segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Em foco: MARCELINO DA MATA



Dois artigos de João Miguel Tavares comprovativos de um pensamento justo, ao pretender chamar a atenção para o nosso comportamento, de apatia e desinteresse relativamente ao conhecimento das glórias da nossa História nacional – neste caso, uma figura da ex-pátria portuguesa intercontinental, que cumpriu o seu dever de militar com uma dedicação que lhe mereceu vários galardões, devidamente atribuídos, quando ainda não haviam surgido os entusiasmos de um Abril de vendaval nos conceitos, justificador das muitas cobardias perpetradas, numa guerra que pretendia defender a nação pluricontinental, que nos restara de esforço antigo.
Hoje, já – talvez – mais desfeitos os nós da nossa aversão por nós próprios, não se nos dá que as tropas portuguesas vão defender terras que nos não pertençam. Neste momento gloriosamente atacadas na República-Centro-Africana, ao serviço das Nações Unidas, decerto que confortavelmente indemnizadas nos seus esforços proteccionistas das populações africanas indefesas, ainda que empunhando criminosas armas de guerra, que deixarão de significar crime, para o major Vasco Lourenço e afins.
Marcelino da Mata, informa JMT, foi um herói medalhado, feito “Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem honorífica do país” e a gente desconhece isso. Mas o importante é que esteja bem, neste país que respeita Eusébio e ignora Marcelino, só porque o futebol conta mais.

I – UMA BIOGRAFIA: MARCELINO DA MATA
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Marcelino da Mata CvTE • 3 MPCG • MSCG • MTCG (Ponte NovaGuiné7 de Maio de 1940) é um Tenente-Coronel na reserva do Exército Português, nascido na Guiné Portuguesa, conhecido pelos seus actos de bravura e heroísmo praticados durante a Guerra Colonial, em 2412 operações de comandos, e que lhe dão o título de militar português mais condecorado da História do Exército Português.
Acidentalmente incorporado em lugar do irmão no CIM-Bolama em 3 de Janeiro de 1960, ofereceu-se como voluntário após cumprir a primeira incorporação.
Integrou e foi fundador da tropa de operações especiais, no Regimento dos Comandos Português, dos Comandos Africanos actuando no cenário de guerra da sua Guiné, com operações no Senegal e na Guiné Conacri.
A 2 de Julho de 1969 foi feito Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
Apesar de várias vezes ferido em combate apenas teve que ser evacuado da Guiné por ter sido alvejado, por acidente, por um companheiro, assistindo ao 25 de Abril de 1974 em Lisboa.
Após a independência da Guiné foi proibido de entrar na sua terra natal.
Em 1975 foi detido no quartel do RALIS, Lisboa, e sujeito a tortura e flagelação praticada e ordenada por Manuel Augusto Seixas Quinhones de Magalhães(capitão), Leal de Almeida (Tenente Coronel), João Eduardo da Costa Xavier (capitão tenente) e outros elementos do MRPP [3] [4] [5], num dos episódios mais pungentes, pela sua barbaridade e violência, de toda a revolução dos cravos.
No decurso das perseguições de que foi alvo no ano de 1975 conseguiu fugir para Espanha, de onde regressou a quando o Golpe de 25 de Novembro, participando activamente na reconstrução democrática e no restabelecimento da ordem militar interna, agindo sempre com elevada longanimidade para com os seus opressores.
Justificou a sua luta no exército português com a frase "A Guiné para os Guinéus", querendo significar que a guerrilha actuava no interesse da União Soviética.
Actualmente reside em Sintra.

II - OPINIÃO
Marcelino da Mata, o racismo e a memória
A relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 31 de Janeiro de 2019
A propósito de toda esta história do racismo em Portugal e das declarações de António Costa sobre a cor da sua pele, li há dias um curioso artigo de Camilo Lourenço no Jornal de Negócios onde a certa altura ele dizia isto: “Portugal não é um país racista; é um país onde isoladamente acontecem casos de racismo. Aliás, seria estranho qualificar de racista um país que tem governantes oriundos das ex-colónias (já olharam para a ascendência de Marcelo?), o primeiro negro (Mário Coluna) a capitanear uma selecção europeia e um negro como militar mais condecorado da sua História…
Como os caros leitores sabem, na última semana houve imensa gente a classificar-me como um tipo ignorante. Aquela frase de Camilo Lourenço confirmou isso mesmo: eu não fazia a menor ideia de que o militar mais condecorado da nossa História fosse negro. Estou a falar de Marcelino da Mata. Embora já tivesse encontrado referências ao seu nome a propósito da guerra em África, onde foi o oficial mais destacado dos comandos guineenses, desconhecia o número das suas condecorações. Ora, entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata recebeu duas medalhas de 1ª classe, duas medalhas de 2ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de Guerra, e foi feito Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem honorífica do país.
Segundo sei, Marcelino da Mata tem 78 anos e continua vivo, a residir em Portugal. Teve a sorte de escapar com vida da Guiné (ao contrário de inúmeros elementos africanos das forças especiais portuguesas, que foram abandonados pelo Exército e acabaram fuzilados pelo PAIGC), mas teve o azar de cair nas mãos de militares de extrema-esquerda no pós-25 de Abril, acabando barbaramente torturado no quartel do RALIS (sim, houve muita tortura nos primeiros tempos da democracia portuguesa). Felizmente, conseguiu fugir para Espanha, tendo regressado a seguir ao 25 de Novembro.
Promovido por distinção a capitão do Exército Português, graduado em tenente-coronel, no ano passado falou-se da sua promoção a major. Vasco Lourenço opôs-se a essa promoção num artigo aqui no PÚBLICO, intitulado “A Guerra Colonial ainda não acabou?”. Argumentava Vasco Lourenço que Marcelino da Mata fora responsável por vários crimes de guerra (“resultado da acção de autênticos assassinos”), que constituíam “uma enorme vergonha para o Portugal de Abril”.
É muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exactidão quais foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber: não há qualquer biografia de Marcelino da Mata. Nenhum filme. Nenhum documentário. Sei que não vivemos nos Estados Unidos da América, mas bolas, deveria haver limites para a nossa falta de sensibilidade histórica e jornalística.
Pensem comigo: o militar português mais condecorado de todos os tempos é negro; esteve na guerra colonial; há testemunhas a dizer que cometeu crimes de guerra; há testemunhas a dizer que foi torturado em 1975; ficou com sequelas graves; está vivo; mora em Sintra. E, pelos vistos, ninguém acha que isto é uma história incrível. Como é possível?
Camilo Lourenço tem razão: a relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica. Se está mais do que demonstrado que o racismo está ligado ao medo do outro e ao desconhecido, talvez possamos começar por aqui: aprender alguma coisa sobre a história dos negros que marcaram a nossa História. Alguém entreviste este homem, se faz favor.
III – OPINIÃO
 Os donos da História de Portugal
Uma das razões por que não há nada sobre Marcelino da Mata prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 9 de Fevereiro de 2019
O meu artigo sobre Marcelino da Mata deu origem a várias reacções, entre as quais as de Vasco Lourenço, aqui no PÚBLICO, e a de Manuel Carvalho da Silva, no Jornal de Notícias. Ambos aproveitaram para fazer referências jocosas à minha nomeação para presidir ao 10 de Junho (Vasco Lourenço, engraçadíssimo: “Confio que não tenha a tentação de promover qualquer farsa semelhante a essas jornadas de Salazar e Caetano!”), um divertimento pícaro por esta altura já demasiado batido, e ambos fizeram um grande esforço para tresler tudo aquilo que escrevi. Ainda assim, e apesar de a luta ser renhida, a escolher um vencedor no campeonato da desonestidade intelectual ele teria de ser Carvalho da Silva: conseguiu confundir citações com afirmações, suposições com factos e concluir que transformei “a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo”. É obra.
Reparem: como qualquer pessoa com a quarta classe poderá verificar, o meu texto sobre Marcelino da Mata tinha como argumento a necessidade de conhecer o papel dos africanos na História de Portugal, dando como exemplo a sua extraordinária história de vida, desconhecida da generalidade do público. Em qualquer país civilizado já haveria uma série de televisão, dois filmes, três livros e quatro documentários sobre Marcelino da Mata. Em Portugal, não há nada. E uma das razões por que não há nada prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
O país está cheio de donos da História de Portugal, prontos a distribuírem reguadas por quem se atreve a sair da linha oficial. Como é óbvio, é possível que Marcelino da Mata tenha sido um herói de guerra, é possível que tenha sido um criminoso de guerra, e é até possível que tenha sido ambas as coisas, em momentos diferentes. Mas o meu texto nem sequer era sobre isso. Era sobre o desconhecimento generalizado de uma figura absolutamente invulgar, e sobre o que isso diz sobre o nosso lastimável trabalho de memória. Foi um herói? Contem-me. Foi um criminoso? Contem-me também.     
Há dias comprei o livro de Irene Flunser Pimentel Os Cinco Pilares da PIDE. O capítulo introdutório intitula-se “Por que apresentar biografias de torturadores da PIDE/DGS?”. A autora afirma aí que quando publicou a biografia do inspector Fernando Araújo Gouveia foi criticada por estar “a dar importância ou até a enaltecer um torturador”, pois muitos consideraram que quem cometeu “actos de violência sobre presos políticos deveria ser remetido ao silêncio”. Recordar tais vidas – diziam – faria sofrer as vítimas. O argumento é estapafúrdio, mas Pimentel leva-o a sério, dando-se ao trabalho de explicar pacientemente que não, que não é assim, que escrever sobre um torturador até “contribui para denunciá-lo”, e patati patatá, como se os seus leitores estivessem no jardim-escola, e Hannah Arendt não tivesse escrito sobre Eichmann, Ian Kershaw sobre Hitler ou Robert Conquest sobre Estaline.
O problema não está nas explicações de Irene Pimentel, que estão certas. O problema está no facto de ter sentido necessidade de explicar-se. Essa necessidade demonstra bem o paternalismo na abordagem da História contemporânea, com um bando de historiadores armados em mestre-escola, empenhadíssimos no devido enquadramento das almas, não vá alguma delas lembrar-se de ressuscitar o cadáver de Salazar. Por amor da santa. Uma história é uma história é uma história. É para ser contada. Não é para ser pregada.  

Nenhum comentário: