sábado, 10 de julho de 2021

Retratação


Ou mistificações sem consequências de maior. Mas uma forma malandra de adaptar um provérbio bastante explorado em todos os tempos na memória das gentes - e especialmente hoje, na realização política, vindo, pois, a talho de foice para breve alfinetada graciosa, no status.

E socorro-me da Internet, esperando que desta vez não engane:

«Por Dicionário inFormal (SP) em 26-02-2019»

Significado de Comeu gato por lebre:

«A expressão "comer gato por lebre" significa ser enganado achando que obteve algo de qualidade, mas na verdade é comum, falso ou de má qualidade.»

O Dr. Salles assim exemplifica, com humor sadio, a sua participação involuntária, destinada a assegurar-se uma maior tranquilidade – e religiosidade – nas suas travessias viageiras, imbuídas de evocações históricas, ou mesmo apenas lendárias, adepto de “O mito é nada que é tudo”.

E nós de saborearmos a história, com o esclarecimento mundano.

 

O GATO E A LEBRE

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 09.07.21

Nas viagens todas que já fiz de Cacilhas a Xangai passando pelo Cabo Horn e por Alotau no extremo leste da Papua Nova Guiné, estive em muitos lugares surpreendentes mas houve dois que me mereceram atenção especial e onde a mostarda me chegou ao nariz. Refiro-me ao Cabo Comorim, o extremo sul da Índia e ao Lorelei, no Reno.

A solenidade que a epifania desses locais me inspirava estava a ser grosseiramente prejudicada por ruidosos grupos de viajantes que desconheciam totalmente o que visitavam e assim foi que dei dois berros, provoquei o silêncio e expliquei tudo o que sabia. Em ambas as ocasiões choveram agradecimentos e pedidos de desculpas pelas algazarras anteriores.

No Cabo Comorim, para além da confluência do Mar de Omã com o Golfo de Bengala, chamei a atenção em inglês a um grupo que me pareceu sul-africano para a imponência da estátua ao Deus Aurobindo, figura de grande relevo no hinduísmo e, daí, aquele ser local importante de peregrinação – e os basbaques, atónitos, miravam o promontório enorme…; no Lorelei, com a música mais célebre do tema local a encher de nostalgia o barco do nosso cruzeiro, expliquei em castelhano ao grupo catalão que aquele é um local importante da mitologia germânica com a valquíria a dialogar com Wotan lá no alto do promontório e blá-blá-blá…, a música que estávamos a ouvir era de Schubert, a letra de Heinrich Heine e que Robert Schumann se despencara fatalmente daquele rochedo.

As ovações taparam a música e tudo passou com grande glória para a minha sabedoria.

Mas… não era bem assim. Melhor direi que quase nada era assim. Felizmente, não voltei a encontrar quem me confrontasse com tanta involuntária fantasia resultante de tão vasta falsa cultura.

Então, no Cabo Comorim só acertei na geografia e tudo o mais passa a ser muito mais profano pois a estátua enorme é de Tiruvalluvar, o filósofo tâmil, e o outro memorial é ao filósofo bengali Swami Vivekananda que nos finais do séc. XIX representou o hinduísmo em Chicago no Parlamento Mundial de Religiões. Quando uma parte das cinzas de Gandhi ali foi espalhada, já o local era de peregrinação hindu. Ainda não sei porquê mas voltarei aqui quando souber.

Quanto ao Lorelei, a mística do local resulta de o penhasco provocar no Reno uma curva em cotovelo cujos turbilhões provocaram muitas tragédias desde que o homem decidiu navegar ali. Mas o local tem imponência e espíritos mais românticos (Heinrich Heine, por exemplo) inventaram a história duma bela pastora que ali penteava os seus cabelos doirados e blá-blá-blá… E, vai daí, os alemães do solfejo entretiveram-se a compor lieder para a letra do Heine. Encontrei muitas dessas músicas no YouTube, a mais célebre é de um compositor cujo nome esqueci e não encontrei nenhuma de Schubert. Quanto a Schumann, se alguma vez ali foi, nada encontrei que registasse o passeio ao Lorelei. Encontrei, isso sim, que se atirou duma ponte sobre o Reno em Düsseldorf, que um barqueiro lhe deitou a mão e que dali foi para um hospício psiquiátrico nos arredores de Bonn onde morreu anos mais tarde.

 

E a minha pergunta é: - onde é que eu fui desencantar tanta falsa informação que involuntariamente impingi aos meus «colegas» turistas?

 

E se algum desses meus «colegas» foi estudar as lições, há-de concluir que anda por aí muita falsa informação turística.

Que esta correcção voluntária sirva para a remissão daqueles pecadilhos involuntários.

Recomendo, pois, que não nos fiemos no que nos contam enquanto passeamos pois anda por aí muito gato a fazer-se passar por lebre.

Contudo, se as minhas versões eram falsas, elas eram muito mais bonitas do que as insípidas verdadeiras - e fui eu que saquei aplausos, contei às pessoas o que elas queriam ouvir, fui demagogo, pareci político em campanha a sacar os votos dos inocentes.

Julho de 2021

Tags: viagens

COMENTÁRIOS

Anónimo 09.07.2021: Já encontrei nas minhas viagens , não turistas com tanta facilidade de adaptar a história real à imaginação sugerida pelo local, mas sim os chamados guias oficiais ou oficiosos do acolhimento local de turistas , que só dizem umas patetices, Os seus colegas turistas tiveram foi sorte!

Anónimo 11.07.2021: Dr. Henrique, o seu invejável génio de se exprimir, aliado à sua familiaridade com os cantos e recantos dos 5 continentes, é pura magia. Desnecessário dizer que fiquei encantado com a prosa e curioso de saber qual o segredo do feitiço que cativou os ouvintes. António Fonseca

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