terça-feira, 20 de julho de 2021

“Papéis pintados com tinta?”

 

Uma “brincadeira” de mau gosto, que exprime, naturalmente, um ponto de vista não pessoal, uma “boutade” favorecedora de mândria que um povo mais escrupuloso não acharia aceitável nem num génio literário, como foi Pessoa, mas com que escrupulosamente convivemos e seguimos, substituindo, hoje, os livros por tablets propícias a um convívio dum modo geral piegas e indiscreto, despertador de curiosidades nem sempre sadias, e originador de perdas de tempo irreparáveis para o hábito necessário de ler. Por isso, ficamos felizes quando encontramos quem se debruce sobre livros e difunda esclarecimentos orientadores da sua leitura. Como é o caso dos “Livros para férias”, de João Carlos Espada, ainda que centrados nos gostos pessoais dos seus autores – no caso presente, sobre as temáticas políticas e sociais, que estão na berra, e ajudam a melhor compreendermos o tempo presente, a partir dos proponentes antigos dessas ideologias que revolucionaram o mundo.

Livros para férias (I) /premium

Sobre alguns livros que sugerem a associação entre democracia liberal, boas maneiras  e o tão odiado — à esquerda e à direita — capitalismo.

JOÃO CARLOS ESPADA                 OBSERVADOR, 19 jul 2021

Retomando a clássica tradição de sugerir leituras para férias nas duas últimas crónicas de Julho (antes do intervalo de Agosto), começo hoje com livros em inglês — para na próxima segunda-feira sugerir algumas obras em português.

A minha primeira sugestão vai para um livro de certa forma divertido, ainda que de grande rigor académico. Chama-se Foretelling the End of Capitalism: Intelectual Misadventures since Karl Marx, de Francesco Boldizzoni (Harvard University Press, 2020). É divertido porque recorda os inúmeros autores que previram ‘cientificamente’ o fim do capitalismo — a começar pelo patético ‘profetismo oracular’ (expressão de Karl Popper) do muito hegeliano Karl Marx. Mas é simultaneamente muito eloquente, porque recorda que a hostilidade contra o chamado ‘capitalismo’ tem profundas raízes iliberais — numa certa esquerda, seguramente, mas também numa certa direita. Não foi puramente por acaso que comunismo, fascismo e corporativismo se encontraram na Europa continental nos anos 1920-40 numa guerra comum contra as democracias parlamentares e as economias de mercado — a que todos chamavam com ódio “oligarquias capitalistas”. Isto nunca aconteceu, receio ter de recordar, entre os povos de língua inglesa — que sempre associaram ‘capitalismo’ com democracia parlamentar pluralista e que nunca tiveram partidos comunistas e/ou fascistas com expressão parlamentar.

A minha segunda sugestão vai para “Cynical Theories: How Activist Scholarship Made Everything about Race, Gender, and Identitiy — and Why This Harms Everybody, por Helen Pluckrose e James Lindsay ( Pitchstone, 2020). Trata-se de imponente diagnóstico das origens intelectuais da actual ideologia “woke” — e da suas muito antigas raízes na ancestral hostilidade iliberal (sobretudo de esquerda, mas também de alguma direita) contra as sociedades livres, a que eles também chamavam, e continuam a chamar, ‘capitalistas’.

Esta mesma ancestral hostilidade contra o Ocidente liberal é o tema de The Dragons and the Snakes: How the Rest Learned to Fight the West, de David Kilcullen (Hurst, 2020). O autor é um académico (da Universidade de New South Wales, em Canberra, Australia) e foi também conselheiro de “counterinsurgency” (além de um dos ‘100 Top Gobal Thinkers’ da revista Foreign Policy em 2009). Este livro tem a vantagem de nos alertar para a séria convergência anti-ocidental (não necessariamente, mas também não impossivelmentre, centralmente manipulada) do comunismo chinês, do fundamentalismo islâmico, do nacionalismo russo bem como do ódio anti-ocidental da “cancel culture” woke entre nós. Curiosamente, todos são também ‘anti-capitalistas’.

Finalmente, dois livros fundamentais sobre este tão globalmente odiado ‘capitalismo ocidental’. Começo por Commerce and Manners in Edmund Burke’s Political Economy de Gregory M. Collins (Cambridge, 2020). Trata-se de um estudo eloquente sobre Burke e sobre aquilo que poderíamos designar por “terceira viado conservadorismo liberal de língua inglesa: a favor das virtudes morais e simultaneamente a favor do mercado livre e da liberdade espontânea da sociedade civil. Por outras palavras, contra a infeliz dicotomia da revolução francesa entre dirigismo ‘iluminado’ estatal e ordem espontânea da sociedade viril.

Nesta matéria — de uma terceira via conservadora-liberal-capitalista-trabalhista — a minha escolha maior vai para o livro (que já aqui referi) da francesa Catherine Marshall: Political Deference in a Democratic Age: British Politics and the Constitution from the Eighteenth Century to Brexit (Palgrave/Macmillan, 2021). Trata-se de um distinto estudo académico sobre o mistério dos povos de língua inglesa — como conseguiram fazer todas as revoluções da era moderna, sem recurso à Revolução, (para recordar a famosa frase de Elie Halévy, tão preferida por Gertrude Himmelfarb). A conjectura de Catherine não é muito diferente da de Edmund Burke: respeito pelo Parlamento e por boas maneiras — que são espontaneamente geradas por economias de mercado e por sentido de honra e dever, inspirado na tradição moral europeia e ocidental, enraizada no diálogo pluralista entre Atenas, Roma e Jerusalém.

COMENTÁRIOS: Miguel Eanes: Deveria ser de leitura obrigatória, nas férias, o Código da Estrada. Pois todos os anos é sempre a mesma tragédia nas estradas portuguesas.           Paulo Silva: Caro colunista, a primeira sugestão pareceu-me deveras interessante. Saber falar de coisas sérias com humor produz do tipo de leituras das mais gratificantes. Tirarei nota. Pelo que descreve é um testemunho da natureza obstinada da intelectualidade à procura da Revolução mundial, quais alquimistas à procura da pedra filosofal que só produziam estrume em vez de ouro. Foi essa obstinação que fez o barbudo no final da sua vida encetar novas linhas de investigação, que mais tarde iriam culminar em correntes do marxismo cultural, ou ocidental. Este foi a alternativa estratégica ao marxismo-leninismo a Ocidente, após o falhanço da exportação do Outubro para o sucesso da Revolução mundial. A sua segunda sugestão parece já ter uma edição portuguesa. Pelo titulo a terceira também me parece ser interessante. Quanto às demais, a seu tempo, mas pelo chavão comum a todas fica a pergunta no ar: Mas que raio é o ‘capitalismo’?...               Tomé Carmo Pedrouço > Paulo Silva: !!Era isto mesmo que eu ia perguntar!! Desejar escrever tão eruditamente sobre economia, liberalismo, e depois usar estes chavões ...Talvez seja melhor dirigir-me a uma feira e perguntar a alguém o que se entende por 'capitalismo' - dava uma boa série da BBC, porque produção nacional não há...              Paulo Silva > Tomé Carmo Pedrouço: Caro/a comentador/a, como é óbvio esta era uma pergunta de retórica, e uma provocação. Embora não me ache nenhum expert, o capitalismo, em marxês, é um modo de produção onde as relações [sociais] de produção dominantes consistem no salariato. Isto é, entre patrões e empregados. Mais esmiuçadamente, uma entidade empregadora contrata um trabalhador e em troca da aplicação da sua força de trabalho num processo produtivo paga-lhe um salário acordado. Até aqui, nada de especial. O problema é que, segundo o barbudo e os seus prosélitos, neste contrato o empregado aceita que a mais-valia criada pelo trabalho passe para as mãos de quem o contratou, (o patrão, o detentor do capital, o capitalista), em forma de lucros resultantes da venda das mercadorias que produziu, ou dos serviços prestados. Para o trabalhador o salário, (ou trabalho pago), para o patrão os lucros, (ou trabalho não pago). É esta distribuição de renda que os marxistas acham injusta, uma vez que, como foi dito, quem cria a mais-valia é o trabalho/r, acabando desta alienado. Daí o célebre cliché, “a exploração do homem pelo homem.” Resumindo e concluindo, o 'capitalismo' é um exónimo crítico; uma invenção marxista ou anti-capitalista.           João Alves > Paulo Silva: Ah! Mas, pelo que li até agora, com uma péssima tradução. Logo nas primeiras páginas, o termo ‘extrema-esquerda’ é traduzido por ‘extrema-direita’. Por lapso ou intencionalmente? Sugiro a leitura, para uma melhor compreensão da ideologia actual da extrema-esquerda, com excepção da do PCP, de Por um populismo de esquerda, de Chantal Mouffe, editado pela Gradiva.            Tomé Carmo Pedrouço > Paulo Silva: Grato pela resposta. A definição é marxista, e embora seja de superior abrangência intelectual, como tudo em Marx, e Engels, não é definitiva. François Perroux: «capitalismo é uma palavra de combate utilizada pela escola histórica alemã; designava, sem intenção favorável ou hostil, um período económico e um sistema de produção e de trocas, utilizada por Marx e marxistas no campo das lutas sociais, sobrecarregando-a de explosivos de que nunca mais se livrou». Lembro-me até do 'mercantilismo' francês que se estudava no Liceu. O problema é que Marx estudou mais e muito, mas pouco revelou das conclusões (entretanto expostas), frustrado pelas falsas promessas sociais prussianas e mergulhado a fundo na remissão pelo combate que ele bem conhecia. Ou seja, o 'capitalismo' é um termo impróprio para o passado que o fez surgir, para todas as condições que Marx classificou e para a realidade alemã oposta às condições dessa importação económica.          Paulo Silva > Tomé Carmo Pedrouço: Meu caro, o texto que cita é algo ambíguo. Segundo me é dado saber Karl Marx nunca usou nas suas obras o substantivo ‘kapitalismus’ em alemão, ou ‘capitalism’ em inglês, (muito menos em português, como é óbvio). O primeiro registo conhecido será de um seu apóstolo, cujo nome agora não recordo, próximo da viragem do século, (c.1900). Marx não revelou muita coisa porque não procurava a verdade. A sua grande procura consistia na fundamentação de crenças através da retórica e da sofística, travestidas de ciência. O que não validasse aquilo em que acreditava deitava fora… escondia, ou adulterava. Quando uma linha de investigação se provava infrutífera na senda que já tinha predeterminado, abandonava-a e recorria a outras que o pudessem levar mais além. Como por exemplo a Antropologia já no fim da vida. Dai que nunca tenha conseguido terminar a sua obra máxima de crítica à Economia Política, o ‘Das Kapital. O termo ‘capitalismo’ é impróprio por desonesto e falaz, fruto do infantilismo e do capricho. No entanto o seu manancial retórico e investimento intelectual foi de tal ordem que ainda é capaz de seduzir meio mundo pronto a acreditar.          Tomé Carmo Pedrouço > Paulo Silva: A mim agradou-me. Marx fala de 'sistema capitalista', 'acumulação de capital', 'pré-capitalist economic formations' (na tradução de E. Hobsbawm), etc... O que desejava referir é a disputa entre as duas formas de economia de mercado, a norte-americana e a alemã. As duas resultam de origens culturais diferentes, e, ironia do destino, Marx é originário da mais antiga cidade alemã, fundada por Roma, cujo desenvolvimento se baseou em regras do Estado, como feiras, impostos, taxas e portagens.           Paulo Silva > João Alves: Um dos problemas das traduções feitas à pressa, meu caro. Já conhecia o título em inglês e foi com algum espanto que vi a sua tradução passado pouco tempo nos escaparates das livrarias. A edição original é de Agosto de 2020, a tradução de Abril de 2021, (será pelo mediatismo do tema). De Chantal Mouffe, embora já tenha ouvido falar, nada li. Mas tenho uma compreensão da ideologia actual da extrema-esquerda, a que chamo de ‘marxismo cultural’, (embora o termo cause alguma polémica), porque antes de saber o que é, sei como é que surgiu e o porquê. Um pouco de História nunca fez mal a ninguém. Em especial a história das causas, com a Etiologia. Ajuda bastante à compreensão e à visão.

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