segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

“Tout passe… et tout se remplace”



A crónica de José Pacheco Pereira sobre os novos ideais “marxistas” que escolheram “causas fracturantes e identitárias” em substituição das da filosofia inicial, da luta de classes entre capitalistas e trabalhadores com base numa maior aproximação igualitária entre os homens, mereceu a repulsa de Luís Fazenda, embora admirador de JPP por princípio, mas vindo à liça para pugnar pela sua dama, que entende as causas fracturantes e identitárias como pertencentes à mesma virtude ideológica que enquadrou os explorados e humilhados dos ideais marxistas de outrora. JPP, para mais, adverte suavemente os seus parceiros não mais marxistas, identificando-os com os associados da Direita radical portuguesa também virtuosamente defensora de causas mais antigas, como nacionalismos, valores familiares e convencionalismos a resvalar para os laçarotes cor-de-rosa nas meninas e os bibes azuis nos meninos. JPP chama a atenção dos seus, “não mais parceiros de luta” - no repúdio natural de intelectual que se preza – para esses efeitos perversos de emparelhamento com uma direita de virtudes arcaicas, mais que ressabiadas.
O certo é que a crónica de JPP me parece um autêntico tratado de saber e de inteligência crítica.
OPINIÃO
A esquerda “identitária” diz adeus a Marx
A nação não conta, a religião não conta, a classe social conta cada vez menos, mas a raça, a cor, o sexo e o género contam muito, quase tudo.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 26 DE JANEIRO DE 2019
Uma parte importante da nossa esquerda radical, a das “causas fracturantes” e “identitárias”, mesmo quando se presume de marxista, abandonou há muito aspectos essenciais da interpretação marxista do mundo, em particular a ideia central de que é a relação de exploração entre o capital e o trabalho que define a forma actual da luta de classes. Ou seja, que há inscrito no capitalismo uma relação de exploração que só se elimina com a abolição da propriedade privada pela revolução. Não é uma pequena coisa, é o núcleo central da sua teoria, que Marx considerava ser “científica”.
Fê-lo, porque considerou que a teoria marxista estava ultrapassada e não correspondia às características da sociedade contemporânea, em particular àquilo a que se chama o mundo “pós-industrial”? Se fosse assim, poderia ter um ponto, mas não foi assim. Foi por uma deriva que os clássicos do marxismo (e, by the way, Cunhal e o PCP) classificariam com pouca ironia de “pequeno-burguesa”, com uma forte componente intelectual, mediática, de moda, do radical chic, que acompanha o progressivo abandono da sua relação com a tradicional base social da esquerda no mundo operário e nos sindicatos.
Resumindo de forma simplificada: a nação não conta, a religião não conta, a origem social não conta, a condição social não conta, a classe social conta cada vez menos, mas a raça, a cor, o sexo e o género contam muito, quase tudo. Essa política de “identidades” foi uma das responsáveis pelo desastre do Partido Democrático nos EUA nas eleições presidenciais de 2016, quando Hillary Clinton falava para as mulheres, os latinos, os LGBT, etc., etc., e Donald Trump falava para os americanos. Nós sabemos que Trump falava para os brancos e para os ricos, mais do que para os americanos e para os pobres, mas as palavras, o discurso e a retórica têm em democracia muito valor, inclusive para acabar com ela. E Trump nos EUA, e muitos dos mais reaccionários movimentos europeus, como a FN, ou os movimentos anti-imigração alemães, assim como os populistas do Leste revelaram capacidade de mobilizar essa base social de apoio que no passado era tida como sendo da esquerda. É verdade que esta era uma afirmação muitas vezes voluntarista, mas correspondia ao cânone do marxismo.
Em Portugal, quando se está num verdadeiro festival político de identidades, neste caso a propósito do racismo, o efeito de ocultação do discurso ideológico “anti-racista” sobre as questões de fundo esbate os problemas sociais, a exclusão, a marginalização. Sem dúvida, a cor da pele conta e agrava, mas as fontes do conflito são sociais antes de serem “identitárias”. Um negro rico, ou académico, ou yuppie, ou consultor financeiro é cada vez menos negro e um negro pobre é cada vez mais negro. Todos têm de lidar com a cor da pele, como os brancos em África, e o racismo é inaceitável, mas só a melhoria da condição social é eficaz para o combater.
