quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Diz o roto ao nu



Um país bastante extenso, e afinal até bastante rico, que poderia estar bastante saudável, não foram os governantes insensatos e ambiciosos que dele se apoderaram ultimamente, incapazes de resistir ao brilho protector do seu solo generoso, mas mostrando-se presa fácil de países mais capazes de explorarem esses recursos em proveito próprio. Caso para aplicar o Por qué no te callas, do rei envergonhado, como remédio necessário contra a basófia tola, da perdição. Mas… quem somos nós, afinal, para dar conselhos?

OPINIÃO: Erdogan e o Eldorado: por que razão a Turquia apoia Nicolás Maduro?
Nesta altura, chineses, russos e turcos são os únicos que podem dizer que o Eldorado existe mesmo na Venezuela.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES                PÚBLICO, 4 de Fevereiro de 2019
1No passado, nada excitou mais a imaginação dos conquistadores espanhóis das Américas do que o Eldorado (“El Dorado” em língua espanhola/castelhano). A procura da cidade mítica do ouro, que existiria no que mais tarde foi o Vice-Reino espanhol de Nova Granada — grosso modo, o actual território do Panamá, Colômbia, Equador e Venezuela —, alimentou numerosas e infrutíferas expedições.
Ocorreram entre o século XVI e o século XIX, algures entre a Colômbia e as Guianas. Edgar Allan Poe, o escritor oitocentista norte-americano de contos fantásticos, publicou em 1849 o poema “Eldorado”. Na época estava também em curso nos nos EUA/Califórnia uma corrida do ouro. Provavelmente, o poema terá sido escrito como reacção — e advertência — aos perigos e futilidade da procura do enriquecimento fácil e rápido. O poema descreve um gentil cavaleiro que, cavalgando incessantemente, sob o sol e a sombra, procurava o Eldorado. Mas com a sua longa e infrutífera busca foi perdendo as forças. Esse desalento, que sugere um final trágico, está patente na terceira estrofe, num belo jogo de palavras e de sonoridades, provavelmente intraduzível para português: And, as his strength/ Failed him at length,/ He met a pilgrim shadow —/ ‘Shadow’, said he, / ‘Where can it be —/ This land of Eldorado?’”
2. Tal como imaginavam os espanhóis e outros europeus, nunca ninguém encontrou o Eldorado, por razões óbvias, sabemos hoje da sua inexistência. Mesmo sem Eldorado, a Venezuela é um país riquíssimo em recursos naturais — e não só em petróleo, onde tem as maiores reservas mundiais —, mas também em ouro, metal usualmente aceite como meio de pagamento a nível internacional. Em termos de recursos deste metal precioso, está no grupo dos países com maiores reservas por explorar no mundo, sendo as estimativas concretas variáveis.
Paradoxalmente, tudo isso não garante à Venezuela um elevado retorno financeiro. Pelo contrário, tal como acontece com o seu petróleo (de tipo pesado), falta-lhe a tecnologia para refinar e certificar o ouro. Em ambos os casos, a escassez e a obsolescência dos recursos tecnológicos implica uma perda de retorno, que fica nas mãos de outros. Parte importante do ganho está associada às operações de refinação e de transformação.
Ao mesmo tempo, há um grave problema ambiental que a exploração desses recursos levanta. O Governo de Nicolás Maduro criou em 2016 a Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional Arco Mineiro do Orenoco. Anteriormente, tinha já criado a Faixa Petrolífera do Orenoco na margem Norte do rio. Importa notar que o Orenoco é um dos grandes rios da América do Sul e do mundo, com a terceira maior bacia hidrográfica do continente americano. A exploração dos recursos minerais e petrolíferos afecta, de forma directa ou indirecta, todo o ecossistema da região. Num planeta já cheio de problemas ecológicos e com a deflorestação da Amazónia a ocorrer mesmo lado, no Brasil, a degradação ambiental do Orenoco é mais um caso para grave preocupação.
3. No caso do petróleo, a China — e ultimamente a Rússia, via Rosneft, a empresa petrolífera estatal — são os dois maiores amigos (de conveniência) dos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Sucederam assim ao vazio deixado pelo “império” — os EUA — no controlo, directo ou indirecto, da economia venezuelana (a soberania é uma miragem). Cada uma à sua maneira tem retirado vantagens da situação económica e política conturbada na Venezuela, em compras ao desbarato, a troco de um vital financiamento em divisas.
Se essa parte é bem conhecida a nível internacional, já a venda do ouro passa mais despercebida. As sanções económicas que foram impostas pelos EUA dificultaram a sua venda nos mercados internacionais. Aqui, a solução alternativa foi encontrada por Nicolás Maduro no Médio Oriente. Costuma afirmar-se que a necessidade aguça o engenho. No Médio Oriente — Turquia incluída —, isso parece ser bastante comprovável. Existe aí uma especial criatividade para evadir sanções económicas e financeiras, contornando mecanismos legais internacionais.
A Turquia parece ser um dos Estados que se especializou nessa área, sobretudo durante a era Erdogan. Lucrativos negócios parecem ter-se desenvolvido para tornear as sanções aos fluxos financeiros oriundos de países árabes, suspeitos de financiar o islamismo-jihadista após o 11 de Setembro de 2001. Tal como para contornar as sanções internacionalmente aplicadas ao Irão, devido ao seu programa nuclear. (Estas foram gradualmente eliminadas a partir do Acordo de 2015, embora em 2018 tenha ocorrido um volte-face dos EUA nessa matéria.)
4. É sempre curioso observar a amizade (improvável) entre um conservador-islamista —Recep Tayyip Erdogan ­— e um socialista-revolucionário bolivariano — Nicolás Maduro. O facto de Erdogan ser inimigo de revolucionários secularistas e socialistas (no seu país) — é o caso de Abdullah Öcalan, fundador e do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), detido na prisão — e de Nicolás Maduro ser inimigo frontal da oposição conservadora (interna), que acusa de querer destruir a revolução (e coloca também na prisão) —, não parece causar qualquer perturbação nessa amizade.
A questão é ainda curiosa devido ao facto de a América Latina estar muito afastada das áreas tradicionais de influência da Turquia, centradas no Sudeste europeu, Médio Oriente, Mediterrâneo Sul e Ásia central. A Venezuela, que idolatra a figura Simón Bolívar e se afirma socialista, nada tem a ver em termos históricos e culturais com uma Turquia herdeira do Império Otomano e dominadora, na sua própria lógica imperial e colonial, de outros povos. Aliás, se há alguma proximidade, é exactamente de sentido inverso.
Existe entre os povos balcânicos (gregos, sérvios, montenegrinos, etc.), ou árabes (sírios, libaneses, iraquianos, etc.), dominados pelos otomanos/turcos, que lutaram contra a opressão do Império Otomano, tal como fez Simón Bolívar contra o Império Espanhol na América do Sul, em inícios do século XIX. Não é por acaso que as populações que tipicamente emigraram para a América Latina dos antigos territórios otomanos são árabes cristãos ou de outras minorias da Síria / Líbano. Na Venezuela, há o caso de Tareck El Aissami, o actual Vice-Presidente para a Economia, é de ascendência síria e da minoria herética drusa — o seu pai tinha ligações ao Partido Baath do Iraque de Saddam Hussein. Para além da procura de melhores condições de vida, essas populações fugiam de perseguições religioso-políticas num império islâmico governado pelos sultões turcos/otomanos. Ironia: esse é um modelo que Erdogan admira.
5. No actual contexto político, com Nicolás Maduro a lutar desesperadamente pela sobrevivência do seu regime, Recep Tayyip Erdogan encontrou um Eldorado na Venezuela. A Turquia assegura a refinação e certificação do ouro — a qual deixou de ser efectuada na Suíça —, permitindo evadir as sanções dos EUA. Nada de (a)normal entre aliados da NATO. Em troca, em 2018, exportou para a Venezuela mais de 60 milhões de dólares em alimentos. Este abastecimento assegura a maioria dos produtos alimentares distribuídos pelo Comités Locais de Abastecimento e Produção, um programa governamental de apoio às populações mais carenciadas.
Todavia, a ironia é que a Turquia também não produz muitos desses alimentos. Importa-os de vários outros países para depois os reexportar para a Venezuela, num negócio bastante lucrativo, claro. Ao mesmo tempo, o governo de Nicolás Maduro cedeu quatro milhões de hectares de terra para produção agrícola onde participam empresas turcas.
A Venezuela pode ter um Eldorado no seu território — em ouro e em petróleo —, mas para o cidadão comum essa riqueza vai continuar a ser uma miragem. Uma ilusão mortífera, tal como foi para muitos no passado que, em vez da mítica cidade em ouro, encontraram fome, doenças e morte. Nesta altura, chineses, russos e turcos são os únicos que podem dizer que o Eldorado existe mesmo na Venezuela.
Investigador do IPRI-NOVA
OPINIÃO: Basta de cegueira e hipocrisia sobre a Venezuela
Não há soluções quimicamente puras para ultrapassar becos sem saída.
VICENTE JORGE SILVA             PÚBLICO, 3 de Fevereiro de 2019
Como madeirense sinto-me particularmente sensível ao destino de muitos milhares dos meus conterrâneos e seus descendentes que vivem a maior encruzilhada das suas vidas na Venezuela (ou de regresso forçado à terra natal). Entre ontem – dia de manifestações porventura decisivas contra a ditadura de Maduro – e o início da próxima semana – quando uma parte significativa dos países europeus, incluindo Portugal, deverão reconhecer Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela – o futuro desses meus conterrâneos vai confundir-se, como nunca até agora, com o futuro do principal destino da emigração madeirense ao longo de muitas décadas. Mas essa encruzilhada ultrapassa, de longe, uma esfera de proximidade territorial e afectiva, para envolver questões tão dramáticas como a de saber se um país exposto a condições de vida cada vez mais insuportáveis e a um regime ferozmente opressivo pode aspirar a eleições livres e democráticas sem cair numa sangrenta guerra civil. É isso, de facto, que se joga por estes dias na Venezuela, mas o que ali se passar irá ter reflexos fora das suas fronteiras e num xadrez geopolítico onde se confrontam, indirectamente, as maiores potências mundiais.
O facto de Guaidó ser apoiado por Trump, com quem terá acertado a sua fulgurante entrada em cena, parece explicar a recusa de algumas forças políticas em reconhecer a sua legitimidade como Presidente interino da Venezuela. Só que há aqui uma grande dose de má-fé, incurável cegueira ideológica (é o caso do PCP) e crónica hipocrisia política (caso do Bloco de Esquerda), já que Guaidó, para além das reservas que possa suscitar, é a única alternativa que existe a Maduro – um déspota destituído de legitimidade democrática – e a única garantia de realização de eleições livres naquele país.
Guaidó intitula-se Presidente interino precisamente porque representa um Parlamento saído de um acto legislativo legítimo que Maduro e a respectiva trupe se recusaram a aceitar – e a sua autoridade transitória é a única que resta para proporcionar a convocação de eleições. Se o PCP, refém irremediável dos seus eternos reflexos "anti-imperialistas", é definitivamente um caso perdido, já o Bloco padece da clássica postura de Pilatos, lavando as mãos quando se coloca a necessidade de escolher entre duas alternativas que não correspondem à sua enviesada perspectiva "politicamente correcta". Qual seria então a possibilidade de convocar eleições livres – como advoga também o Bloco –, se não houver alguém que protagonize essa possibilidade além de Guaidó? Não se trata, contrariamente ao que pretendem os bloquistas, de reconhecer a mera legitimidade de Guaidó como Presidente interino mas o seu papel como único protagonista da convocação desse acto eleitoral.
Guaidó não poderia avançar se não tivesse apoio americano? Qual seria então a alternativa? A de deixar a situação venezuelana apodrecer até ao caos e desespero absolutos? Eis um exemplo de que, por vezes, não há soluções quimicamente puras para ultrapassar becos sem saída. Para já é imperativo que Maduro saia de cena e, depois, que a Venezuela possa reencontrar-se com a democracia e se levem a cabo programas de governo que respondam minimamente às aspirações de um povo desesperado.
COMENTÁRIOS
Darktin, Anti Comunistas da Extrema-Direita03.02.2019: Qual é a inflação anual da Venezuela actualmente? E nos últimos 5 anos? E para 2019 o que está previsto? Quantos milhares de milhões de euros a Venezuelana neste momento deve à Rússia, à China e à Turquia? Quanto custa um rolo de papel higiénico? Qual é o salário mínimo? Quanto ganha um soldado? Quanto ganha um general? Quanto ganha um médico? Quantos venezuelanos fugirem do país nos últimos anos? Qual é a taxa de importação de bens da Venezuela? Qual é a taxa de exportação? Qual é ordem de produção de petróleo em relação ao que era em 1950? Qual é o lucro per capita em relação a 1920 São perguntas objectivas e simples que devem ajudar a todos, a qualquer um, perceber o que se passa na Venezuela com Maduro.
martins.ruijorge, Quinta do Anjo04.02.2019: Penso que sobre essas e outras questões posso ter opinião. Tenho opinião. Mas quem lhes deve responder é o povo Venezuelano e só ele. Não me parece que não haja condição de discussão e de manifestação. Provam-no as manifestações e os discursos de todos os intervenientes, que se têm sucedido nos últimos dias a desmentir gritantemente a fábula da ditadura. O que não é admissível é uma manobra desta magnitude de ingerência na livre condição de decisão de um país e um povo soberano. Se os venezuelanos quiserem correr do Maduro fá-lo-ão, assim como se quiserem correr do Guaidó e rechaçar o golpe de estado que este prossegue, também o poderão fazer. Nem EUA nem UE têm qualquer legitimidade para intervir à margem do direito internacional e das Nações Unidas.

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