Uma “brincadeira” de mau gosto, que
exprime, naturalmente, um ponto de vista não pessoal, uma “boutade” favorecedora de mândria que um povo mais escrupuloso não
acharia aceitável nem num génio literário, como foi Pessoa, mas com que escrupulosamente
convivemos e seguimos, substituindo, hoje, os livros por tablets propícias a um
convívio dum modo geral piegas e indiscreto, despertador de curiosidades nem
sempre sadias, e originador de perdas de tempo irreparáveis para o hábito necessário
de ler. Por isso, ficamos felizes quando encontramos quem se debruce sobre
livros e difunda esclarecimentos orientadores da sua leitura. Como é o caso dos
“Livros para férias”, de João Carlos Espada, ainda que
centrados nos gostos pessoais dos seus autores – no caso presente, sobre as
temáticas políticas e sociais, que estão na berra, e ajudam a melhor
compreendermos o tempo presente, a partir dos proponentes antigos dessas
ideologias que revolucionaram o mundo.
Livros para férias (I) /premium
Sobre alguns livros que sugerem a associação entre
democracia liberal, boas maneiras e o tão odiado — à esquerda e à direita
— capitalismo.
JOÃO CARLOS ESPADA OBSERVADOR, 19 jul 2021
Retomando
a clássica tradição de sugerir leituras para férias nas duas últimas crónicas
de Julho (antes do intervalo de Agosto), começo hoje com livros em inglês —
para na próxima segunda-feira sugerir algumas obras em português.
A
minha primeira sugestão vai para um livro de certa forma divertido, ainda que
de grande rigor académico. Chama-se Foretelling
the End of Capitalism: Intelectual Misadventures since Karl Marx, de Francesco
Boldizzoni (Harvard
University Press, 2020). É divertido
porque recorda os inúmeros autores que previram ‘cientificamente’
o fim do capitalismo — a começar
pelo patético ‘profetismo oracular’ (expressão de Karl Popper) do muito
hegeliano Karl Marx. Mas é simultaneamente muito eloquente, porque recorda
que a hostilidade contra o chamado ‘capitalismo’ tem profundas raízes iliberais
— numa certa esquerda, seguramente, mas também numa certa direita. Não foi puramente por acaso que comunismo, fascismo e corporativismo se encontraram na Europa
continental nos anos 1920-40 numa guerra comum contra as democracias
parlamentares e as economias de mercado — a que todos chamavam com ódio
“oligarquias capitalistas”. Isto nunca
aconteceu, receio ter de recordar, entre os povos de língua inglesa — que
sempre associaram ‘capitalismo’ com democracia parlamentar pluralista e que
nunca tiveram partidos comunistas e/ou fascistas com expressão parlamentar.
A minha segunda sugestão vai para “Cynical
Theories: How Activist Scholarship Made Everything about Race, Gender, and Identitiy
— and Why This Harms Everybody, por Helen Pluckrose e James Lindsay (
Pitchstone, 2020). Trata-se de imponente
diagnóstico das origens intelectuais da actual ideologia “woke” — e da suas muito antigas raízes na ancestral hostilidade
iliberal (sobretudo de esquerda, mas também de alguma direita) contra as
sociedades livres, a que eles também chamavam, e continuam a chamar,
‘capitalistas’.
Esta
mesma ancestral hostilidade contra o Ocidente liberal é o tema de The Dragons and the Snakes: How the
Rest Learned to Fight the West, de David Kilcullen (Hurst, 2020). O autor é
um académico (da Universidade de New South Wales, em Canberra, Australia) e foi
também conselheiro de “counterinsurgency” (além de um dos ‘100 Top Gobal
Thinkers’ da revista Foreign Policy em 2009). Este livro tem a vantagem de
nos alertar para a séria convergência anti-ocidental (não
necessariamente, mas também não impossivelmentre, centralmente manipulada) do
comunismo chinês, do fundamentalismo islâmico, do nacionalismo russo — bem como do ódio anti-ocidental da “cancel
culture” woke entre nós. Curiosamente,
todos são também ‘anti-capitalistas’.
Finalmente,
dois livros fundamentais sobre este tão globalmente odiado ‘capitalismo
ocidental’. Começo por Commerce and Manners in Edmund Burke’s Political
Economy de Gregory M. Collins (Cambridge, 2020). Trata-se de um estudo eloquente sobre Burke e sobre
aquilo que poderíamos designar por “terceira
via” do conservadorismo liberal de língua inglesa: a favor
das virtudes morais e simultaneamente a favor do mercado livre e da liberdade
espontânea da sociedade civil.
Por outras palavras, contra a infeliz dicotomia da revolução francesa entre
dirigismo ‘iluminado’ estatal e ordem espontânea da sociedade viril.
Nesta
matéria — de uma terceira via
conservadora-liberal-capitalista-trabalhista —
a minha escolha maior vai para o livro (que já aqui referi) da francesa Catherine
Marshall: Political Deference in a Democratic Age: British Politics and
the Constitution from the Eighteenth Century to Brexit (Palgrave/Macmillan, 2021). Trata-se
de um distinto estudo académico sobre o mistério dos povos de língua inglesa —
como conseguiram fazer todas as revoluções da era moderna, sem recurso à
Revolução, (para
recordar a famosa frase de Elie Halévy, tão preferida por Gertrude Himmelfarb).
A conjectura de Catherine não é muito diferente da de
Edmund Burke: respeito
pelo Parlamento e por boas maneiras — que são espontaneamente geradas por
economias de mercado e por sentido de honra e dever, inspirado na tradição
moral europeia e ocidental, enraizada no diálogo pluralista entre Atenas, Roma
e Jerusalém.
COMENTÁRIOS: Miguel
Eanes: Deveria ser de
leitura obrigatória, nas férias, o Código da Estrada. Pois todos os anos é sempre a mesma tragédia nas estradas portuguesas. Paulo Silva: Caro colunista, a primeira
sugestão pareceu-me deveras interessante. Saber falar de coisas sérias com
humor produz do tipo de leituras das mais gratificantes. Tirarei nota. Pelo que
descreve é um testemunho da natureza obstinada da intelectualidade à procura da
Revolução mundial, quais alquimistas à procura da pedra filosofal que só
produziam estrume em vez de ouro. Foi essa obstinação que fez o barbudo no
final da sua vida encetar novas linhas de investigação, que mais tarde iriam
culminar em correntes do marxismo cultural, ou ocidental. Este foi a
alternativa estratégica ao marxismo-leninismo a Ocidente, após o falhanço da
exportação do Outubro para o sucesso da Revolução mundial. A sua segunda sugestão parece
já ter uma edição portuguesa. Pelo titulo a terceira também me parece ser
interessante. Quanto às demais, a seu tempo, mas pelo chavão comum a todas fica
a pergunta no ar: Mas que raio é o ‘capitalismo’?... Tomé Carmo Pedrouço > Paulo Silva: !!Era isto mesmo que eu ia perguntar!! Desejar escrever tão
eruditamente sobre economia, liberalismo, e depois usar estes chavões ...Talvez
seja melhor dirigir-me a uma feira e perguntar a alguém o que se entende por
'capitalismo' - dava uma boa série da BBC, porque produção nacional não há... Paulo Silva > Tomé Carmo Pedrouço: Caro/a comentador/a, como é
óbvio esta era uma pergunta de retórica, e uma provocação. Embora não me ache
nenhum expert, o capitalismo,
em marxês, é um modo de produção onde as relações [sociais] de produção
dominantes consistem no salariato. Isto é, entre patrões e empregados. Mais
esmiuçadamente, uma entidade empregadora contrata um trabalhador e em troca da
aplicação da sua força de trabalho num processo produtivo paga-lhe um salário
acordado. Até aqui, nada de especial. O problema é que, segundo o barbudo e os
seus prosélitos, neste contrato o empregado aceita que a mais-valia criada pelo
trabalho passe para as mãos de quem o contratou, (o patrão, o detentor do
capital, o capitalista), em forma de lucros resultantes da venda das
mercadorias que produziu, ou dos serviços prestados. Para o trabalhador o
salário, (ou trabalho pago), para o patrão os lucros, (ou trabalho não pago). É
esta distribuição de renda que os marxistas acham injusta, uma vez que, como
foi dito, quem cria a mais-valia é o trabalho/r, acabando desta alienado. Daí
o célebre cliché, “a exploração do homem pelo homem.” Resumindo e concluindo, o
'capitalismo' é um exónimo crítico; uma invenção marxista ou anti-capitalista. João Alves > Paulo Silva: Ah! Mas, pelo que li até agora, com uma péssima
tradução. Logo nas primeiras páginas, o termo ‘extrema-esquerda’ é traduzido
por ‘extrema-direita’. Por lapso ou intencionalmente? Sugiro a leitura, para uma
melhor compreensão da ideologia actual da extrema-esquerda, com excepção da do
PCP, de Por
um populismo de esquerda, de Chantal
Mouffe, editado pela Gradiva. Tomé Carmo Pedrouço > Paulo Silva: Grato pela resposta. A definição é marxista, e embora
seja de superior abrangência intelectual, como tudo em Marx, e Engels, não é
definitiva. François Perroux: «capitalismo é uma palavra de combate utilizada pela escola histórica alemã;
designava, sem intenção favorável ou hostil, um período económico e um sistema
de produção e de trocas, utilizada por Marx e marxistas no campo das lutas
sociais, sobrecarregando-a de explosivos de que nunca mais se livrou».