E outro efeito das políticas “identitárias” é esconder também os fenómenos associados de deriva criminal, a pequena criminalidade, a receptação, o tráfico de droga, a imitação “identitária” dos gangs dos filmes televisivos, que tem que ver com a “resistência” à polícia. Acaso pensam que a defesa dos bairros, brancos e negros, como “território” em que a polícia não pode entrar é apenas um resultado do ódio à “bófia”? O resultado é que parece que falar disto é ser racista ou defensor da violência policial, ou seja, uma denegação da realidade, coisa que se paga sempre caro.
A política de “identidades” e das “causas fracturantes” foi um processo que facilitou a passagem de grupos revolucionários a reformistas. Para o Bloco de Esquerda não está mal, porque isso facilita a aproximação com o PS, cuja ala esquerda pensa o mesmo. O Bloco rende-se àquilo a que Rosa Luxemburgo chamava “movimento” em detrimento dos “fins”, que considerava a essência do reformismo, ou seja, o abandono da revolução, neste caso a favor de uma miríade de “causas”. Facilita igualmente a integração de grupos anti-racistas, feministas, LGBT, de defesa dos animais, antiespecistas, muitos dos quais são fortemente subsidiados por dinheiros públicos. Eles podem colocar o rótulo de anticapitalista em tudo isto, mas é pouco mais do que um rótulo.
Sendo a política de “identidades” uma forma de reformismo, daí não vem nenhum mal ao mundo. Porém, tem um efeito perverso cujos custos a esquerda ainda não percebeu que está a e vai pagar: é fazer espelho com a outra política de “causas” da direita radical, os movimentos antiaborto e anti-imigrantes, a islamofobia a favor da “civilização cristã”, a mulher dona de casa, o anti-intelectualismo, a defesa dos valores “familiares”, o lobby pró-armas nos EUA, ou “as meninas são de cor-de-rosa e os rapazes de azul” dos Bolsonaros, os pró-tourada, os homofóbicos, etc. Acantonados nas suas “causas”, cada uma reforça a outra, o SOS Racismo dá forças ao PNR e vice-versa, e fora do “meio” destes confrontos, a nova direita “alt-right” ganha sempre mais força, porque é capaz de transformar isto tudo num discurso global através do populismo e a esquerda não.
Colunista  Sociólogo
OPINIÃO
Os espelhos de Pacheco Pereira
Não foi a esquerda "fracturante" quem abriu as portas ao avanço da extrema-direita.
LUÍS FAZENDA
PÚBLICO, 3 de Fevereiro de 2019
Na edição do jornal PÚBLICO de 26 de janeiro de 2019, na sua habitual crónica, José Pacheco Pereira (JPP) elabora um conjunto de comentários ideológicos sobre o Bloco de Esquerda. Respeitar as suas opiniões não significa que se aceitem.
Quando o Bloco atinge 20 anos de existência, conhecemos as análises já longínquas de JPP sobre um partido/movimento diferente dos partidos tradicionais. Análises baseadas num espírito dedutivo fora da realidade que somos, transpondo esquemas preconcebidos do género do "radical chic" e outros dichotes congéneres. Só para registo "identitário", entendemos actuar na leitura da luta política de classes, na exacta razão em que assumimos um projecto socialista. Coisa diversa é tomar a luta sindical e o mundo operário como únicas referências da luta de classes e do universo do trabalho. Estamos nessas e noutras. Basta seguir a intervenção do partido no Parlamento e na rua, conhecer os seus programas, ver as suas articulações externas ou até falar com os seus militantes, muitos deles oriundos da condição precária do emprego a que cada vez mais estão sujeitas as novas gerações.
