Que passavam despercebidas. A seca… um flagelo. O
calor, no Canadá… E a fome… E a Covid a dificultar… Terra mãe, mas madrasta
hoje, tudo de assustar, um mundo transtornado, Apocalipse now!
FOME O aquecimento global secou o Sul de
Madagáscar: “Não há comida”
Madagáscar é o primeiro país onde se
passa fome devido às alterações climáticas, alerta a ONU. As secas fizeram com
que fosse impossível plantar o que quer que seja numa terra outrora fértil. A
ajuda demora a chegar — quer pela covid-19, quer pela falta de recursos. E a
população tenta comer o que pode: dos frutos de cactos a gafanhotos e pequenos
tubérculos.
INÊS CHAÍÇA PÚBLICO, 3 de Julho de 2021
“Não estamos a ver uma catástrofe como
esta devido ao clima noutros locais. Vemos estas situações em locais onde
existe conflito, como na Etiópia ou Moçambique", afirma Shelley
Thakral da ONU IAKO M. RANDRIANARIVELO/MIRA PHOTO/MSF-FRANCE
Não
chove no sul de Madagáscar — não o suficiente para irrigar os campos ou dar de
beber à população. A terra, outrora fértil, está seca. Crescem apenas cactos no
meio de campos cobertos de areia, cujos frutos a população local come para
evitar passar fome.
O sul da ilha vive a pior seca em
quase quatro décadas. Às alterações climáticas veio juntar-se a crise provocada
pela covid-19. Sem rendimentos, não há quem consiga comprar comida, mesmo
quando ela existe. “O que se vê, enquanto se conduz para o sul, são cactos.
Muitos. E solo muito seco.
Um dos meus colegas disse-me que se
tivesse chovido ou se existisse um bom sistema de irrigação este seria um solo
muito fértil. As coisas crescem aqui”, diz Shelley Thakral, responsável de comunicação do Programa Alimentar Mundial
(PAM) da Organização das Nações Unidas (ONU), que
falou por telefone com o PÚBLICO a partir da cidade de Ambovombe, na região de
Androy, no extremo sul da ilha.
Ali vivem mais de 903 mil pessoas, de acordo com dados de 2018.
Thakral
tem percorrido o país ao longo dos últimos dias e tenta dar uma ideia da real
dimensão do que se está a passar. No início desta semana, a directora regional
do PAM para a África Austral, Lola Castro,
descreveu a situação “muito dramática” que se está a viver em
Madagáscar — que, disse,
é o primeiro país do mundo onde se passa fome devido
às alterações climáticas. Um problema com várias camadas de complexidade e que
afecta principalmente os mais vulneráveis.
“Todos
os anos em que não há chuva e o calor aumenta acrescentam-se mais camadas ao
problema. Não há produtividade, as pessoas têm de se mudar, não há comida, não
há meios de subsistência”,
enumera Shelley Thakral. A função do PAM nestes locais é não só a distribuição
de comida, mas também “tentar arranjar mais formas inovadoras de ajudar
pessoas, nomeadamente os agricultores, para que consigam cultivar a terra de
forma a poder resistir à seca”.
“Algumas
dunas de areia das zonas costeiras estão a ser levadas pelo vento, devido à
seca. Há terras que podiam ser cultivadas e que estão agora cobertas de areia”, conta. A próxima época das colheitas aproxima-se e
não traz bom augúrio. “Será difícil outro ano sem colheitas. O pior ainda está
por vir porque precisamos de dinheiro e de recursos para lidar com esta
emergência agora”, afirma a responsável do PAM.
“Não estamos a ver uma catástrofe como
esta devido ao clima noutros locais. Vemos estas situações em locais onde
existe conflito, como na Etiópia ou Moçambique.
O pior é que não conseguimos fazer
muito no que toca a padrões climáticos, mas temos de garantir que há comida
para as pessoas que precisam dela”. O problema é que até a comida tarda em
chegar onde mais é precisa. Devido à covid-19, os navios do PAM podem tardar
três meses a chegar aos portos da ilha e ainda demoram “quase oito dias” a
chegar à zona sul devido às fracas infra-estruturas.
“Aos três anos, será que já
desistiu?”
As
crianças das áreas mais afectadas pela seca e pela fome são um dos focos
principais deste programa das Nações Unidas. “No distrito de Amboasary, estamos
a alimentar cerca de 7000 crianças em idade escolar e isto é difícil. Fazemos
por grupos etários e começamos com os mais novos e depois vamos até aos miúdos
mais velhos. Eles não têm pequeno-almoço, às vezes têm uma refeição à noite”,
conta Shelley Thakral. Muitas
das suas famílias são ajudadas pelo PAM e outras organizações no local que
complementam este trabalho.
