sábado, 3 de julho de 2021

Um texto de 2011

De Henrique Salles da Fonseca, na altura, aparecido no “A Bem da Nação”. Hoje, surgiu-me por email, e tem a mesma actualidade que então. Um texto que, para além de apontar a influência perturbadora de filosofias como o Niilismo fazendo tábua rasa dos valores da Civilização, e tanto de destruição causando numa Humanidade cada vez mais destituída desses conceitos que foram elevando o Homem acima da Besta, ao longo dos tempos, hoje friamente substituídos pelo sentido do lucro e do desprezo humanista, faz também a apologia de Albert Camus como companheiro inicial dessa tertúlia de génios de esquerda e que deles se desligaria, depois de ter exemplificado no L’Étranger e explicado no Mythe de Sisyphe o porquê desseHomem absurdo”, pueril nesse niilismo desgarrado de toda a crença, mas que um livro comoLa Pesteprovaria a necessidade da luta contra todas as opressões.

Um Homem tenaz, Henrique Salles da Fonseca, na sua intransigência contra tais teorias redutoras dos verdadeiros valores humanos, esses que ensinam o Homem a superar as suas angústias e frustrações, mau grado o sentimento de impotência, que, afinal, se acasala com uma vaidade ilimitada de conquista. Como se tem visto, hoje.

 

  1. A VIDA DEPOIS DOS CONCEITOS

Henrique Salles da Fonseca

16.07.11

Friedrich Nietzsche (1844 —1900)

«Uma vez que o velho Deus abdicou, governarei o mundo doravante» - assim apregoava Nietzsche, o pai do niilismo.

A era niilista manifestou-se muito antes do que o filósofo imaginara: catorze anos depois da sua morte iniciou-se a Primeira Guerra Mundial e depois dela a Europa ficou nas garras do fascismo, do comunismo e do nazismo. E pouco tempo depois da primeira, sofreu outra guerra pior ainda que a anterior.

Desprezada a Civilização no que ela continha de valores perenes dando corpo à dignidade humana, a violência triunfou sobre a verdade e sobre a bondade. Dezenas de milhões de vidas foram aniquiladas sob o aplauso de dezenas de milhões de admiradores da violência. Sim, porque o niilismo só pode conduzir à ditadura, à violência e à aniquilação.

E como começou ele?

Perante o igualitarismo, todos têm razão, a ninguém é reconhecido o estatuto de sábio e tudo o que se apresente difícil é considerado antidemocrático; morto o conceito de que «o peso material determina o valor do oiro e o peso moral determina o valor do homem», a matéria reina e o dinheiro é a divindade suprema. Moral? A cada um, a sua.

- O que é bom para o oiro é bom para ti! Comercializa-te, adapta-te! Tudo o que te torna mais rico é útil; o que não for divertido é inútil e pode desaparecer.

Cada um que se valha a si próprio e os outros que se «virem» se conseguirem e, se não, tanto melhor pois mais fica para o vencedor entesourar.

Eis um conjunto de indivíduos que tudo fazem para vingar individualmente em prejuízo do próximo. A inveja ganha adeptos. Só que isto não é uma sociedade e muito menos uma Civilização. E onde não há coesão social, todos se sentem desamparados. Mas o desamparo é desconfortável. O desconforto gera a queixa e sempre acaba por conduzir à busca de soluções para se regressar a alguma situação assemelhável a conforto.

Assim se reúnem os ingredientes suficientes para que apareça um caudilho com promessas cujos méritos os desamparados não querem sequer questionar. E a ditadura, sempre radical, gera a violência e esta é a destruição.

Foi depois de muita desgraça que na tarde de 29 de Outubro de 1946, Albert Camus perguntou ao anfitrião André Malraux e ao grupo de outros convidados em que se destacava Jean-Paul Sartre – todos nascidos no niilismo e no materialismo histórico – se não achavam serem eles próprios, naquela sala, os maiores responsáveis pela falta de valores na Europa ocidental e se não estaria na hora de declararem abertamente que estavam errados, que os valores morais existem realmente e que doravante tudo fariam para restabelecer e clarificar esses princípios perenes e quiçá eternos. «Não acham que seria o princípio para o regresso de alguma esperança?»

E hoje?

Julho de 2011

Henrique Salles da Fonseca

BIBLIOGRAFIA:

Riemen, Rob – NOBREZA DE ESPÍRITO, UM IDEAL ESQUECIDO, Bizâncio, Lisboa, Abril 2011

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COMENTÁRIOS

- Henrique Salles da Fonseca 16.07.2011: E hoje, Camus continua com toda a razão! Bravo ao post no A Bem da Nação à volta do niilismo...e dos valores morais que existem realmente! Maria Correia

- Henrique Salles da Fonseca 16.07.2011: No fundo, todas as filosofias contêm em si normas de dimensões opostas, dependendo mais dos homens que as irão traduzir e aplicar do que do seu conteúdo idealista, geralmente correcto. Por isso as religiões, à partida pregando a virtude, pelo menos a cristã, permitiram a expansão de tanta crueldade e tacanhez. E os filósofos, como gente que sente e que pensa, explanam, nas suas teorias, tantas das revoltas contra os erros da sociedade em que estão inseridos, para além das suas angústias próprias, resultantes dos conceitos sobre a condição humana. Libertos de Deus e do que ele significa, entregues ao seu poder criador, segundo um existencialismo absurdo, a maioria dos homens abandona os conceitos e os preconceitos da moral, como muito bem diz o texto, e fabricam os seus próprios conceitos apoiados em ambições pessoais e materialismos que tudo vão arrasando, sobretudo os que ainda mantêm os tais valores. Mas o Convento de Mafra é prova de que o desprezo humano sempre existiu, substituindo a atenção pelos outros, no fabrico de estruturas que valorizassem a vida desses outros, pela autopromoção megalómana, pela extorsão em função de si próprio e dos apoiantes. Temos vivido tudo isso. Mas queremos confiar nos homens novos da mudança, no seu ar de competência e seriedade. Oxalá o país - e a Moody's - os deixem trabalhar. Berta Brás

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Anónimo 02.07.2021: Brilhante Amigo, Bem-haja por reavivar a minha fraca memória com este seu pensamento, tão bem elaborado, como sempre e, infelizmente, tão certeiro em 2011 como...dez anos passados! Que caminho leva a humanidade? Quando Deus determinar deixarei de testemunhar o que espera as gerações futuras... Com a renovação dos agradecimentos por tão bem nos ajudar a pensar, apertado abraço do seu António Alves-Caetano

Francisco G. de Amorim 02.07.2021: Hoje, se Camus viesse fazer a mesma proposta... liquidavam-no! E assim vai o mundo. Entre bandidos, egoístas, gananciosos e incompetentes. Requiem nos in pace!

Henrique Salles da Fonseca 02.07.2021 Olá e obrigada por esse prazer continuado de escrever e dar a ler... confinados agradecem...bom fim de semana, Yvette Centeno

Anónimo 02.07.2021: Meu Caro Henrique, muitas vezes temos que ter uma determinada vivência para fazer algumas perguntas ou poder dar resposta às perguntas. E Albert Camus teve-a. Se a minha progressiva fraca memória não me atraiçoa, já mais do que uma vez invoquei o escritor francês nestes comentários. Em 1946, onde se situa a cena que descreves, já ele recentemente tinha passado pela Resistência, já tinha defendido a extensa purga francesa pós-guerra, para depois reconhecer que ela “não só falhara como perdera a toda a credibilidade", bem como possivelmente já estaria no início do caminho que o levaria a publicar, cinco anos depois, “O Homem Revoltado” e, consequentemente, a romper com alguns possíveis protagonistas da cena descrita (Jean-Paul Sartre, desde logo). Nessa época – 1952 – a filósofa alemã, e depois apátrida, para terminar com a nacionalidade americana – Hannah Arendt -, criadora da expressão “banalidade do mal”, classifica-o como o melhor homem de França. A pergunta do texto termina com a palavra “esperança”, por coincidência a mesma que dá título a um livro do anfitrião, André Malraux, palavra que melhor descreve o desejo de saída de situações trágicas, como a descrita nesse livro (a guerra civil de Espanha) ou como a da 2ª guerra mundial e em vésperas de se começar outra, menos quente e mais longa, a chamada guerra fria. Também nós, actualmente, vivemos em momentos de querer ter esperança em algo melhor. A dúvida é o que o futuro nos proporcionará. O grande historiador britânico, já falecido e também já aqui citado por mim Tony Judtresponde que, decorridas várias décadas sobre a cena descrita e de muita mudança havida, quer em França, quer no resto do mundo, “a aposta de Camus continua em cima da mesa – agora mais do que nunca”. E acrescenta: “Camus acertou no que muitos outros erraram durante tanto tempo”. Abraço amigo. Carlos Traguelho


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