes documentam esta linha de pressão e interdição: o primeiro é a condenação, a nível do Conselho Europeu, da legislação húngara sobre educação sexual, que inclui medidas de combate à pedofilia e interdita o ensino da ideologia de género como “ciência”; legislação considerada por 17 dos 27 responsáveis políticos da UE de tal forma “homofóbica e anti-LGBT” que a própria neutralidade de alguns Estados foi tida como uma afronta.

O segundo foi o voto favorável do Parlamento Europeu à proposta de resolução do deputado socialista croata Predrag Fred Matić, que pretende incluir o aborto no elenco dos direitos humanos e remover todo e qualquer obstáculo que o limite. Honrando uma herança da esquerda radical, a resolução quer começar desde já a dobrar o “povo” através de legislação pedagógica não vinculativa. Por um malabarismo semântico-jurídico, propõe-se, primeiro, para o aborto o estatuto de “direito humano”; instam-se depois os Estados que “ainda” tenham leis restritivas em relação à prática a “evoluir”; e, finalmente, redefine-se como “negação de cuidados médicos” a objecção de consciência dos profissionais ou instituições de saúde contrários à execução do novo “direito” (habilmente acrescentado a um texto legitimador, a Carta dos Direitos Humanos, onde “o direito” não está).

O Primeiro-ministro húngaro refutou as acusações de homofobia dizendo que, na vigência do regime comunista, tinha defendido os homossexuais que os donos do poder então discriminavam, perseguiam e encarceravam; acrescentando que as suas leis, aprovadas por uma larguíssima maioria, se limitavam a regular a protecção dos menores de propaganda de natureza sexual.

Já o voto do Parlamento Europeu revela uma escalada para impor, por estratégia indirecta, a Agenda de desconstrução dos valores fundamentais da Europa, com absoluto desprezo pela tradição ocidental da liberdade de consciência, que pretende abolir.

Quando em França, nas discussões que precederam a aprovação da “Lei Veil”, a própria Simone Veil afirmou que “naturalmente nenhum médico ou auxiliar médico” seria “obrigado a participar”, essa cláusula de consciência foi um elemento essencial para que a lei passasse. E a liberdade de consciência, além de estar consagrada nos Direitos do Homem e do Cidadão e de ser reconhecida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem é também, no caso do aborto, um direito reforçado pela OMS, pela Associação Médica Mundial e pela Federação Internacional dos Ginecologistas e Obstetras.

Mas mais importante que todas estas leis escritas é uma tradição de valores que, desde a Antígona, coloca acima do direito positivo as convicções profundas e íntimas de alguém. É essa liberdade de consciência, confirmada pela repetida disponibilidade de pagar o seu preço nas tiranias, que explica a maioria dos mártires e todos os que, ao longo dos séculos, deram a vida por um princípio.

A protecção da objecção de consciência é, precisamente, uma das características das sociedades livres do Ocidente, mantida e reafirmada pelo humanismo liberal. Querer penalizá-la, suprimi-la ou cancelá-la não pode deixar de ser um indício do perigoso rumo iliberal que a nova Esquerda está apostada em prosseguir.

Mas dos números da votação da resolução Matić (378 a favor, 255 contra e 42 abstenções) e do clima dos debates pode também concluir-se que, se há uma estratégia de ocupação e hegemonia nas questões fracturantes por parte da Esquerda, também há, cada vez mais, uma determinação de resistência.

Há também uma crescente consciencialização de que as questões identitárias – de identidade civilizacional, nacional, religiosa e familiar – são questões importantes, senão mesmo as mais importantes. Até porque num tempo em que só há uma economia – a de mercado – em economia todos ou quase todos estão de acordo. São, por isso, os valores civilizacionais, nacionais, religiosos, sociais, familiares que vão marcar divisões e decisões, ofensivas e resistências.

Bossuet e Richard Simon, cada um no seu campo, tinham o denominador comum da fé e da paixão pela verdade. E Simon respeita a História e os seus métodos, que distingue da Teologia, rejeitando o que na Tradição lhe parece contrário à Razão. Argumenta com base na análise dos textos e da Filosofia. E fá-lo em consciência, acabando a combater, à direita e à esquerda, a sua própria congregação do Oratório, os Beneditinos, os Jesuítas, a Sorbonne e os protestantes. E se a Igreja o vê com suspeição e os protestantes também, os Enciclopedistas, no seu fanatismo anti-católico, desprezam-no.

O que é impressionante no seu duelo com Bossuet, numa França submetida ao absolutismo do poder real, é o vigor e a continuidade da polémica, aqui e ali interrompida pela autoridade política ou eclesiástica, mas sempre rica em argumentos e em paixão. E, sobretudo, em seriedade e procura da verdade.

O que vemos hoje é a afirmação progressiva de um espírito sectário, que procura atribuir a posições puramente ideológicas a qualidade de verdades científicas indiscutíveis, demonizando a contradição e os contraditores para calar qualquer polémica.

Bossuet, que poderia ter recorrido à autoridade eclesiástica e temporal para calar o adversário, foi bem menos absolutista e intolerante e bem menos lesto em usar a arma censória do que hoje o são os virtuosos portadores da liberdade e da tolerância, que não toleram a polémica e cancelam tudo o que possa pôr em causa as suas certezas.

HISTÓRIA  CULTURA  FILOSOFIA

 COMENTÁRIOS:

Luis Dominguez: A profunda ignorância e subsequentemente o fanatismo são os condimentos da nova esquerda pequeno burguesa de fachada socialista, mais parecidos com a intolerância dos nazis.      Liberales Semper Erexitque: Em verdade em verdade vos digo que este é o mais trafulha dos colunistas que por aqui andam. E isso mostra bem que se pode ser culto e inteligente também à direita, e ao mesmo tempo um grandessíssimo demagogo. Já agora, antes que alguma cabeça-de-santola da extrema-direita me venha acusar de o querer calar, digo já que não quero.            João Alves > Liberales Semper Erexitque: Deixe-se de contorcionismos de inspiração marxista essencialista e leia Por um populismo de esquerda, de Chantal Mouffe, que teoriza a destruição da formação hegemónica neoliberal, vulgo sociedade ocidental liberal, para a construção de uma formação hegemónica que radicaliza a democracia, sendo o sujeito histórico revolucionário o que é denominado por minorias oprimidas.            Liberales Semper Erexitque > João Alves: Está-me a dizer que as esquerdas radicais não suportam a liberdade e querem destruir a democracia? Sempre quiseram, sempre quiseram! Idem para a direita de Jaime Nogueira Pinto. Vai ter a lata de me dizer que alguém que considera António de Oliveira Salazar "o maior português de sempre" é um democrata?             Manuel Arriaga: O que há mais a dizer? Este brilhante texto deveria chegar a todos os portugueses sem excepção! Joaquim Almeida: Hoje mesmo, um Tribunal de  Relação brasileiro, talvez pela primeira vez na história das redes sociais, condenou uma conhecida plataforma a reabrir um canal conservador que, há uns dois meses, havia encerrado por mera censura de opinião. Bom sinal precursor... Magnífica lição. Obrigado.         V. Oliveira: Como habitualmente, um texto denso e esclarecedor. Muito JNP.              Filipe Fernandes: Um texto magnífico.          josé maria: Pouco falta para JNP aqui vir dizer que Salazar foi um ditador porreirinho, ou quiçá um democrata mitigado... Já faltou mais, já faltou mais...              Alfredo Vieira > josé maria: Falta mais do que para tu dizeres alguma coisa fundamentada e inteligente, por isso estamos todos descansados...    Liberales Semper Erexitque > josé maria: Ele não precisa de fazer esses números, pois para ele Salazar foi "o maior português de sempre". Há muitos anos houve uma "eleição" televisiva, e foi Jaime Nogueira Pinto quem defendeu Salazar como sendo "o maior português de sempre". Salazar ganhou, já agora. Você nunca consegue acertar uma?           Carminda Damiao: Excelente texto. Não deixe de escrever.  Elvis Wayne: Magistral crónica. Algo para relembrar e preservar para o futuro "cancelado" que aguarda o nosso Portugalinho.            Alberto Porto: Excelente análise! Obrigado             Francisco Tavares de Almeida: Mais um excelente texto. A cultura histórica e o estilo narrativo ajudam-nos o entendimento do presente.          Gil Lourenço : Outro Grande Texto, tal como o de Rui Ramos. Só por estes dois grandes autores o Observador já vale a pena! Se vale!          advoga diabo: É do mais básico a velha técnica de tentar esconder os inconfessáveis objectivos próprios acusando os antagonistas de os terem. Por estes dias de derrota após derrota do movimento iliberal global, Salvini, Trump, Le Pen, Wilders, Abascal, etc., e o seguinte, Bolsonaro, sente-se o desespero no ar! Sabem a sua única hipótese de sucesso ser manter o povo adormecido ou devastado pela guerra. Não o conseguirão!            Gil Lourenço > advoga diabo: Sente-se o teu desespero... VICTORIA ARRENEGA: Crónica excelente como é habitual. Eu diria que não estamos nada longe de Bossuet: Um nova Criação não à imagem bíblica tradicional em que Deus criou o Homem à Sua imagem e semelhança, mas agora a criação woke defendida e divulgada pela novilíngua.          Diogo Tovar: Excelente análise, obrigado JNP.              Paulo Cardoso: BRA-VÍ-SSI-MO!!! Como sempre.                Américo Silva: A universidade destinou-se, na sua fundação, a preparar quadros funcionais para a administração central monárquica dos países da vanguarda europeia. O projeto foi coroado de sucesso, com a afirmação do poder real até ao esgar absolutista de um rei D. José, um criminoso psicopata. A universidade nunca foi um centro de sabedoria, no sentido de procura e descoberta da verdade. Todavia, algumas vezes isso aconteceu como efeito colateral. Para compreender o seu papel no momento presente, facilita que se tenha presente esta circunstância. Deste princípio passou a um estádio corporativo que a associou aos movimentos sociais mais importantes, como a revolução francesa, o Maio de 68, ou a cultura woke. A universidade é um instrumento social corporativo que funciona como iniciação aos grupos de poder. O curso de direito é uma iniciação ao poder judicial, o curso de arquitectura é uma iniciação aos privilégios dos arquitectos, o curso de economia é uma iniciação às vantagens dos economistas, e assim sucessivamente. Aprende-se a linguagem usada por esses grupos, o seu mecanismo de funcionamento, e é-se introduzido ao grupo, conhecem-se as pessoas e os seus tiques, de modo a ser exposto ao recrutamento para um lugar hierarquicamente mais ou menos elevado nessas organizações. A verdade, sabedoria e ciência, no sentido clássico das palavras, são elementos apenas importantes no sentido que possam trazer vantagens para o grupo. Não são objectivo em si próprias. Daqui decorrem todas as distorções do pensamento universitário, o comportamento acrítico de alunos e professores, umas vezes com danos importantes, outras vezes apenas bizarro.

 

Nenhum comentário: