domingo, 11 de julho de 2021

Recordando


Tempos afegãos de um próximo passado que se viveu com horror, de um presente em mudança, de um futuro sem expectativa benéfica. Contado por José Milhazes e seus muitos comentadores, bem lembrados.

Afeganistão: regresso ao mesmo ou catástrofe ainda maior? /premium

Os dirigentes dos países que fazem fronteira com o Afeganistão na Ásia Central preparam-se para o pior, receando que grupos de radicais islâmicos possam tentar levar o conflito a toda a região.

JOSÉ MILHAZES, Colunista do Observador. Jornalista e investigador       OBSERVADOR10 jul 2021

À medida que os Estados Unidos e a NATO retiram as suas tropas do território do Afeganistão, a ofensiva dos talibãs e de outros grupos radicais aumenta e tornou-se já claro que a intervenção ocidental nesse país não permitiu deixar estruturas governamentais capazes de resistir por muito tempo.

Aliás, esta retirada faz lembrar a saída inglória das tropas soviéticas do Afeganistão em 1989. Os rebeldes afegãos não respeitaram os acordos firmados com Moscovo, lançaram-se rapidamente numa feroz luta pelo poder, obrigando Mohammad Najibullah, então presidente do país, a refugiar-se na representação das Nações Unidas em Cabul. Em 1997, quando os talibãs, então o grupo mais radical islâmico, tomaram a capital, prenderam Najibulhab, castraram-no e enforcaram-no publicamente. Depois, impuseram no país um dos regimes mais violentos e repressivos.

Desta vez, os americanos parecem ter um plano para salvar o actual presidente afegão, Ashraf Ghani, mas deixam o país entregue às forças mais retrógradas e fundamentalistas.

Vassily Kravtzov, antigo agente dos serviços secretos e diplomata russo que trabalhou muitos anos no Afeganistão, atribui a falta de resistência por parte das forças armadas afegãs, face aos talibãs e a outros grupos extremistas, ao falhanço norte-americano na formação das tropas de Cabul: “O Pentágono organizou tudo como se estivesse em casa, considerando o seu sistema o mais eficaz. Trata-se, em primeiro lugar, do sistema de contratação dos militares sem qualquer tipo de ideologia, sem ter em conta os interesses do povo e do Estado. Desse modo, os afegãos transformaram-se numa espécie de mercenários no seu próprio país. E este é um momento muito delicado.”

Em segundo lugar”, continua Kravtzov no artigo “A escuridão avança sobre o Afeganistão”, publicado na jornal Novaya Gazeta, nas tropas afegãs não foram criados quaisquer órgãos políticos. Realizaram o princípio “forças armadas fora da política e da ideologia”… Em terceiro lugar, tal como no Pentágono, nas forças armadas afegãs não existem órgãos de contra-espionagem e de segurança militares, independentes do ministério da Defesa e do Estado-Maior. Foi sempre sua tarefa o acompanhamento dos processos nas tropas e em unidades militares concretas.”

Além disso, a forma como está a ser retirado o contingente militar dos Estados Unidos e da NATO contribui para uma desmoralização rápida dos soldados e oficiais afegãos. Por exemplo, Washington ordenou a saída dos seus homens da base aérea de Bagram durante a noite e sem informar Cabul.

“Presente envenenado” para a Rússia e China?

Tentando salvar a vida durante a ofensiva lançada no norte do Afeganistão pela coligação constituída por combatentes dos talibãs, da Al-Qaeda e do Estado Islâmico de Khorasan, milhares de soldados e guardas fronteiriços afegãos rendem-se aos grupos extremistas ou atravessam as fronteiras do Afeganistão e do Uzbequistão, fazendo recear uma onda de refugiados e a passagem do conflito para esses dois países – e daqui para toda a Ásia Central.

Como é sabido, a Rússia considera a Ásia Central uma das suas zonas de influência e promete garantir a segurança dos seus aliados na região através da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC), que reúne a Arménia, Bielorrússia, Quirguízia, Rússia e Tadjiquistão.

Esta organização tem no seu tratado o artigo n.º4, que garante o apoio militar dos membros caso um deles seja atacado. Quando da guerra entre a Arménia e o Azerbaijão em torno de Nagorno-Karabakh, Erevan pediu o accionamento desse artigo, mas isso não foi feito, porque o conflito tinha lugar em território azeri ocupado pelos arménios. A seguir, registaram-se confrontos militares entre dois dos membros da organização: Tadjiquistão e Quirguízia, mas a organização também não arriscou intervir. Por isso, é difícil ter uma ideia mais ou menos clara da capacidade militar da OTSC.

Há dois anos, Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, defendia: “O conflito no Afeganistão não tem solução militar. A única via de normalização é conseguir a paz através de meios político-diplomáticos. Defendemos a retirada total de tropas estrangeiras do país.”

Esta afirmação baseia-se numa suposição dos dirigentes russos de que, não obstante as forças da oposição ao regime de Cabul terem lançado ofensivas de vulto junto às fronteiras com o Tadjiquistão e o Uzbequistão, os talibãs não tencionam atacar os países vizinhos. A julgar pelas declarações dos diplomatas russos pode-se supor que exista um acordo entre Moscovo e os talibãs, conseguido em conversações secretas ou abertas entre eles.

Os dirigentes russos suavizaram significativamente o seu discurso em relação aos talibãs e Lavrov acusa o presidente Ghani de travar o diálogo com eles, acrescentando que isso permite ao exército islâmico ocupar territórios, antes de mais, no norte do Afeganistão, precisamente nas fronteiras dos países que são nossos aliados.”

Opinião diferente tem o general bielorrusso Stanislav Zas, secretário-geral da OTSC: “Eu vi-os em Abril ao vivo através dos binóculos no rio Piandj… Eles estão todos vestidos de negro, têm pontos militares por toda a parte.”

Os talibãs poderão não arriscar atacar os países vizinhos, mas neste caso, Arkadi Dubnov, analista político que conhece bem a Ásia Central, levanta uma série de questões: os talibãs “receiam a consolidação das etnias étnicas do Afeganistão, dos tadjiques, uzbeques, turcomenos, que no Norte são precisamente a maioria? Tentarão impedir que lhes sejam fornecidas armas a partir dos países vizinhos da Ásia Central ou da Rússia? Quererão conservar a integridade do Afeganistão e resistir aos planos separatistas dos chefes do Norte? Tentarão defender a fronteira para serem eles a controlar o tráfico de droga?

É difícil responder a estas perguntas, mas os dirigentes dos países que fazem fronteira com o Afeganistão na Ásia Central – Tadjiquistão, Turcoménia, Uzbequistão e Chinapreparam-se para o pior, pois receiam que grupos de radicais islâmicos possam tentar levar o conflito a toda a região e desestabilizar a situação. O líder tadjique Emomali Rahmon já pediu ajuda à OTSC e o presidente russo Vladimir Putin respondeu positivamente.

Pequim também está certamente atenta ao desenrolar dos acontecimentos, pois o Afeganistão é a base do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, cujos guerrilheiros lutam pela separação da região autónoma de Xijiang da China.

Como Moscovo e Pequim se opõem à instalação de bases norte-americanas ou da NATO na região, terão de ser russos e chineses a carregar o fardo mais pesado caso a guerra do Afeganistão salte para além das fronteiras afegãs.

Num artigo recentemente publicado por Serguei Lavrov, ele escreve: “O Ocidente colectivo histórico, que dominou sobre todos durante 500 anos, não pode deixar de ter consciência que essa época passou irremediavelmente ao passado, mas ele pretende manter as posições que lhe escapam, travando artificialmente o processo objectivo da formação de um mundo policêntrico.

A acção dos Estados Unidos e da NATO no Afeganistão falhou redondamente e surge uma oportunidade para Moscovo e Pequim, separados ou juntos, demonstrarem a verdade da tese do chefe da diplomacia russa.

MUNDO  AFEGANISTÃO  ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA  NATO

COMENTÁRIOS:

BatteringRam EU: Ainda não compreenderam que não vão conseguir impor globalismos/governos mundiais, já muitos tentaram no passado e todos fracassaram. E contra o estado islâmico vão perder naturalmente, como sempre.           Paulo F.: Em contrapartida deixam lá armas suficientes para sustentar os terroristas por muitos anos. Aquilo vai ficar dividido tribalmente, a Rússia defende as suas fronteiras pagando a senhores da guerra, o mesmo vai fazer o Irão e o Paquistão, os que apoiam ou se apoiam nos ocidentais vão ser as grandes vítimas, tanto dos Taliban como de pequenas células do estado Islâmico. Tenham em atenção que os Taliban não são exactamente uma força homogénea, têm tropas próprias mas também recorrem aos senhores da guerra para operações localizadas, são sim a força mais politizada e organizada, e a única maneira de os deter é pagando fortunas aos tais líderes tribais. Este país não vai ter paz nunca.          Anarquista Inconformado: Afeganistão: Para destruir o governo comunista do Afeganistão, os EUA e seus capangas armaram e criaram os Talibans a partir do Paquistão governado pelos seus homens de mão. A URSS que apoiava o governo Afegão, resolveu abandonar o país à sua sorte afim de sacarem mais um biliões de dólares aos donos do mundo. Logo os talibans se apoderaram do Afeganistão e os americanos perceberam que mais uma vez lhes tinha acontecido o que lhes aconteceu no Camboja com Pol Pot. Depois do 11 de Setembro, invadiram a Afeganistão com a sua aliança de nome NATO colocando no poder o seu homem de mão, dezenas da anos depois não conseguindo derrotar a sua criação, mais uma vez tiveram de fugir do Afeganistão de um forma menos espectacular de quando fizeram o mesmo do Vietname. Confere lá oh Milhazes, se é essa a informação que te deram para recitar.        Luís Martins: As intervenções militares americanas fracassaram na maioria das vezes. Só em coligações alcançaram algum sucesso, nomeadamente na duas guerras mundiais, especialmente na segunda.   advoga diabo: Biden não quer é que o "Vietname dos soviéticos" se transforme numa espécie de Vietname 2 dos americanos. Já JM, além de assinar o ponto, vive na esperança de uma sequela do Vêm Aí os Russos!     Harry Dean Stanton > advoga diabo: Vietname russo ou Vietname americano. Por mais que Reagan o tenha expressado, por mais que Bush pai o tenha tentado como ninguém com a CIA, Bush filho já conseguiu há muitos anos transformar o Afeganistão na guerra mais longa da América. Duas décadas! E pior, com os resultados que até o Milhazes dá conta nesta coluna. Com os talibans a reclamarem 85% do território. Resultado que não difere aliás muito de todas as intervenções externas norte-americanas mais recentes. Com as consequências que também se conhecem para o mundo.         Elvis Wayne: O Afeganistão é um buraco de balbúrdia e caos a fazer-se passar por um país. É uma tragédia para quem lá vive ou melhor sobrevive e nada tem a ver com o fanatismo. No entanto já lá vão 20 anos, é hora de os americanos irem à sua vida.         Harry Dean Stanton: Os russos também já falharam no Afeganistão com os americanos a financiar os terroristas como Bin Laden que mais tarde tiveram que ir lá combater com o sucesso que se conhece. Já depois de também terem apoiado os maravilhosos talibans que mergulharam o país no mais negro obscurantismo medieval. Mas também concordo que os tempos hoje são totalmente diferentes. Já agora, bom texto do Milhazes hoje também. Alguma deve estar para acontecer. Uma coisa é certa nenhuma potência estrangeira conseguiu manter o poder por lá até à data. Antes e depois da queda da Monarquia. E nós no Ocidente hoje tememos muito o terrorismo islâmico mas a Rússia não o teme menos. Por razões acrescidas de proximidade e pela inúmera população muçulmana. Por mais que Putin também diga que eles amam todos muito a Rússia. Por alguma razão a intervenção na Síria também visa que muitos terroristas não regressem a solo russo. Tão ou mais fustigado por atentados terroristas que o Ocidente.           bento guerra: Mais uma idiotice do "Obama III" chamado Biden. Aquilo é o "eixo do mal" como dizia e bem o G.Bush             Harry Dean Stanton > bento guerra: E como é que Bush aprendeu isso? Com o pai? voando sobre um ninho de cucos: Eu sou uma perfeita ignorante sobre estas movimentações estratégicas. Portanto perdoem-me os disparates que vou opinar. Dos taliban não poderá nunca vir nada de bom. Portanto logo que encontrem alguma resistência será matança em série. PortugueseMan chama a atenção para a ocidentalização de Kabul. Aí haverá certamente resistência. Concordo com José Milhazes quando diz que o Afeganistão é um osso mais duro de roer do que a Síria: pela área do país, pela topografia extremamente montanhosa, pelas fronteiras e pelo estado permanente de guerra em que tem vivido. Não estou a ver os taliban a aceitarem diplomaticamente as pretensões chinesas. Vão-se desagregar em grupos armados e quiçá fornecer à Rússia uma belissima desculpa para repetir a década de 80 do século passado, mesmo sabendo que não correu nada bem para os russos. Mas agora quem lá está é Putin…….PortugueseMan >voando sobre um ninho de cucos : ...Portanto perdoem-me os disparates que vou opinar… ...Dos taliban não poderá nunca vir nada de bom... Convém não esquecer que eles vivem ali, e não podemos também esquecer quantos países têm coisas semelhantes aos Talibans e governam. O facto de eles nos últimos tempos andarem em vários países a negociar, parece-me demonstrar que estão dispostos a compromissos. O que me parece um bom sinal. Não estou a falar em paraísos na terra, mas que consigam viver em paz e com alguma tolerância para quem cresceu e viveu ali uma realidade diferente. ...quiçá fornecer à Rússia uma belíssima desculpa para repetir a década de 80 do século passado, mesmo sabendo que não correu nada bem para os russos... Repare num pormenor importante. As intervenções russas foram e estão a ser muito específicas. Tchétchénia, completamente crucial não podia sair de território russo doa o que doer, disse isto vários vezes ao José Milhazes. Geórgia, não podia entrar na NATO e só intervieram após as regiões separatistas serem atacadas. Só actuaram em zonas onde são desejados. Ucrânia, não podia entrar na NATO e só interveio quando houve uma acção musculada para tirar o governando pró-russo. Só entraram em zonas onde são desejados. Síria, entraram com o apoio do governo e das pessoas. Ou seja, eles eram desejados e a sua campanha na Síria é muito específica. Os russos só têm intervindo, onde exista uma base de apoio. É uma actuação completamente diferente da intervenção soviética no Afeganistão.             Cabral Paula: Se ninguém lhes vendesse armas, os afegãos, entre eles encontravam uma solução em dois ou três anos. Para isso é que devia servir a "comunidade internacional". Mas não, o que interessa são as alterações climáticas, problema para o qual não há solução, e portanto nem é um problema...           Antonio Mendes: Será uma Síria 2.0? É deixá-la e não ceder aos cantos de sereia para que seja a UE a pagar a sua reconstrução enquanto os russos continuam a vender as suas armas!           José Milhazes AUTOR > Antonio Mendes: O Afeganistão é uma situação muito mais grave do que a Síria. PortugueseMan: Ora, até que gostei de ler o artigo. Para a Rússia, o mais importante é tirar os americanos da Ásia Central. Com a saída deles do Afeganistão, perdem totalmente o acesso. Duvido que algum país à volta do Afeganistão, volta a dar permissão de passagem, quanto mais albergarem militares americanos. Quanto aos Taliban, parece-me que eles estão bem mais conscientes que é preferível fazer uns acordos, ter alguma paz e controlo do país. Eles têm andado já há algum tempo em negociações. Com os russos, com os iranianos, paquistaneses... Desde que se mantenham nas suas fronteiras e controlem certas facções ainda mais radicais que por ali andam e que vários países consideram uma ameaça, poderá haver ali algum entendimento. Os russos têm músculo militar e a China tem músculo financeiro. Há muitos negócios que podem ser feitos no Afeganistão. Depois de tantas décadas de conflito, vamos a ver se haverá ali uma pausa. Mas vão ter que demonstrar alguma tolerância penso. Vamos a ver como vão tratar os afegãos mais "ocidentalizados" que vivem em Kabul. Se a coisa não correr bem e extravasar... Bem, é uma boa zona para os russos e chineses treinarem a sua aliança militar que cresce a cada dia que passa. Mas não acredito que os Taliban queiram ir por aí.          José MilhazesAUTOR > PortugueseMan: O grande desafio serão mesmo os grupos radicais num país com um relevo e divisões tribais. PortugueseMan > José Milhazes: Tudo dependerá dos talibans. Já há algum tempo que os russos têm andado em conversações com eles. Se os talibans não quiserem nada com esses grupos mais radicais, os russos podem tratar disso pelo ar como o fazem na Síria. Com a diferença que aqui não haverá zonas controladas pelos americanos. Nenhum país vizinho quer mais confusão ali. E a China tem grandes planos económicos que vão beneficiar todos aqueles países. A bola está mesmo com os taliban e estes parecem-me diferentes do que há umas décadas. Vamos a ver que tipo de compromissos estão dispostos a fazer, para haver paz no país.

Nenhum comentário: