Conformemo-nos, pois, que manda quem
pode. Mas leiamos o retrato de Paulo
Tunhas e aceitemos a ideia nele passada de impunidade para com os lorpas ou
os arrogantes do poder que se pretende absoluto, e coremos de vergonha por tais
representantes da nossa quietação pasmada. Ou embrutecida.
Ferro e Cabrita, dois exemplos /premium
Portugal ainda é, vagamente, uma
sociedade aberta, mas que permitiu e permite que, no seu interior, resida, no
seu centro, uma sociedade fechada onde praticamente tudo é permitido.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 01 jul
2021
Lutero escreveu um dia que os homens
solitários têm pensamentos terríveis. Bom,
é verdade que os mais gregários dos humanos também podem ser dados à coisa e
que o solitário eremita taoista, na montanha que lhe serve de refúgio, pode ter
excelentes pensamentos, mas percebe-se o que Lutero diz. Há uma confusão
completa consigo mesmo que a solidão propicia e que conduz com facilidade à
impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, que é meio caminho andado
para a má indiferença (há uma indiferença que é, apesar de tudo, necessária
para a vida em sociedade, já que nos permite não nos metermos excessivamente na
vida dos outros) e para o
desprezo para com os seres humanos em geral.
Tenho
pensado na frase de Lutero por estes dias, por causa dos ditos e feitos de Ferro
Rodrigues e Eduardo
Cabrita, essas duas estrelas maiores que
ornam o firmamento do nosso mundo político, muito acima do comum cidadão que
nasce e morre nesta nossa pobre região sublunar. Claro que tenho pensado nela sob uma forma diferente
daquela que Lutero tinha em vista, até porque se trata, nestes casos, de uma
muito particular solidão, a solidão de quem vive isolado do mundo restante pela
longa vida no interior da bolha muito exclusiva do poder político. Mas, por
mais diferentes que sejam as situações, há algo nos resultados que é comum.
Dito por outras palavras. Imaginando
que Ferro Rodrigues e Eduardo Cabrita não se tinham tão longamente habituado à
vida no interior do poder, será que a notória pouca propensão do primeiro ao
cultivo do raciocínio e a natural tendência do segundo para a grosseria teriam
atingido as vastas dimensões que actualmente exibem? Não quero abusar da minha boa vontade, mas,
sinceramente, duvido. Ferro não teria, com certeza, desenvolvido capacidades
nunca vistas no comércio com as ideias e Cabrita não seria, em circunstância
alguma, um modelo de civilidade e responsabilidade pessoal, mas os resultados,
com toda a probabilidade, seriam menos extensos e catastróficos. O convívio habitual com os outros habitantes do
mundo sublunar ter-lhes-ia limitado as suas potencialidades inatas e reduzido,
se necessário à má cara, as possibilidades do pleno desenvolvimento destas.
Foi preciso viverem na bolha por muito tempo para que elas se
pudessem desenvolver com a pujança que conhecemos e que está à vista de todos.
Comecemos com Ferro e com o
seu já célebre convite a que os portugueses se deslocassem “de forma massiva” –
em português diz-se: “maciça” – a Sevilha para ajudarem à vitória da selecção
portuguesa no seu jogo com a Bélgica.
É já de si curioso, embora tristemente habitual, ver um político a encorajar as
pessoas a desejarem sanguineamente algo que não depende da sua deliberação ou
da sua vontade. Dá-nos uma certa imagem da sua própria irresponsabilidade,
que sobreviverá, sem dúvida, a todas as bazucas que nos caírem em cima. Mas
esqueçamos esta reflexão geral e concentremo-nos no contexto particular em
que a frase foi proferida. Como se sabe, há uma nova vaga da Covid que anda
por aí, Lisboa e outras localidades do país encontram-se em “cerca sanitária” e
a Andaluzia é presentemente um dos mais gloriosos focos de
irradiação da doença na Europa. É preciso a têmpera de um Ferro para
incitar – não uma, mas duas vezes, e sem posterior retractação – a uma
movimentação nunca vista de massas naquela direcção. Chico Buarque aconselha numa canção a agir duas vezes antes de
pensar. É um propósito tímido se tivermos em mente Ferro Rodrigues, que
consegue falar muito mais vezes sem, graças a uma estupenda imunidade, se
deixar contaminar, mesmo ao de leve e no fim do seu périplo vocabular, pelo
pensamento.
O caso de Cabrita – este último caso, quero dizer – é ainda pior.
Dia 18, o carro em que seguia o ministro atropelou mortalmente, na zona de
Évora, um trabalhador de uma empresa, contratada pela Brisa, que fazia a
manutenção de um troço da autoestrada A6. O acidente está sob inquérito, o
que, por regra, em Portugal, ameaça a eternidade. Entretanto, discute-se a
velocidade do carro em que seguia o ministro, qual a faixa da autoestrada em
que rodava, etc. O ministro não fala, a pretexto desse mesmo inquérito.
O que não impediu o MAI de, logo a seguir ao acidente, emitir um comunicado
onde se dizia que as obras não estavam assinaladas e que a culpa do acidente
tinha sido do trabalhador, o que parece muita loquacidade para quem se refugia
no silêncio (um silêncio, de resto, partilhado com o primeiro-ministro, do qual
também não sai uma palavrinha – ah, mas ele está em isolamento profiláctico…).
A Brisa já desmentiu um dos pontos do comunicado do MAI: as obras
estavam sinalizadas. Vamos ver
(vamos?) o resto. Mas Cabrita não se limitou a emitir o tal comunicado. Cedendo
caracteristicamente aos seus princípios, não contactou a família da vítima nem
se fez representar no seu funeral. É obra! E é, de forma típica, obra de
Cabrita. Também ele, como Ferro, é imune. No seu caso, radicalmente imune à
mais banal decência.
Estas imunidades não nascem, vale a pena dizê-lo, apenas da bolha em
que as duas esquisitas figuras vivem. São abundantemente permitidas, e até
favorecidas, por uma cultura política avessa ao pensamento crítico. Portugal ainda é, vagamente, uma sociedade
aberta. Mas a sociedade permitiu e permite – veja-se o caso de Berardo, por
exemplo, e o longo historial socrático – que, no interior dessa sociedade
tenuemente aberta, resida, no seu centro, uma sociedade fechada onde
praticamente tudo é permitido. E essa
sociedade fechada, que goza, em geral, da cumplicidade admirativa da
comunicação social, sabe-se adaptar às diferentes circunstâncias que se vão
apresentando e sobreviver confortavelmente, com um sacrifício ou outro pelo
caminho, mesmo em situações que, noutros lugares mais civilizados, conduziriam
directamente ao seu fim.
O
que há de particularmente chocante nestes dois casos, mas está longe de ser
único – lembrem-se dos incêndios de Pedrogão Grande –, é a relativa
indiferença, seja por estupidez, seja por grosseria, face à morte das pessoas.
E o ridículo das palavras e dos gestos.
Dir-me-ão que o ridículo é perdoável e que quem nunca foi ridículo que atire a
primeira pedra. Para mal dos meus pecados, tenho um porão cheio de razões
pessoais para ser o primeiro a concordar. Acontece que, em certos casos, o
ridículo é a antecâmara do grotesco, e o grotesco a antecâmara de algo muito
pior. E é esse algo muito pior que está no ar. Não me parece que seja preciso
uma sensibilidade extraordinária e fina para o detectar. Ferro e Cabrita,
apesar das suas características particulares, não são tão excepcionais assim. À
sua desagradável maneira, são até exemplares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário