É do Paulo de Carvalho, a canção do título citado, sobre amores desavindos,
não tem a ver com a nossa sociedade da consciência tranquila, mas foi o que me
fez acudir ao pensamento, esta crónica de Paulo Tunhas, sendo uma constante a
pergunta, neste pressuposto de desconfianças e averiguações, ataques e retractações,
malandrices e hipocrisias, mais do que de interesse comezinho pelo estado de
saúde alheio. E porventura - quem sabe? – também a causa do abandono do lar, na
tal “cena” do “Olá como vais”, tipo, a culpa é tua, eu estou inocente,
implicando mútuas acusações.
Falta de memória será. Matreirice também.
Ou indiferença. As personalidades definem-se muito ao sabor dos egoísmos, é
mais fácil ver o argueiro nos olhos alheios do que a trave nos nossos, enquanto
se esmiúça o assunto, a nossa consciência revela-se na sua impecabilidade. Mas que
há muitas consciências tranquilas, mesmo as apanhadas com a boca na botija, temos
assistido a cada passo, isso sim. E a mistificação é total, tipo coelho na
cartola do prestidigitador. Ele não estava lá mas apareceu. Resta saber se são
reais, os coelhos, se são reais as cartolas, se são reais os juízes e os réus,
ou puros prestidigitadores. Para responder à questão do Paulo Tunhas, lembro o
Torga. Mas podia lembrar também o provérbio do gato escondido. Ou a fábula da
raposa matreira. Afinal, tudo são lembranças. Do tempo em que nos ensinavam a
doutrina sobre o que era mal e bem.
DEPOIMENTO
Miguel Torga
Deponho
no processo do meu crime.
Sou testemunha
E réu
E vítima
E juiz.
Juro
Que havia um muro,
E na face do muro uma palavra a giz.
MERDA! – lembro-me bem.
– Crianças......
– disse alguém que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
O vocábulo indecente,
E de repente
Como quem adivinha,
Numa tristeza já de penitente
Vi que a letra era minha.....
As consciências tranquilas/premium
Não precisará a consciência tranquila,
para se realizar plenamente, do auxílio maciço da falta de memória? Não será a
consciência tranquila, na sua acabada perfeição, uma forma de inconsciência?
PAULO TUNHAS OBSERVADOR, 15 jul 2021
A tranquilidade da consciência é uma
coisa muito linda. E, para minha grande surpresa, muitíssimo vulgar. Cheguei a esta última conclusão depois de ter
observado com atenção, nestes últimos anos, várias das figuras que passaram
pelas comissões parlamentares de inquérito e as que foram constituídas arguidas
pelo Ministério Público. Praticamente nenhuma se privou de declarar
ostensivamente que se encontrava “de consciência tranquila”.
Estas
coisas deixam-me apropriadamente de rastos. E deviam provocar no leitor, ou na
leitora, a mesma reacção. É que a minha consciência – e quero crer que a do
leitor também, senão o melhor é parar de ler já aqui – oscila incomodamente entre
a boa consciência e a má consciência.
Não digo freneticamente, com angústias kierkegaardianas, mas, pelo menos, com
alguma agitação. O espírito é um ser inquieto, que se mexe, e nem sempre na
melhor direcção. Aos 61 anos, penso nas mulheres, nos amigos, na família, no
trabalho. Vêm-me à cabeça mulheres perdidas e amigos perdidos. Vêm-me à cabeça
mortos. E duvido que tenha sempre agido da melhor maneira com toda essa gente,
e, já agora, também comigo. Nalguns casos, tenho a certeza que agi mal, ou
que trabalhei mal. Que tenha sido por estupidez ou impulso incontrolável e não
propriamente por maldade não me consola. Como não me consola o facto de também
me ter apanhado, não poucas vezes, no lugar da vítima. Estas experiências não
se anulam umas às outras. Por outras palavras: se alguma comissão de inquérito
ou o Ministério Público me viessem interrogar sobre um qualquer assunto, de
certeza que a minha resposta começaria por “Eu bem gostava de dizer que estou
de consciência tranquila, mas…”.
Não
é que eu não ambicione a tranquilidade. Pelo contrário, desejo-a ardentemente,
mas entre mim e (por exemplo) Ricardo Salgado ou Luís Filipe Vieira há um
abismo. Enfim, há vários, mas percebem o que eu quero dizer. Andarão
eles já muito avançados no caminho budista para a iluminação, naquela fase em
que a sua alma é como um lago parado num dia sem vento? Ou andarão próximos da
ataraxia, que as escolas helenísticas recomendavam? Aí, menos ambiciosa, a tranquilidade é
algo pelo qual se luta, como o filósofo estóico Séneca lutava. Uma luta particularmente difícil no caso dele,
que sofria da paixão devoradora pelo dinheiro (morreu riquíssimo) e, ao que
consta, ajudou o seu discípulo Nero a matar o meio-irmão, Britânico, e a mãe,
Agripina, antes do discípulo o forçar a suicidar-se, coisa que só conseguiu
depois de algumas tentativas malsucedidas. Não é
Sócrates ou Catão (que também teve alguns problemas no capítulo, é verdade)
quem quer. Mas talvez as actuais pessoas de consciência tranquila também passem
por combates (menos trágicos, espero) assim.
O
humilhante problema é, como disse, serem muitas e estarem em todo o lado. Se
fossem só os das comissões de inquérito e coisas afins, o ego sofria menos e a
inveja era um mau sentimento passageiro. Mas as pessoas de consciência tranquila
aparecem aos saltos, vindas de onde menos se espera, nos partidos, nas
televisões, nos jornais. Tomemos um
exemplo qualquer, como a actual situação em Cuba. Face à repressão organizada pela ditadura cubana,
muito patente nestes últimos dias, o PCP exorbitou de tranquilidade de
consciência, defendendo o regime e atacando os hipócritas “que, expressando uma
enganadora preocupação com o povo cubano, ocultam deliberadamente a política de
ingerência e agressão dos EUA”. O
PC, que adopta o lema leninista da “análise concreta de uma situação concreta”,
procede à análise introduzindo uma variante budista: a sua tranquilidade de
consciência, que lhe fecha os olhos aos sofrimentos e à miséria dos seres
humanos privados de liberdade, é como o tal lago parado num dia sem vento. Numa
linguagem que eles percebem, a transformação quantitativa dá lugar a um salto
qualitativo: a partir de um certo grau, a tranquilidade da consciência torna-se
na própria iluminação.
Mas
não é só o PCP que é admirável nestas coisas. O Bloco
de Esquerda também o é. Reconhecendo
a legitimidade dos protestos contra a má gestão da pandemia e a crise alimentar
– mas sem se alongar sobre a natureza ditatorial do regime -, o esquerda.net dá
ampla voz ao presidente cubano, Díaz-Canel, que vê a origem de todos os males
no “bloqueio dos EUA” e naqueles que, na ilha, o apoiam. O
Bloco parece subscrever, de acordo com a excelente dialéctica marxista, a tese
segundo a qual um embargo, por um salto qualitativo, se transforma num
bloqueio. “Bloqueio”, é verdade, é mais visual
e surte melhor efeito. Nunca tinha pensado nisto, mas a verdade é que a
tranquilidade da consciência aparentemente propicia os devaneios dialécticos.
E
o jornal Público – que muito se empenha em formar consciências tranquilas – não
fica atrás. Ainda ontem, um artigo – não uma coluna de opinião, um artigo – de
um jornalista da casa bate forte e feio nos EUA e nos belicosos “cubanos de
Miami”. É uma delícia. A dialéctica marxista acima referida volta ao ataque,
embora com falhas – o movimento do espírito – que a experiência, sem dúvida,
corrigirá no futuro: “embargo” alterna com “bloqueio”. O lago parado num dia
sem vento chegará mais tarde ou mais cedo – mais cedo do que mais tarde.
Tanta
tranquilidade de consciência é, de facto, opressiva. E uma pessoa põe-se a imaginar artimanhas para
escapar ao vexame da imensa sabedoria que nos rodeia de todos os lados. As
artimanhas tomam a forma de perguntas. Pode
uma consciência ser tranquila? Não será mais correcto dizer que a consciência
não foi feita para estar tranquila? Uma
consciência tranquila não será uma consciência falsa? Não será a negação da
realidade exterior coisa própria de uma consciência vazia? Não precisará
a consciência tranquila, para se realizar plenamente, do auxílio maciço da
falta de memória? Não será a consciência tranquila, na sua acabada perfeição,
uma forma de inconsciência?
Mas
estas perguntas são, repito, apenas truques para escapar imaginariamente
à humilhação a que as consciências tranquilas diariamente me submetem. Hesito
sempre em dirigir-me directamente “ao leitor”, mas já o fiz no princípio deste
artigo e reincido agora no fim: o leitor, ou a leitora, não partilha os meus
sentimentos?
SOCIEDADE COMPORTAMENTO JUSTIÇA PCP POLÍTICA BLOCO DE
ESQUERDA COMISSÃO DE
INQUÉRITO PARLAMENTO
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