Dois artigos de João Miguel Tavares comprovativos de um
pensamento justo, ao pretender chamar a atenção para o nosso comportamento, de
apatia e desinteresse relativamente ao conhecimento das glórias da nossa
História nacional – neste caso, uma figura da ex-pátria portuguesa
intercontinental, que cumpriu o seu dever de militar com uma dedicação que lhe
mereceu vários galardões, devidamente atribuídos, quando ainda não haviam
surgido os entusiasmos de um Abril de vendaval nos conceitos, justificador das
muitas cobardias perpetradas, numa guerra que pretendia defender a nação
pluricontinental, que nos restara de esforço antigo.
Hoje, já – talvez – mais desfeitos
os nós da nossa aversão por nós próprios, não se nos dá que as tropas
portuguesas vão defender terras que nos não pertençam. Neste momento
gloriosamente atacadas na República-Centro-Africana,
ao serviço das Nações Unidas, decerto que confortavelmente indemnizadas nos
seus esforços proteccionistas das populações africanas indefesas, ainda que
empunhando criminosas armas de guerra, que deixarão de significar crime, para o
major Vasco Lourenço e afins.
Marcelino da Mata, informa JMT, foi um herói medalhado, feito “Cavaleiro
da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem honorífica do
país” e a gente desconhece isso. Mas o importante é que esteja bem,
neste país que respeita Eusébio e
ignora Marcelino, só porque o
futebol conta mais.
I – UMA BIOGRAFIA: MARCELINO DA MATA
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Marcelino da Mata CvTE •
3 MPCG • MSCG • MTCG (Ponte Nova, Guiné, 7 de Maio de 1940) é um Tenente-Coronel na
reserva do Exército Português, nascido na Guiné Portuguesa, conhecido pelos seus actos de
bravura e heroísmo praticados durante a Guerra
Colonial, em 2412 operações de comandos, e que lhe dão o título de militar
português mais condecorado da História do Exército Português.
Acidentalmente
incorporado em lugar do irmão no CIM-Bolama em 3 de Janeiro de 1960, ofereceu-se como
voluntário após cumprir a primeira incorporação.
Integrou
e foi fundador da tropa de operações
especiais, no Regimento dos Comandos Português,
dos Comandos Africanos actuando
no cenário de guerra da sua Guiné, com operações no Senegal e
na Guiné Conacri.
A
2 de Julho de 1969 foi feito Cavaleiro da Ordem
Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
Apesar
de várias vezes ferido em combate apenas teve que ser evacuado da Guiné por ter
sido alvejado, por acidente, por um companheiro, assistindo ao 25 de Abril de 1974 em Lisboa.
Após
a independência da Guiné foi
proibido de entrar na sua terra natal.
Em 1975 foi detido
no quartel do RALIS, Lisboa, e sujeito a tortura e flagelação praticada e
ordenada por Manuel
Augusto Seixas Quinhones de Magalhães(capitão), Leal de Almeida (Tenente
Coronel), João Eduardo da Costa
Xavier (capitão tenente) e outros elementos do MRPP [3] [4] [5], num
dos episódios mais pungentes, pela sua barbaridade e violência, de toda a revolução dos cravos.
No
decurso das perseguições de que foi alvo no ano de 1975 conseguiu fugir
para Espanha,
de onde regressou a quando o Golpe de 25 de Novembro,
participando activamente na reconstrução democrática e no restabelecimento da
ordem militar interna, agindo sempre com elevada longanimidade para com os seus
opressores.
Justificou
a sua luta no exército português com a frase "A Guiné para os
Guinéus", querendo significar que a guerrilha actuava no interesse
da União Soviética.
Actualmente
reside em Sintra.
II - OPINIÃO
Marcelino da Mata, o racismo e a memória
A relação de Portugal com os habitantes
das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 31 de Janeiro de 2019
A propósito
de toda esta história do racismo em Portugal e das declarações de António
Costa sobre a cor
da sua pele, li há dias um curioso artigo de Camilo Lourenço
no Jornal de Negócios onde a certa altura ele dizia isto: “Portugal
não é um país racista; é um país onde isoladamente acontecem casos de racismo.
Aliás, seria estranho qualificar de racista um país que tem governantes
oriundos das ex-colónias (já olharam para a ascendência de Marcelo?), o
primeiro negro (Mário Coluna) a capitanear uma selecção europeia e um negro
como militar mais condecorado da sua História…”
Como
os caros leitores sabem, na última
semana houve imensa gente a classificar-me como um tipo ignorante.
Aquela frase de Camilo Lourenço confirmou isso mesmo: eu não fazia a menor
ideia de que o militar mais condecorado da nossa História fosse negro. Estou
a falar de Marcelino da Mata. Embora já tivesse encontrado referências ao
seu nome a propósito da guerra em África, onde foi o oficial mais destacado dos
comandos guineenses, desconhecia o número das suas condecorações. Ora, entre
1966 e 1973, Marcelino da Mata recebeu duas medalhas de 1ª classe, duas
medalhas de 2ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de Guerra, e foi feito
Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem
honorífica do país.
Segundo sei, Marcelino da Mata tem 78
anos e continua vivo, a residir em Portugal. Teve a sorte de escapar com vida
da Guiné (ao contrário de inúmeros elementos africanos das forças especiais
portuguesas, que foram abandonados pelo Exército e acabaram fuzilados pelo
PAIGC), mas teve o azar de cair nas mãos de militares de extrema-esquerda no
pós-25 de Abril, acabando barbaramente torturado no quartel do RALIS (sim,
houve muita tortura nos primeiros tempos da democracia portuguesa). Felizmente,
conseguiu fugir para Espanha, tendo regressado a seguir ao 25 de Novembro.
Promovido
por distinção a capitão do Exército Português, graduado em tenente-coronel,
no ano passado falou-se da sua promoção a major. Vasco
Lourenço opôs-se a essa promoção num artigo aqui no PÚBLICO, intitulado “A
Guerra Colonial ainda não acabou?”. Argumentava Vasco Lourenço que Marcelino da
Mata fora responsável por vários crimes de guerra (“resultado da acção de
autênticos assassinos”), que constituíam “uma enorme vergonha para o Portugal
de Abril”.
É
muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exactidão quais
foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber: não há qualquer
biografia de Marcelino da Mata. Nenhum filme. Nenhum documentário. Sei que não
vivemos nos Estados Unidos da América, mas bolas, deveria haver limites para a
nossa falta de sensibilidade histórica e jornalística.
Pensem
comigo: o militar português mais condecorado de todos os tempos é negro; esteve
na guerra colonial; há testemunhas a dizer que cometeu crimes de guerra; há
testemunhas a dizer que foi torturado em 1975; ficou com sequelas graves; está
vivo; mora em Sintra. E, pelos vistos, ninguém acha que isto é uma história
incrível. Como é possível?
Camilo
Lourenço tem razão: a relação de Portugal com os habitantes das suas antigas
colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica. Se está mais do que
demonstrado que o racismo está ligado ao medo do outro e ao desconhecido,
talvez possamos começar por aqui: aprender alguma coisa sobre a história dos
negros que marcaram a nossa História. Alguém entreviste este homem, se faz
favor.
III – OPINIÃO
Os donos da
História de Portugal
Uma das razões por que não há nada sobre
Marcelino da Mata prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva,
que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 9 de Fevereiro de 2019
O
meu artigo sobre Marcelino da Mata deu origem a várias reacções, entre as quais
as de Vasco Lourenço, aqui no PÚBLICO,
e a de Manuel Carvalho da Silva, no Jornal de Notícias. Ambos aproveitaram para fazer referências jocosas à minha nomeação
para presidir ao 10 de Junho (Vasco Lourenço, engraçadíssimo: “Confio que
não tenha a tentação de promover qualquer farsa semelhante a essas jornadas de
Salazar e Caetano!”), um divertimento pícaro por esta altura já demasiado
batido, e ambos fizeram um grande esforço para tresler tudo aquilo que escrevi.
Ainda assim, e apesar de a luta ser renhida, a escolher um vencedor no
campeonato da desonestidade intelectual ele teria de ser Carvalho da Silva:
conseguiu confundir citações com afirmações, suposições com factos e concluir
que transformei “a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo”. É obra.
Reparem: como qualquer pessoa com a
quarta classe poderá verificar, o meu texto sobre Marcelino da Mata tinha como
argumento a necessidade de conhecer o papel dos africanos na História de Portugal,
dando como exemplo a sua extraordinária história de vida, desconhecida da
generalidade do público. Em qualquer país civilizado já haveria uma série de
televisão, dois filmes, três livros e quatro documentários sobre Marcelino da
Mata. Em Portugal, não há nada. E uma das razões por que não há nada prende-se
com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem o campo da
História com os seus quintais ideológicos.
O país está cheio de donos da
História de Portugal, prontos a distribuírem reguadas por quem se atreve a sair
da linha oficial. Como é óbvio, é possível que Marcelino da Mata tenha sido um
herói de guerra, é possível que tenha sido um criminoso de guerra, e é até
possível que tenha sido ambas as coisas, em momentos diferentes. Mas o meu
texto nem sequer era sobre isso. Era sobre o desconhecimento generalizado de
uma figura absolutamente invulgar, e sobre o que isso diz sobre o nosso
lastimável trabalho de memória. Foi um herói? Contem-me. Foi um criminoso?
Contem-me também.
Há
dias comprei o livro de Irene Flunser Pimentel Os Cinco Pilares da PIDE. O
capítulo introdutório intitula-se “Por que apresentar biografias de
torturadores da PIDE/DGS?”. A autora afirma aí que quando publicou a biografia
do inspector Fernando Araújo Gouveia foi criticada por estar “a dar importância
ou até a enaltecer um torturador”, pois muitos consideraram que quem cometeu
“actos de violência sobre presos políticos deveria ser remetido ao silêncio”.
Recordar tais vidas – diziam – faria sofrer as vítimas. O argumento é
estapafúrdio, mas Pimentel leva-o a sério, dando-se ao trabalho de explicar
pacientemente que não, que não é assim, que escrever sobre um torturador até
“contribui para denunciá-lo”, e patati patatá, como se os seus leitores
estivessem no jardim-escola, e Hannah Arendt não tivesse escrito sobre
Eichmann, Ian Kershaw sobre Hitler ou Robert Conquest sobre Estaline.
O
problema não está nas explicações de Irene Pimentel, que estão certas. O
problema está no facto de ter sentido necessidade de explicar-se. Essa
necessidade demonstra bem o paternalismo na abordagem da História
contemporânea, com um bando de historiadores armados em mestre-escola,
empenhadíssimos no devido enquadramento das almas, não vá alguma delas
lembrar-se de ressuscitar o cadáver de Salazar. Por amor da santa. Uma história
é uma história é uma história. É para ser contada. Não é para ser pregada.
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