Lembro-me até do 'mercantilismo'
francês que se estudava
no Liceu. O problema é que Marx estudou mais e muito, mas pouco revelou das
conclusões (entretanto expostas), frustrado pelas falsas promessas sociais
prussianas e mergulhado a fundo na remissão pelo combate que ele bem conhecia.
Ou seja, o 'capitalismo' é um termo impróprio para o passado que o fez surgir,
para todas as condições que Marx classificou e para a realidade alemã oposta às
condições dessa importação económica. Paulo Silva > Tomé Carmo Pedrouço: Meu caro, o texto que cita é
algo ambíguo. Segundo me é dado saber Karl Marx nunca usou nas suas obras o
substantivo ‘kapitalismus’ em
alemão, ou ‘capitalism’ em
inglês, (muito menos em português, como é óbvio). O primeiro registo conhecido
será de um seu apóstolo, cujo nome agora não recordo, próximo da viragem do século,
(c.1900). Marx não revelou muita coisa porque não procurava a verdade. A sua
grande procura consistia na fundamentação de crenças através da retórica e da
sofística, travestidas de ciência. O que não validasse aquilo em que
acreditava deitava fora… escondia, ou adulterava. Quando uma linha de
investigação se provava infrutífera na senda que já tinha predeterminado,
abandonava-a e recorria a outras que o pudessem levar mais além. Como por
exemplo a Antropologia já no fim da vida. Dai que nunca tenha conseguido
terminar a sua obra máxima de crítica à Economia Política, o ‘Das Kapital’. O termo ‘capitalismo’ é impróprio por desonesto e falaz, fruto do
infantilismo e do capricho. No entanto o seu manancial retórico e investimento
intelectual foi de tal ordem que ainda é capaz de seduzir meio mundo pronto a
acreditar. Tomé Carmo
Pedrouço > Paulo Silva: A mim agradou-me. Marx fala de 'sistema capitalista', 'acumulação de
capital', 'pré-capitalist economic formations' (na tradução de E. Hobsbawm),
etc... O que desejava referir é a disputa entre as duas formas de economia de
mercado, a norte-americana e a alemã. As duas resultam de origens culturais
diferentes, e, ironia do destino, Marx é originário da mais antiga cidade
alemã, fundada por Roma, cujo desenvolvimento se baseou em regras do Estado,
como feiras, impostos, taxas e portagens. Paulo Silva > João Alves: Um dos problemas das traduções feitas à pressa, meu
caro. Já conhecia o título em inglês e foi com algum espanto que vi a sua
tradução passado pouco tempo nos escaparates das livrarias. A edição original é
de Agosto de 2020, a tradução de Abril de 2021, (será pelo mediatismo do tema).
De Chantal Mouffe, embora já tenha ouvido falar, nada li. Mas tenho uma
compreensão da ideologia actual da extrema-esquerda, a que chamo de ‘marxismo
cultural’, (embora o termo cause alguma polémica), porque antes de saber o que
é, sei como é que surgiu e o porquê. Um pouco de História nunca fez mal a
ninguém. Em especial a história das causas, com a Etiologia. Ajuda bastante à
compreensão e à visão.
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