quinta-feira, 1 de julho de 2021

E está tudo dito


Conformemo-nos, pois, que manda quem pode. Mas leiamos o retrato de Paulo Tunhas e aceitemos a ideia nele passada de impunidade para com os lorpas ou os arrogantes do poder que se pretende absoluto, e coremos de vergonha por tais representantes da nossa quietação pasmada. Ou embrutecida.

Ferro e Cabrita, dois exemplos /premium

Portugal ainda é, vagamente, uma sociedade aberta, mas que permitiu e permite que, no seu interior, resida, no seu centro, uma sociedade fechada onde praticamente tudo é permitido.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 01 jul 2021

Lutero escreveu um dia que os homens solitários têm pensamentos terríveis. Bom, é verdade que os mais gregários dos humanos também podem ser dados à coisa e que o solitário eremita taoista, na montanha que lhe serve de refúgio, pode ter excelentes pensamentos, mas percebe-se o que Lutero diz. Há uma confusão completa consigo mesmo que a solidão propicia e que conduz com facilidade à impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, que é meio caminho andado para a má indiferença (há uma indiferença que é, apesar de tudo, necessária para a vida em sociedade, já que nos permite não nos metermos excessivamente na vida dos outros) e para o desprezo para com os seres humanos em geral.

Tenho pensado na frase de Lutero por estes dias, por causa dos ditos e feitos de Ferro Rodrigues e Eduardo Cabrita, essas duas estrelas maiores que ornam o firmamento do nosso mundo político, muito acima do comum cidadão que nasce e morre nesta nossa pobre região sublunar. Claro que tenho pensado nela sob uma forma diferente daquela que Lutero tinha em vista, até porque se trata, nestes casos, de uma muito particular solidão, a solidão de quem vive isolado do mundo restante pela longa vida no interior da bolha muito exclusiva do poder político. Mas, por mais diferentes que sejam as situações, há algo nos resultados que é comum.

Dito por outras palavras. Imaginando que Ferro Rodrigues e Eduardo Cabrita não se tinham tão longamente habituado à vida no interior do poder, será que a notória pouca propensão do primeiro ao cultivo do raciocínio e a natural tendência do segundo para a grosseria teriam atingido as vastas dimensões que actualmente exibem? Não quero abusar da minha boa vontade, mas, sinceramente, duvido. Ferro não teria, com certeza, desenvolvido capacidades nunca vistas no comércio com as ideias e Cabrita não seria, em circunstância alguma, um modelo de civilidade e responsabilidade pessoal, mas os resultados, com toda a probabilidade, seriam menos extensos e catastróficos. O convívio habitual com os outros habitantes do mundo sublunar ter-lhes-ia limitado as suas potencialidades inatas e reduzido, se necessário à má cara, as possibilidades do pleno desenvolvimento destas. Foi preciso viverem na bolha por muito tempo para que elas se pudessem desenvolver com a pujança que conhecemos e que está à vista de todos.

Comecemos com Ferro e com o seu já célebre convite a que os portugueses se deslocassem “de forma massiva” – em português diz-se: “maciça” – a Sevilha para ajudarem à vitória da selecção portuguesa no seu jogo com a Bélgica. É já de si curioso, embora tristemente habitual, ver um político a encorajar as pessoas a desejarem sanguineamente algo que não depende da sua deliberação ou da sua vontade. Dá-nos uma certa imagem da sua própria irresponsabilidade, que sobreviverá, sem dúvida, a todas as bazucas que nos caírem em cima. Mas esqueçamos esta reflexão geral e concentremo-nos no contexto particular em que a frase foi proferida. Como se sabe, há uma nova vaga da Covid que anda por aí, Lisboa e outras localidades do país encontram-se em “cerca sanitária” e a Andaluzia é presentemente um dos mais gloriosos focos de irradiação da doença na Europa. É preciso a têmpera de um Ferro para incitar – não uma, mas duas vezes, e sem posterior retractação – a uma movimentação nunca vista de massas naquela direcção. Chico Buarque aconselha numa canção a agir duas vezes antes de pensar. É um propósito tímido se tivermos em mente Ferro Rodrigues, que consegue falar muito mais vezes sem, graças a uma estupenda imunidade, se deixar contaminar, mesmo ao de leve e no fim do seu périplo vocabular, pelo pensamento.

O caso de Cabrita – este último caso, quero dizer – é ainda pior. Dia 18, o carro em que seguia o ministro atropelou mortalmente, na zona de Évora, um trabalhador de uma empresa, contratada pela Brisa, que fazia a manutenção de um troço da autoestrada A6. O acidente está sob inquérito, o que, por regra, em Portugal, ameaça a eternidade. Entretanto, discute-se a velocidade do carro em que seguia o ministro, qual a faixa da autoestrada em que rodava, etc. O ministro não fala, a pretexto desse mesmo inquérito. O que não impediu o MAI de, logo a seguir ao acidente, emitir um comunicado onde se dizia que as obras não estavam assinaladas e que a culpa do acidente tinha sido do trabalhador, o que parece muita loquacidade para quem se refugia no silêncio (um silêncio, de resto, partilhado com o primeiro-ministro, do qual também não sai uma palavrinha – ah, mas ele está em isolamento profiláctico…). A Brisa já desmentiu um dos pontos do comunicado do MAI: as obras estavam sinalizadas. Vamos ver (vamos?) o resto. Mas Cabrita não se limitou a emitir o tal comunicado. Cedendo caracteristicamente aos seus princípios, não contactou a família da vítima nem se fez representar no seu funeral. É obra! E é, de forma típica, obra de Cabrita. Também ele, como Ferro, é imune. No seu caso, radicalmente imune à mais banal decência.

Estas imunidades não nascem, vale a pena dizê-lo, apenas da bolha em que as duas esquisitas figuras vivem. São abundantemente permitidas, e até favorecidas, por uma cultura política avessa ao pensamento crítico. Portugal ainda é, vagamente, uma sociedade aberta. Mas a sociedade permitiu e permite – veja-se o caso de Berardo, por exemplo, e o longo historial socrático – que, no interior dessa sociedade tenuemente aberta, resida, no seu centro, uma sociedade fechada onde praticamente tudo é permitido. E essa sociedade fechada, que goza, em geral, da cumplicidade admirativa da comunicação social, sabe-se adaptar às diferentes circunstâncias que se vão apresentando e sobreviver confortavelmente, com um sacrifício ou outro pelo caminho, mesmo em situações que, noutros lugares mais civilizados, conduziriam directamente ao seu fim.

O que há de particularmente chocante nestes dois casos, mas está longe de ser único – lembrem-se dos incêndios de Pedrogão Grande –, é a relativa indiferença, seja por estupidez, seja por grosseria, face à morte das pessoas. E o ridículo das palavras e dos gestos. Dir-me-ão que o ridículo é perdoável e que quem nunca foi ridículo que atire a primeira pedra. Para mal dos meus pecados, tenho um porão cheio de razões pessoais para ser o primeiro a concordar. Acontece que, em certos casos, o ridículo é a antecâmara do grotesco, e o grotesco a antecâmara de algo muito pior. E é esse algo muito pior que está no ar. Não me parece que seja preciso uma sensibilidade extraordinária e fina para o detectar. Ferro e Cabrita, apesar das suas características particulares, não são tão excepcionais assim. À sua desagradável maneira, são até exemplares.

POLÍTICA  FERRO RODRIGUES  PS

 

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