sábado, 2 de fevereiro de 2019

Conta-gotas semanal



O Brexit na lição de História. E o tal cheirinho d’ OS MAIAS, que não nos educou:

OPINIÃO:    Diário


A alma nacional coçou-se durante toda a semana a propósito de um incidente no bairro da Jamaica. Parece que ninguém olhou bem para o vídeo.
VASCO PULIDO VALENTE       PÚBLICO, 2 de Fevereiro de 2019
26 de Janeiro
Dissertando sobre a Caixa Geral de Depósitos, Raquel Varela garantiu à nação que o “regabofe” só acabava “com um movimento popular”. Esta senhora, altamente laureada, escreveu uma tese de doutoramento em que prova que o Partido Comunista traiu a revolução em 1975.
27 de Janeiro
A alma nacional coçou-se durante toda a semana a propósito de um incidente no bairro da Jamaica. Depois de uma repulsiva exibição de virtude dos políticos e dos comentadores, e de um insólito acto de striptease do primeiro-ministro, chegou-se à conclusão que a direita estava com a polícia e a esquerda com as vítimas.
Parece que ninguém olhou bem para o vídeo. Perguntas: qual foi exactamente o pedido de socorro que a polícia recebeu? Por que razão decidiu mandar uma carrinha com meia dúzia de agentes para o bairro da Jamaica? Qual era a missão? A força era suficiente para a missão, caso ela existisse? Há ou não há procedimentos estabelecidos para situações como esta? Quem comandava no terreno, se é que havia um comando no terreno? Como se explica a desordem do grupo de intervenção que, a julgar pelo vídeo, andava disperso pelas ruas a bater em negros ou a correr atrás deles sem nenhum objectivo perceptível?
Bem sei o que a polícia responderia: não tem “meios”, nem “condições”. De facto o Estado paga mal, não investe em equipamento, nem toma a sério as carreiras da profissão. Este Governo manifestamente abandonou a PSP a favor de outras partes do funcionalismo que rendem mais votos. Em última análise, o que aconteceu foi isto: cinco ou seis polícias sem direcção e sem ordem, abandonados num meio hostil, reagiram com a brutalidade da indisciplina e do acaso.
28 de Janeiro
Artigo de Ana Rita Bessa sobre o Serviço Nacional de Saúde. Diz tudo o que há a dizer sobre os planos do PC, do Bloco e do sr. Pedro Nuno Santos. Os demagogos da Esquerda precisam de comprar um bibe e de ir para a escola.
29 de Janeiro
A crise do "Brexit" não é nova, mas talvez seja a última de uma longa história. A Inglaterra nunca se deu bem com o Continente, como lá se diz, ou com a “Europa”, como hoje se diz. Os seus heróis são os que lutaram contra a França ou contra a Áustria e a Alemanha, e os que simbolizam a vocação universal da Inglaterra: Henrique V, Drake, Raleigh, Marlborough, Nelson, Wellington, Churchill e, acima de todos, Shakespeare, o símbolo da língua. A Inglaterra está na Europa e, ao mesmo tempo, não pertence à Europa, como De Gaulle muito bem viu quando a não deixou entrar no Mercado Comum.
O "Brexit" só pode ser um verdadeiro "Brexit" sem nenhum acordo com a Europa. A Inglaterra só pode ser um membro da União Europeia se desistir de ser a cabeça dos 53 países da Commonwealth. E só pode ser a cabeça da Commonwealth se desistir de ser membro da União Europeia. Não há meio caminho, não há compromisso, não há cedência, não há referendo que lhe valha, como não havia no tempo do Império Britânico. Ou os perigos do mundo, ou a mediocridade francesa de Bruxelas.
30 de Janeiro
Ana Gomes está muito angustiada porque Ricardo Salgado pode escapar à prisão e, em vez disso, ir todo lampeiro “para o jazigo da família”. Palavras para quê?
31 de Janeiro
Toda a gente pede dinheiro ao Estado e o Estado, na pessoa de Centeno, não dá o dinheiro que lhe pedem. Extraordinariamente, no meio da gritaria, o Governo não usa o melhor argumento a seu favor: a moeda. Se o euro desaparecesse e voltasse o escudo, um governo autenticamente socialista da dra. Mariana Mortágua, de Joana Mortágua, de Catarina Martins, de Ricardo Robles, de Jerónimo de Sousa e de João Galamba poderia com facilidade satisfazer Portugal em peso imprimindo dinheiro, e depressa iríamos todos de felicidade em felicidade até à miséria da Venezuela. O Orçamento equilibrado é o preço que nós pagamos para ter o euro.
1 de Fevereiro
Os papalvos que por aí andam com sapatos em bico deviam ler o último capítulo d’Os Maias.
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Texto de apoio:
«…Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flores na lapela, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava com a bengala. E eles iam, repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito, como mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic. Carlos pasmava. Que faziam, ali, ás horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, OS MAIAS 509 arejavam um cãosinho felpudo. O que atraia pois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos... - Isto é fantástico, Ega! Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta; - imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do alfinete. Por seu lado o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estilo precioso e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução; - imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que vêem os europeus de lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem imensamente civilizados e imensamente brancos... Carlos ria: - De modo que isto está cada vez pior... - Medonho! É dum reles, dum postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos! Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, num gesto lento: - Resta aquilo, que é genuíno... E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas ressequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas OS MAIAS 510 vivendas eclesiásticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades de opa atulhando os adros, erva doce juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada ás esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o castelo, sórdido e tarimbeiro, de onde outrora, ao som do hino tocado em fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por ele, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, caquética e caturra, a velha Lisboa fidalga! Ega olhou um momento, pensativo: - Sim, com efeito, é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se há de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda pior! …» (OS MAIAS, cap. XVIII)

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