Tudo isso tem, afinal, a ver com
Educação, que, cumprindo regras, se sobrepõe aos instintos primitivos do fundo
animalesco humano. Quanto a nós, hélas!
"seremos sempre os da mansarda",
nessa questão educativa, os do palanque vitorioso, na dos instintos...
Deferência e chá das 5 /premium
Por que motivo fascismo e comunismo nunca tiveram
credibilidade nos países de língua inglesa? Um livro recente sugere a hipótese
da “deferência” para com regras gerais de boa conduta e de cortesia.
JOÃO CARLOS ESPADA
OBSERVADOR, 12 jul
2021, 00:11
1.Vozes
amigas dizem-me que continua entre nós, embora talvez em tom menos tribal, um
intransigente debate sobre se ainda vivemos ou não em democracia. Uns
acusam as chamadas ‘esquerdas’ e o governo de estarem a sufocar a democracia.
Outros acusam as chamadas ‘direitas’ de serem intrinsecamente contra a
democracia.
Receio
ter de dizer que todo esse ‘debate’ exaltado sobre o alegado fim da democracia
me parece difícil de entender.
Julgava que tivéssemos aprendido que a democracia se distingue precisamente
pelo debate tranquilo entre propostas e pontos de vista diferentes. Umas
vezes ganham umas as eleições, outras vezes ganham outras. Mas o livre debate
entre elas pode continuar. O que distingue as ditaduras é a impossibilidade de
debate e de concorrência entre propostas rivais.
2. Depois
do 25 de Abril de 1974 e até ao 25 de Novembro de 1975, falava-se entre nós de
‘fascismo ou revolução’.
Por outras palavras, a prosaica possibilidade de uma pacífica (e ‘boring’
como dizia elogiosamente Dahrendorf) democracia parlamentar era excluída. Eu julgava que depois do 25 de Novembro — com Mário
Soares, Ramalho Eanes, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Cavaco Silva, entre
outros — tivéssemos encerrado essas ‘dicotomias infelizes’ (Dahrendorf de novo)
próprias do terceiro-mundo.
Vozes
amigas dizem-me que afinal não encerrámos. Volta a falar-se abundantemente da ameaça
‘das direitas’ e da ameaça ‘das esquerdas’.
A propósito disto e daquilo, é dito que ‘é preciso outro 25 de Abril’. A
propósito disto e daquilo é recordado o longo conflito entre comunismo e
nacional-socialismo que dominou a Europa continental nos anos 1920-1940: uns
para justificar o fascismo por causa da ameaça comunista; outros para
justificar o comunismo por causa da ameaça fascista.
3. Esse
conflito entre comunismo e nacional-socialismo terá deixado marcas profundas —
sobretudo em culturas políticas que não querem, ou simplesmente não sabem como,
conhecer outras tradições. Talvez seja
oportuno recordar aos nossos exaltados autores que em Inglaterra
(como se costumava dizer) e na América, para não falar no Canadá, na Austrália
ou na Nova Zelândia, o comunismo e o fascismo nunca tiveram qualquer
credibilidade.
Em todos esses países, nenhum partido
fascista alguma vez conseguiu eleger um único deputado para um Parlamento
nacional. Nos
EUA, na Austrália e na Nova Zelândia, os partidos comunistas nunca elegeram um
único deputado nacional. No Canadá, terão eleito um (Fred Rose, mais tarde
acusado de espiar para a URSS). No Reino Unido, um total de cinco ‘socialistas
revolucionários’ foram eleitos para a Câmara dos Comuns: dois em 1922, um em
1935, dois em 1945. Durante todo esse período, o Parlamento britânico teve
sempre mais de 600 deputados.
Ainda
segundo a mesma fonte (Daniel Hannan, How We Invented Freedom & Why It
Matters, 2013), o partido
comunista britânico teve no máximo 60 mil inscritos; o francês atingiu 800 mil
e o italiano 1,7 milhões.
Por
outras palavras, em vez de insistirmos em limitar os nossos horizontes
intelectuais à triste dicotomia continental e ibérica entre autoritarismos
rivais, talvez fosse intelectualmente mais estimulante investigar
por que motivo essa dicotomia esteve ausente entre os povos de língua inglesa.
4. É
realmente um mistério e não creio que tenha sido inteiramente decifrado. Winston Churchill,
por exemplo, levou 25 anos (durante os quais 5 a liderar o Governo na II
Guerra) a escrever um livro em 4 volumes sobre a História dos Povos de Língua
Inglesa (finalmente publicados entre 1956 e 1958). Há aí sem dúvida inúmeros
contributos. Mas não creio que tenha decifrado o mistério — em boa verdade,
também não creio que tenha tentado.
Um
livro recente (Political Deference in a Democratic Age, Palgrave,
2021) de uma autora francesa — Catherine Marshall — propõe uma hipótese intrigante, ainda que não
totalmente inesperada. Diz ela que a “deferência” dos
britânicos para com regras gerais de boa conduta e
de cortesia — por contraste com a obediência de outras culturas a
ordens particulares de comando — foi
um dos factores cruciais da estabilidade da democracia parlamentar britânica
desde 1688.
Essa deferência por regras gerais de boa conduta e de cortesia (bem como
de pontualidade) teria
protegido os povos de língua inglesa das tendências sectárias que levam grupos
particulares de todo o tipo — famílias, grupos étnicos ou/e grupos de
interesses, partidos políticos, e outros — a acharem normal adoptar entre si
condutas que não aceitariam nos outros. (Por
exemplo, estacionar em segunda fila).
Por outras palavras, em vez da preferência tribal por interesses ou instintos de grupos particulares, haveria na cultura política de língua inglesa uma deferência
tranquila por instituições imparciais e por regras de “fair-play”. Alguns autores — como Adam Smith, Edmund Burke,
Alexis de Tocqueville, Karl Popper ou Gertrude Himmelfarb — também chamaram à
deferência de Catherine Marshall “gentlemanship”, ou civismo, ou, simplesmente, boa educação.
5. Não
sei se a tese de Catherine Marshall e de todos esses autores ainda será válida
hoje em dia. Seguramente, a virtude cívica da ‘deferência’ não foi ainda
partilhada com as claques inglesas de futebol… E os meninos “woke”, que
andam a demolir estátuas e a perseguir quem não subscreve os seus pontos de
vista, seguramente também não partilham as virtudes da ‘deferência’.
Mas o que mais me preocupa é que as
ancestrais regras do chá das 5 estejam a sofrer drásticas, quase
revolucionárias, alterações. A revista
“Spectator” de Londres acaba de dedicar uma intensa página ao tema (“Cake
expectations: Afternoon tea has gone OTT”, p. 28). E o tema é sem
dúvida da maior gravidade. Urge tomar medidas. Antes que seja tarde e a
democracia fique em perigo.
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