A susceptibilidade ao crime é coisa
antiga, começa na infância, em termos de acusação: “- Ó mãe, a Tinha “teu” (=bateu, está visto, sendo que tinha foi poderosa corruptela de bertinha, hoje, felizmente, desaparecida), chorava o menino que, contava a
minha mãe, era, por vezes, vítima das tropelias dos meus três anos mimados, que
mais tarde, no liceu, convergiram, eventualmente em rasteiras às colegas que
corriam e por vezes se estatelavam, mas isso só pelos 10 ou 11 anos, das risadas
tolas, não quero acentuar tanto os pontos negativos da minha exuberância
arrapazada, pois do que gostava mesmo, daí em diante, era de saltar, correr e
jogar à bola, nos espaços amplos do velho liceu Salazar. Mas, se cometi
desacatos, fui incapaz de ser queixinhas, isso nunca.
Pois hoje os meios mediáticos usam e
abusam do processo, talvez como forma de ressalvarem ainda o pouco que nos
resta de ponderação sobre os valores éticos. Como informa André Lamas
Leite,
da segunda crónica, «(a moda do crime) existe desde o momento em que o primeiro
delito foi cometido e desde que a primeira noção de que certos comportamentos
são comunitariamente inadmissíveis surgiu.» Mas é tão constante e
monocórdica nos telejornais e nos jornais, que acaba por criar um estado de
indiferença, um efeito de anestesia, como nos diz André Lamas Leite.
O certo é que a questão do MAL torna-se
cada vez mais visível, não há dúvida, e o pensarmos na maldade de tanta
hediondez que se comete, dificilmente nos pode tornar felizes. Muito corajoso
foi, pois, Salles da Fonseca em ler até
ao fim o tal livro - “ História de um
Canalha”, de Júlia Navarro. As
próprias notícias mediáticas para mim, ficam-se pelos títulos dos jornais, para
não sofrer tanto, nem que seja só de vergonha. Mas a exclamação de exaspero,
perante tanto espalhafato em torno do crime é a mesma que surge em face do
crime: o mesmo “IRRA!” de Salles da Fonseca.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA A BEM DA NAÇÃO 11.02.19
Título
– “HISTÓRIA DE UM CANALHA”
Autora – Júlia Navarro Tradutores – Rita Custódio e
Alex Tarradellas
Editora – BERTRAND EDITORA Edição – 1ª, Outubro de 2016
Foi ao longo da leitura deste
livro que dei por mim a lembrar-me do medo que em criança me fazia o «Comboio
Fantasma» na Feira Popular de Lisboa. Só que agora tenho quase 74
anos e, mesmo assim, saltei um capítulo apenas encetado por total incapacidade
de continuar a absorver tanta maldade e, mais à frente, deixei o livro no local
em que o estava a ler e fugi para outra parte da minha própria casa. Só voltei
a pegar-lhe depois de respirar fundo e de tomar consciência da infantilidade em
que estava a incorrer.
Não me lembro de ter lido
qualquer outra obra de ficção com enredo tão pesado como o desta. Julgo mesmo
que nem sequer Edgar Alan Poe é tão medonho.
Da
contracapa, transcrevo:
«Thomas Spencer sabe como conseguir tudo o que quer. A saúde delicada
foi o preço que teve de pagar pelo seu estilo de vida, embora não se arrependa.
No entanto, desde o seu último episódio cardíaco, apoderou-se dele um
sentimento estranho e, na solidão do seu luxuoso apartamento em Brooklyn,
sucedem-se as noites em que não pode deixar de se perguntar como seria a vida
que conscientemente optou por não viver.
A memória dos momentos que o levaram a ter sucesso como consultor de
relações-públicas e imagem, entre Londres e Nova Iorque nos anos oitenta e
noventa, revela os mecanismos dúbios que os centros de poder por vezes empregam
para alcançar os seus fins. Um mundo hostil governado por homens onde as
mulheres resistem a ter um papel secundário.»
Estranhará o meu leitor que
inclua esta apreciação na rúbrica «LIDO COM INTERESSE» e não numa a que poderia
chamar «LIDO COM PAVOR» mas acho que, por muito boa literatura que esta seja (e
é), não se justificaria abrir nova secção na minha biblioteca porque não estou
na disposição a voltar a ler qualquer outro livro que me incomode.
Resta-me uma questão para que
ainda não encontrei resposta: qual o objectivo moral, ético, político, enfim,
social, que levou Júlia Navarro a fazer publicar esta história?
Meu comentário final: IRRA!
II - OPINIÃO
Da banalidade anestésica do crime
Falta saber o que esta
sobre-exposição mediática ao delito traz à sociedade portuguesa: uma maior
lassidão na forma como lidamos com o crime ou um aumento do grau de
punitividade? Um aumento da insegurança real (objectiva) ou apenas da
subjectiva ou percepcionada? É urgente que as escolas de Criminologia e os
psicólogos da justiça nos ajudem nas respostas.
PÚBLICO,
11 de Fevereiro de 2019
O
crime está na moda, ou melhor, o espectáculo em volta dele está-o. E o fenómeno não é de agora. Arrisco-me a dizer que
existe desde o momento em que o primeiro delito foi cometido e desde que a
primeira noção de que certos comportamentos são comunitariamente inadmissíveis
surgiu. Claude Lévi-Strauss, o famoso antropólogo, nas suas investigações em
África, julgou encontrar na verificação de que o incesto conduzia a seres
humanos deficientes a primeira lei criminal e, por isso, uma norma proibitiva.
Sabe-se há muito que esta concepção é cientificamente errada e que tal como
qualquer outro ramo de Direito, o Penal surgiu quando existiu o primevo
contacto humano e posterior urgência na regulação das esferas jurídicas de cada
um.
É,
o crime, não uma tendência, mas uma perenidade. Continuará sempre a existir e a suscitar o interesse
de todos. Por definição, em maior ou menor grau, todos somos voyeuristas e
gostamos do macabro e do que significa o incumprimento normativo. Em regra,
e bem lá no fundo, continuamos animais e retiramos prazer dos sentimentos
associados ao desvio, ao inadimplemento de quaisquer normas, principalmente as
jurídicas, por terem a garanti-las a coacção organizada do aparelho estatal.
Daí que toda – ou quase toda – a comunicação social
dedique largo tempo e meios humanos e financeiros às notícias sobre a prática
de crimes. E ao seu
comentário, quase sempre “pseudo-comentário”, ao ponto de existir uma
normalização delituosa: um programa de TV da manhã tem de ter qualquer coisa
como uma “crónica criminal”. A sujeição diária a tais fenómenos tem vantagens
e inconvenientes, como tudo na vida. Mas, de entre os últimos, abunda a
criação de um sentimento anestesiante face ao desvio. É certo que ele é tão
natural e normal quanto a vida regrada. Longe vão os tempos em que Lombroso e
seus discípulos acreditavam num criminoso nato ou atávico, reconhecível por
particulares caracteres anátomo-morfológicos. Como temos assinalado, nunca
deixamos, até hoje, de procurar no delinquente algo de diferente de nós: as
condições psicológicas, sociais, de contexto, de etiquetagem, de genética
forense ou as modernas neurociências. Tudo
votado ao insucesso, pois delinquir é tão natural como existir e o desvio há-de
ser sempre um complexo bio-psico-social.
Faltam
estudos em Portugal sobre o efeito de imitação de comportamentos desviantes,
embora os estrangeiros nos digam, genericamente, que ele é mais um mito:
tende-se a seguir exemplos socialmente aceites e que assegurem um grau de
prazer e aceitação social maior, o que não sucede com o crime. Também falta saber o que esta sobre-exposição
mediática ao delito traz à sociedade portuguesa: uma maior lassidão na forma
como lidamos com o crime ou um aumento do grau de punitividade? Um
aumento da insegurança real (objectiva) ou apenas da subjectiva ou
percepcionada? É urgente que as escolas de Criminologia e os
psicólogos da justiça nos ajudem nas respostas.
Só assim poderemos intervir, se
necessário for, no aumento da regulação (de preferência auto e não hetero)
dos mass media, no modo como as
notícias associadas ao crime são divulgadas e no estabelecimento de limites às
imagens que passam. Já em vários casos concretos o Código Penal, o Estatuto dos
Jornalistas, a Lei da Imprensa e a Lei da Televisão contêm disposições sobre o
tema, olimpicamente ignoradas amiudadas vezes.
Pela
normalidade acima assinalada da paixão pelo patológico, pelo exorcismo através
dos outros daquilo que de pior existe em nós, haverá sempre incumprimento
destas e de outras regras. Todavia, se se mantiver o curso que vimos seguindo,
em Portugal e no mundo, algo de semelhante acontecerá (ou acontece já) a um
episódio por todos nós já experimentado: quando vemos crianças dilaceradas em
qualquer conflito, entre duas garfadas ao jantar, a comida continua a cair-nos
bem. É longe, é habitual, é quase tão natural quanto saber o boletim
meteorológico e daí o convite à inacção. A “banalidade do mal” de Hannah Arendt
não está em grandes guerras, em conflitos mundiais ou quase épicos, mas no modo
como lidamos, dia-a-dia com pequenas coisas, como os casos de violência
doméstica. Anestesiados. É um problema dos outros. Bom, mas tudo isso é tema
para outra reflexão.
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