Que a social-democracia, por todo o lado, tenha abraçado o capitalismo liberal e assumido a competitividade do mercado contra os valores sociais, está demonstrado, bem como o personalismo de holograma de partidos como o PSD. É um acusatório plausível, bastante plausível, reconheça-se. Contudo, incorporar nessa desanda para a direita aqueles que, para além da emancipação do trabalho, lutam pela igualdade de género, pela justiça climática, pela não discriminação em função da classe, sexo ou da etnia, ou da religião, ou da origem, não passa de uma presunção intelectualmente não justificada. Não preciso de usar a ironia do classificativo de pequeno-burguês, a que se refere JPP, para dizer que tresleu Marx sobre a luta política de classes. Marx apontou as dimensões simultâneas, económicas, estaduais, ideológicas e culturais. A luta de classes está em todas estas áreas. Nem tudo se reduz, como é óbvio, à luta de classes mas nada se dissocia dela em última instância. Aquele a quem nada do que era humano lhe era estranho acabou por ser o exemplo de um pensamento transversal sobre a própria História. Todos esses aspectos foram bem sublinhados em dois congressos sobre Marx que o Bloco de Esquerda já realizou. Esta genérica declaração de interesses serve apenas para que não se assuma, pelo silêncio ou omissão, que há algum tipo de rigor ou anuência na "narrativa" de JPP. Convivemos sem ânsias com tiradas sobre reformismo, afinal há alguém de direita que legitimamente não nos proscreve como Cavaco Silva, nem nos demoniza como a CIP. A luta anticapitalista é mais forte quando se juntam lutas diversas sobre vários tipos de opressão que até podem ser coincidentes em muitas pessoas. Do lado de lá está o sistema capitalista patriarcal. Diz JPP, "resumindo de forma simplificada, a nação não conta". Será talvez por isso que reclamamos instrumentos de soberania face aos tratados europeus ou à NATO. Não sei como qualifique este "festival político", para usar o mimo do autor.
Olhe-se ao conteúdo do escrito de Pacheco Pereira, aquilo que funciona como mensagem: será que a razão de classe é apagada pelas "identidades"? Parece que a maioria das pessoas que sofrem na pele o racismo não são burgueses. Não será que juntam à exploração e desigualdade a discriminação étnica, de todas as cores? A mesma pergunta pode ser repetida para quaisquer outras "identidades". Sim, estas lutas têm sido bem importantes na globalização capitalista que atravessamos. Se os percursos das “identidades” se afastam entre si, tal facto não ajuda à luta geral e, por isso, a convergência de todas as identidades é a solução, não o sectarismo ou a anulação das lutas identitárias, a começar pela luta operária. Dizer que a "melhoria da condição social" ajuda a todas as lutas é sempre uma tautologia. Por isso, o Bloco de Esquerda se empenhou na "geringonça", não foi?
Segundo JPP, as lutas "identitárias", lutas sociais profundas e progressivamente causas maioritárias em nome da igualdade democrática, provocam as causas dos fascistas. Estaríamos a fazer espelho para todos os bolsonaros. Cita até, entre outros, o movimento antiaborto. Sempre saudei JPP por ter sido um dos defensores da descriminalização do aborto em Portugal. Estaremos arrependidos disso? Nem creio que JPP esteja. Não devíamos ter legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo? Não devíamos ter despenalizado o consumo de drogas? Não devíamos ter leis abertas sobre imigração e nacionalidade? Não devemos ter leis sérias sobre violência de género? Não se pode achar, como a larga maioria dos jovens, que as touradas são um espectáculo bárbaro? Não podemos discutir o passado colonial? Com certeza que desagradamos aos reaccionários quando melhoramos o estado de direitos e a cultura plural. Isso será razão para abdicarmos de perspectivas progressistas? Se a lógica fosse essa, nem a luta sindical se aguentava. Não faz sentido. Percebe-se que JPP ache que os sectores centristas e liberais passam por um mau bocado, confrontados à extrema-direita e à esquerda, e uma pausa ajudaria à mítica recuperação desse espaço. O desejo é compreensível, mas não se pode exonerar os responsáveis pelo avanço da extrema-direita. Não foi a esquerda "fracturante" quem lhes abriu as portas. Culpar quem luta contra o opressor atinge ao mesmo tempo a condição e a consciência da pessoa oprimida.
COMENTÁRIOS
Tiago Vasconcelos,   Amsterdam  :A esquerda radical portuguesa não pode realmente queixar-se do grande capital. A Sonae dá-lhes tempo de antena, amiúde.
DNG: Infelizmente o que poderia ser uma presença construtiva à esquerda, sem prejuízo da sua identidade mas com maturidade em relação aos dilemas do poder, o BE assumiu o politicamente correcto enquanto linguagem e dispôs-se a ser o megafone sem critério de todos os que reclamam à mesa do orçamento. Escolheram o fácil demagógico. Não querem crescer. Pois bem, fiquem por aí.
João Coutinho Lima,  Arraiolos : O bloco é de extrema-esquerda, com subsídio pequeno burguês dos paizinhos. Aliás nota-se a adesão dos operários das fábricas do norte e dos trabalhadores agrícolas do Alentejo.....

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