Ou mistificações sem consequências de maior. Mas uma forma malandra de adaptar um provérbio bastante explorado em todos os tempos na memória das gentes - e especialmente hoje, na realização política, vindo, pois, a talho de foice para breve alfinetada graciosa, no status.
E socorro-me da Internet, esperando que desta vez não engane:
«Por Dicionário inFormal (SP) em 26-02-2019»
Significado
de Comeu gato por lebre:
«A expressão "comer gato por lebre" significa ser enganado achando que obteve algo de qualidade, mas na verdade é comum, falso ou de má qualidade.»
O Dr. Salles assim exemplifica,
com humor sadio, a sua participação involuntária, destinada a assegurar-se uma
maior tranquilidade – e religiosidade – nas suas travessias viageiras, imbuídas
de evocações históricas, ou mesmo apenas lendárias, adepto de “O mito é nada que é tudo”.
E nós de saborearmos a história, com o esclarecimento mundano.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.07.21
Nas viagens todas que já fiz de
Cacilhas a Xangai passando pelo Cabo Horn
e por Alotau no extremo leste da
Papua
Nova Guiné, estive em muitos
lugares surpreendentes mas houve dois que me mereceram atenção especial e onde
a mostarda me chegou ao nariz. Refiro-me ao Cabo
Comorim, o extremo sul da Índia e ao Lorelei, no Reno.
A solenidade que a epifania
desses locais me inspirava estava a ser grosseiramente prejudicada por ruidosos
grupos de viajantes que desconheciam totalmente o que visitavam e assim foi que
dei dois berros, provoquei o silêncio e expliquei tudo o que sabia. Em ambas as
ocasiões choveram agradecimentos e pedidos de desculpas pelas algazarras
anteriores.
No Cabo
Comorim, para além da confluência do Mar de Omã com o Golfo de
Bengala, chamei a atenção em inglês a um grupo que me pareceu sul-africano
para a imponência da estátua ao Deus
Aurobindo, figura de grande relevo no hinduísmo e, daí, aquele ser local
importante de peregrinação – e os basbaques, atónitos, miravam o
promontório enorme…; no Lorelei,
com a música mais célebre do tema local a encher de nostalgia o barco do nosso
cruzeiro, expliquei em castelhano ao grupo catalão que aquele é um local
importante da mitologia germânica com a valquíria a dialogar com Wotan lá no
alto do promontório e blá-blá-blá…, a música que estávamos a ouvir era de Schubert, a letra de Heinrich Heine e que Robert Schumann se despencara fatalmente
daquele rochedo.
As ovações taparam a música e
tudo passou com grande glória para a minha sabedoria.
Mas… não era bem assim.
Melhor direi que quase nada era assim. Felizmente, não voltei a encontrar quem
me confrontasse com tanta involuntária fantasia resultante de tão vasta falsa
cultura.
Então, no Cabo Comorim só acertei na geografia e tudo o mais passa a ser muito mais
profano pois a estátua
enorme é de Tiruvalluvar, o filósofo tâmil, e o outro memorial é ao filósofo bengali Swami Vivekananda que nos
finais do séc. XIX representou o hinduísmo em Chicago no Parlamento Mundial de
Religiões. Quando uma parte das cinzas de Gandhi ali foi espalhada, já
o local era de peregrinação hindu. Ainda não sei porquê mas voltarei
aqui quando souber.
Quanto ao Lorelei, a mística do local resulta de o
penhasco provocar no Reno uma curva em cotovelo cujos turbilhões provocaram
muitas tragédias desde que o homem decidiu navegar ali. Mas o local tem
imponência e espíritos mais românticos (Heinrich
Heine, por exemplo) inventaram a história duma bela pastora que ali penteava
os seus cabelos doirados e blá-blá-blá… E, vai daí, os alemães do
solfejo entretiveram-se a compor lieder para a letra do Heine. Encontrei muitas dessas músicas no YouTube, a mais célebre é de um
compositor cujo nome esqueci e não encontrei nenhuma de Schubert. Quanto
a Schumann, se alguma vez ali foi,
nada encontrei que registasse o passeio ao Lorelei. Encontrei, isso sim, que
se atirou duma ponte sobre o Reno em Düsseldorf, que um barqueiro lhe deitou a
mão e que dali foi para um hospício psiquiátrico nos arredores de Bonn
onde morreu anos mais tarde.
E a minha pergunta é: - onde
é que eu fui desencantar tanta falsa informação que involuntariamente impingi
aos meus «colegas» turistas?
E se algum desses meus «colegas» foi estudar as lições, há-de concluir
que anda por aí muita falsa informação turística.
Que esta correcção voluntária sirva para a remissão daqueles
pecadilhos involuntários.
Recomendo, pois, que não nos fiemos
no que nos contam enquanto passeamos pois anda por aí muito gato a fazer-se passar
por lebre.
Contudo, se as minhas versões
eram falsas, elas eram muito mais bonitas do que as insípidas verdadeiras - e fui
eu que saquei aplausos, contei às
pessoas o que elas queriam ouvir, fui
demagogo, pareci político em campanha a sacar os votos dos inocentes.
Julho de 2021
Tags: viagens
COMENTÁRIOS
Anónimo 09.07.2021: Já
encontrei nas minhas viagens , não turistas com tanta facilidade de adaptar a
história real à imaginação sugerida pelo local, mas sim os chamados guias
oficiais ou oficiosos do acolhimento local de turistas , que só dizem umas
patetices, Os seus colegas turistas tiveram foi sorte!
Anónimo 11.07.2021: Dr.
Henrique, o seu invejável génio de se exprimir, aliado à sua familiaridade com
os cantos e recantos dos 5 continentes, é pura magia. Desnecessário dizer que
fiquei encantado com a prosa e curioso de saber qual o segredo do feitiço que
cativou os ouvintes. António Fonseca
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