Ao
longo da conversa com o PÚBLICO, Shelley Thakral recorda algumas das pessoas
que conheceu nos últimos dias. Entre elas, uma matriarca
que tem a seu cargo sete filhos e vive
numa zona particularmente vulnerável, classificada como IPC5 — ou situação
de catástrofe em termos de segurança alimentar.
Estima-se que haja “14.000 pessoas a
viver nessas zonas”, número que poderá duplicar até Setembro devido à seca. “Eu perguntei-lhe como era seu o dia-a-dia e ela
disse-me que não podia fazer nada, não tinha nada para fazer. ‘Não há comida,
não posso ir à procura de lenha porque não tenho nada para cozinhar’”, recorda.
“Vê-se comida nos mercados, há pessoas a vender tomates,
bananas ou até algum arroz. O problema é que as pessoas não têm rendimentos,
não têm dinheiro para comprar comida. O que fazem é usar as crianças, por
exemplo, para encontrar a fruta de cactos e arranjar água, que vendem no mercado.”
A
responsável do PAM recorda ainda dois irmãos que conheceu num hospital, onde
estavam a receber tratamento devido à desnutrição aguda. O menino tinha três
anos e a menina, quatro. A mãe estava a trabalhar nos campos e o pai morreu há
uns anos. Com a voz embargada, Shelley Thakral recorda a apatia com que o
menino recebeu as suas perguntas. “Uma
criança que não respondia quando lhe perguntávamos o nome. Estava tão fraco e
frágil. Foi uma situação muito perturbadora porque as crianças são
resilientes. Já trabalhei em muitos sítios, do Iémen ao sul da Ásia,
e o que mais me tocou foi a tristeza no rosto desta criança. Aos três anos,
será que já desistiu? O que é que
ele já viu?”
“As
pessoas não têm muitas coisas porque tiveram de vendê-las para conseguir
sobreviver” Ricardo
Fernandez é
voluntário dos Médicos Sem Fronteiras. O
fisioterapeuta está actualmente em Ambovombe a coordenar um projecto de ajuda humanitária
nessa cidade e na de Amboasary, no distrito de Anosy, ambas no sul da ilha.
Está em Madagáscar há um mês e meio e é responsável por garantir “que o
trabalho de toda a gente no terreno é possível e que o que fazemos faz sentido,
que estamos a ajudar a saúde da população”.
“A
nossa resposta tem três eixos principais: fornecer
cuidados de saúde às pessoas que já estão em desnutrição extrema, garantido por
clínicas móveis; o apoio no hospital local; e a distribuição de comida. Tentamos completar o que faz o PAM e outras
organizações, de forma a conseguir chegar ao objectivo calórico”, resume. Em
paralelo, garantem a acessibilidade a água “com qualidade” através da abertura
de furos públicos.
Numa
conversa por telefone, relata o que tem visto: situações “muito heterogéneas e
que mudam de forma muito rápida”.
Por
exemplo: há aldeias onde se consegue arranjar arroz ou mandioca. Noutras,
não há nada. “Em situações normais, estas populações são seminómadas
e levam o gado consigo quando se movimentam. Agora
não há muito gado”, explica. Quer pelos roubos, quer pela seca, quer por
factores culturais.
“Tem
havido roubos de gado, que induziram pânico na população e até migrações. Estas
migrações incluem os trabalhadores dos serviços de saúde que fazem com que a
população não tenha acesso à saúde.”
“Quando se entra numa casa, as pessoas
não têm muitas coisas porque tiveram de vendê-las para conseguir sobreviver”,
relata. “Em termos de comida, esta situação é insustentável. Algumas pessoas
dependem de ajuda humanitária”, mas nem esse apoio consegue chegar a todo o
lado. “Não é suficiente. É difícil enfrentar a dimensão da situação
actualmente.”
A
covid-19 tornou mais difícil a chegada de pessoal médico e outros voluntários e
teve impacto no “movimento interno das pessoas na ilha”, devido aos
confinamentos. “Há muitas restrições, que são legítimas, mas isso não significa
que não seja difícil para nós trabalhar com a covid-19 a rodear-nos. As coisas
estão a ficar melhores porque há menos casos, mas há sempre um impacto,
especialmente no estado nutricional das pessoas”.
Ricardo
sistematiza tudo o que está a acontecer e as suas causas. “As pessoas
que não têm nada costumam movimentar-se para as áreas urbanas ou para a
capital, para arranjarem outras formas de rendimento. Mas factores como a
covid-19 afectam a situação económica da ilha. As fronteiras internacionais
estão fechadas, as populações tiveram de arranjar outra forma de rendimentos
para além do turismo”, afirma. A quebra de rendimentos fez com que o preço da
comida também aumentasse. “Não se trata apenas de desnutrição. [Estas pessoas] são mais susceptíveis à morte
devido a outros problemas de saúde. Nalgumas áreas há malária e outras doenças respiratórias,
diarreias e parasitoses devido à má qualidade da água. Combinando a desnutrição
com uma destas patologias, agrava-se a vulnerabilidade de mulheres grávidas,
crianças e mães solteiras que têm a seu cargo muitas crianças”, acrescenta
ainda.
A fome
obrigou a alterações na dieta. Aos frutos dos cactos que Shelley Thakral
descreveu, Ricardo Fernandez junta coisas como “gafanhotos,
batata-doce, alguns tubérculos da família da batata”, afirma. “Estes elementos estão nas suas dietas, mas
não são dietas muito diversas. Comem o que conseguem encontrar.” Faltam
“alimentos nutricionalmente bons para as crianças” É o mesmo que relata Miguel
Martins, interno de pediatria, que foi voluntário da AMI em Madagáscar durante
três meses no fim de 2019. Foi ainda antes da covid-19 se instalar em todo o
mundo, mas a fome já se fazia sentir: “O que acontece é a falta de acesso a
alimentos que sejam nutricionalmente bons para as crianças durante o crescimento”.
Esteve em Ampefy, no centro do país, onde se vive uma realidade diferente da do
sul. Conta que nos meios rurais dessa região comem-se essencialmente
“vegetais e tubérculos, não há muita proteína”.
Uma das suas tarefas era acompanhar as
crianças destas comunidades, quer num centro de saúde, apoiando os profissionais
de saúde locais e dando formação, quer numa clínica móvel, uma vez por semana.
Em paralelo, participava noutras actividades com as comunidades para dar
formação aos pais acerca de nutrição.
“Era
uma espécie de festa quando íamos lá”, recorda. “A formação alimentar era pôr
toda a gente a cozinhar e depois comer tudo em comunidade, em roda.” “Uma das
coisas que me disseram enquanto lá estive é que, apesar de se cultivarem
coisas, as mais frescas são vendidas e ficam com os materiais menos bons”,
lembra. “São esses materiais que usam na própria alimentação”, o que tem
implicações no aparecimento de doenças ao nível gastrointestinal. No
geral, estas crianças crescem “com maior dificuldade na luta contra infecções
que de outra forma podiam ser facilmente prevenidas” — a falta de variedade
faz com que lhes faltem vitaminas e minerais, para além da proteína. Miguel
Martins compara a situação à que viveu em São Tomé e Príncipe e
Angola, onde também esteve. Na primeira,
realça o “contexto diferente” pela variedade de frutas e vegetais que se
encontra no arquipélago. Há casos de desnutrição, “especialmente nas populações
mais longínquas”, mas não se morre de fome porque há sempre algo para comer. “O
problema são as proporções”.
Ao nível hospitalar, havia crianças que ficavam internadas e que tinham de ser
alimentadas com fórmulas à base de leite que “não são usados nos países ditos
desenvolvidos”. “Uma pessoa pode ser treinada em pediatria e não conhecer estes
tipos de leite se nunca tiver tido experiência neste contexto”, assinala. Angola foi, nalguns aspectos, mais parecida com o que
encontrou em Madagáscar: “Era tudo mais árido, havia mais pobreza e fome”, lembra. tp.ocilbup@aciahc.seni
TÓPICOS MUNDO FOME
ALIMENTAÇÃO ÁFRICA SAÚDE CRIANÇAS NAÇÕES UNIDAS
COMENTÁRIOS:
Lucas Galuxo INICIANTE Em 1960, Madagáscar tinha 5 milhões de
habitantes. Agora tem 27 milhões. Os recursos não são infinitos. Liliana
Coutinho da Silva INICIANTE A seca e a
fome surgem neste texto como problemas derivados de falta de chuva, sem dar
atenção ao facto de as alterações climáticas provirem do comportamento humano
na sua relação com o planeta. Estes são só os grandes, e por isso noticiáveis,
resultados de desastres que têm vindo a acontecer lentamente. Para que não nos
fiquemos só pelo medo do que já está a acontecer no outro lado do mundo, e
tomando consciência do que acontece também à nossa volta, seria bom um
jornalismo que investigue as causas da seca deste lugar. Isso permitiria
perceber como é que anos de cultivos intensivos (aqui, sisal e algodão para
exportação), uma história de destruição de plantas autóctones que data do
período colonial e a extracção de minério (Rio Tinto – Port Dauphin) contribuem
para a situação actual. Luis
Ribeiro EXPERIENTE: Bolas, o colonialismo deixou de existir há
anos...todos os países africanos se libertaram desses
manhosos....ups...passados 30 40 anos está pior....agora a culpa é das
alterações climáticas....mandem uma estátua abaixo...que chove zav60.911576 EXPERIENTE Os “alertas” da ONU fazem-me lembrar as habituais
tomadas de posição sociais das diferentes igrejas cristãs: insistem elas que,
um mínimo de empenho solidário ocidental, ie, um euro/dólar “branco” até
serviria para garantir a paradisíaca ordem mundial saída da derrota do
fascismo-imperialismo: Madagáscar continuaria a ser Madagáscar e se «é o
primeiro país onde se passa fome devido às alterações climáticas» isso é 1.
culpa deles e, 2 um problema deles: que escolham melhor os seus líderes (tenho
a certeza de que haverá políticos “menos escurinhos” do que o actual PM e
depois, com apenas 3% de islâmicos entre eles, nem essa desculpa podem evocar.)
Sendo maioritariamente protestantes deveriam saber que deus escreve por linhas
tortas: o seu actual sacrifício será recompensado na eternidade! mgmacedo48.909164
EXPERIENTE Muito antes de a
Europa ser assolada, a sério, pelas alterações climáticas, sê-lo-á pelas
consequências desses fenómenos dramáticos noutras regiões. As migrações maciças
de um número incalculável de fugitivos farão parecer os actuais problemas com
refugiados no Mediterrâneo uma pequena contrariedade. A que não se tem sabido
dar resposta. É inevitável. Pergunto-me se a Humanidade conseguirá sobreviver
mais um século em condições aceitáveis, e estou pessimista. Anjo Caído MODERADOR Podemos enviar toda a ajuda humanitária do
mundo que isso não resolve o problema, só o suspende. Como é possível
sobreviver com tanta pobreza? Tanta miséria? Tanta falta de meios? E tantos
filhos? É preciso pensar em soluções mais duradouras, além da ajuda humanitária
(fundamental, num primeiro momento!) porque as crianças de hoje de Madagáscar
merecem poder crescer sem fome, mas as crianças que estão para vir também. Manuel
F INICIANTE A população
aumentou de 6 para 30 milhões em 70 anos, mas o problema da fome é o
aquecimento global... Enquanto não percebermos todos que é necessário
planeamento familiar, vamos ter um problema grave para resolver. Pedro de Souza EXPERIENTE A
herança do colonialismo está à vista. O que foi feito para que depois da
partida dos impérios coloniais uma sociedade equilibrada nascesse? Àqueles que
ainda apontam o colonialismo como a solução eu só posso dizer: esperem: o
colonialismo chegará ao nosso país. A desgraça da África e da América Latina é
o nosso futuro. Fernando Toul.886923 EXPERIENTE: A China e todos
os Países do extremo Oriente foram colonizados antes que a divisão de África na
Conferência de Berlim de 1884-5, e acederam à Independência na mesma década que
os Países africanos, o desenvolvimento de uns e de outros é abismal. Os
africanos têm que voltar a acreditar no mundo multipolar e na capacidade de
desenvolvimento de África como um todo. Análise do porquê se necessita. SE
EXPERIENTE A Europa tem em África uma oportunidade
de ajudar quem mais precisa, de dar substância aos seus valores, e de se ajudar
a si própria a crescer por dar essa ajuda. Seria bom que aproveitasse essa
oportunidade. Bom para todos. MPS
EXPERIENTE Ajudar resolve momentaneamente o
problema, mas isto não é uma questão só de ajuda, mas sim de tomar uma atitude
firme perante um problema grave, as alterações climáticas. Quando assolar a Europa
quem nos ajuda finas EXPERIENTE A ajuda que África precisa é politicamente incorrecta.
África não precisa de comida ou medicamentos. Comida e medicamentos apenas
criam vítimas, servem para alimentar pessoas que ou vão morrer às mãos de quem
mata ou vão matar. Tem sido assim desde as descolonizações. A ajuda
internacional apenas serviu para prolongar o sofrimento atroz daqueles povos. O
que África precisa é de um exército de soldados que limpe os maus e um exército
de professores que ensine as populações a gerirem-se a elas próprias. Tiago
O. Vasconcelos INICIANTE: Antes eram o colonialismo e o
"imperialismo" europeus o problema. Assim que os africanos
alcançassem a autodeterminação e se libertassem do jugo colonial amanhãs
melhores cantariam. O resultado está à vista! 03.07.2021
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