Um país manietado e não há, está visto, quem
ponha cobro a isso. Eu hoje ouvi parte das vozes alterosas digladiando-se, no
debate sobre a moção de censura ao governo, naturalmente chumbada, e a voz de
A. Costa impunha-se espingardeando sobre os erros do passado próximo e as
benesses do seu presente a manter. Mas não veio à baila a regionalização. Nem o
resto, que conta José Manuel
Fernandes, sobre a insanidade de tanta arrogância governativa, complementando o
excerto sobre a “regionalização”, de Alfredo Barroso, texto
enviado por Salles da Fonseca. De arrepiar.
Mas deixemo-nos estar, neste ancestral “tudo ao molho e fé em Deus”, apesar dos
avisos da clarividência.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 20.02.19
GOVERNO
«Portugal
é constituído por um só Povo, que fala uma só Língua. Não está dividido por
quaisquer conflitos étnicos ou religiosos. Não tem sequer nenhuma tradição de
administração regional autárquica – a menos que alguém queira tomar como
exemplo, ou termo de comparação, o poder arbitrário e quase absoluto exercido
pelos senhores feudais sobre os camponeses, na Idade Média. ALFREDO BARROSO (JORNAL I)
Os partidos tomaram conta do Estado e
já nem disfarçam. O Estado por sua vez trata de comandar tudo na sociedade,
obsessivamente. Agora já só nos faltava mesmo a regionalização para o saque ser
total
O
que é que faz que os portugueses sejam tão bons como os melhores quando saem de
Portugal e, em Portugal, tudo isto seja sempre a mesma vil e apagada tristeza? Ou
seja, tenhamos qualidades e condições para ser um país rico, mas afundamo-nos
na cauda da Europa, continuando a ser ultrapassados
pelos recém-chegados?
Há
uma explicação simples: tudo neste país está feito para as redes de amigos, não
para os portugueses. Não é mal recente, mas é mal de que todos os dias temos
notícia.
Se
alguma virtude houve nestes anos de geringonça foi tornar claro que nada nem
ninguém escapa à “Lei de Ferro da Oligarquia” descrita pelo sociólogo alemão
Robert Michels na sua célebre e influente obra de 1911,
mas porventura num grau que nem ele imaginou: não só os aparelhos partidários
tomaram conta dos partidos, como os partidos tomaram conta do Estado e dividem
entre si os despojos. Já não há virgens, porque já tivemos Ricardo Robles no
Bloco e temos agora uma avalanche de histórias sobre uma rede vermelha de empresas que parasita
as autarquias do PCP.
Também
deixou de haver pudor: este Governo não tem a menor das preocupações em seguir
as regras da CRESAP e recorre sem decoro à figura do “regime de substituição”
para fazer nomeações permanentes e colocar “boys e girls” como se não houvesse
amanhã. Ao mesmo tempo que isto se passa no topo da administração pública, na
base a operação de “integração dos precários” serviu as clientelas do Bloco e
lugares que deviam ter sido preenchidos por concurso, foram preenchidos… porque
sim. Os nossos partidos são partidos do Estado, porque foi assim que a
nossa democracia nasceu em 1974, e são partidos que ocuparam o Estado, porque
sempre foi essa a sua cultura e velha de séculos a tradição de viver
“encostado à Corte”.
Nestas
décadas de democracia houve camadas que foram sendo colocadas sobre camadas e
camadas sobre mais camadas, e a sofreguidão é infinita. Hoje nos partidos as
carreiras fazem-se entre os lugares no Estado, os lugares políticos (incluindo
as assessorias) e os contratos de fornecimentos de serviços ao Estado. É uma
sarna que infesta a administração e um peso que a paralisa, pois vive a par com
legislação que só existe para justificar a sua existência e complicar a vida dos
cidadãos.
Como
se isto tudo não fosse já suficientemente trágico, querem acrescentar-lhe a
obscenidade da regionalização e, de caminho, já se vão aboletando com o que
podem. Os gerontes do bloco central, que deviam recolher a penates e evitar
sair à rua com vergonha do país que deixam às próximas gerações, apresentam-se
agora como “sábios”, passeiam-se pelas televisões com pacóvios a reverenciá-los
como “senadores”, e tomaram agora conta de uma dita “Comissão Independente para
a Descentralização” que, vejam lá a coincidência, só integra defensores da
regionalização.
A
presidir à coisa está um dos portugueses que mais caro custou ao país nas
últimas décadas, não pela venalidade que outros praticaram (bem pelo contrário,
honra lhe seja prestada), mas pelas políticas desgraçadas que promoveu: João
Cravinho. Basta dizer que foi ele o verdadeiro inventor das SCUTs e que teve um
importante papel nas nacionalizações para termos uma ideia do passivo que
deixou, mas mesmo assim não desarma e continua a ter mão leve quando toca a
passar cheques: agora quer pagar 135 mil euros a Freitas do Amaral para um
estudo sobre regionalização, pretende no total gastar em seis meses de
“estudos” da sua comissão o orçamento de dois anos da Assembleia da República
para esse tipo de trabalhos e, com a arrogância típica dos que se acham pais do
regime, disse ao Expresso que
não aceita que o Parlamento se recusa a pagar as contas que ele acha
“razoáveis”. Perguntar-se-á: mas por alma de quem se atura tal arrogância? A
resposta é simples: os lugares que há para distribuir já não chegam, os
partidos precisam de mais, a “descentralização” foi um número de circo ensaiado
por Costa e Rio que correu mal porque não houve dinheiro para distribuir, pelo
que agora só resta a fuga em frente. O Estado tem de ser maior para aplacar a
sofreguidão dos nossos partidos.
Este
Estado maior de que falamos nem sequer é um Estado com melhores serviços
públicos. É apenas um Estado com mais empregos públicos (que são também mais
votos enquanto as prioridades políticas foram aquelas que têm sido), mais
lugares para distribuir e, o que é porventura ainda mais dramático, um Estado
com mais regulamentos, mais serviços, mais capelinhas, mais labirintos para
percorrer e para abafar a economia produtiva.
Quem
quer que alguma vez na vida tenha tido de tratar do mais simples processo de
licenciamento põe as mãos na cabeça só de ouvir falar de regionalização, pois
sabe que, com mais ou menos conselhos de “sábios”, o resultado final será
sempre mais uma camada de burocratas a complicar a vida dos cidadãos. Sempre
foi isso que aconteceu no passado, porque haveria de ser diferente no futuro? Não,
não vai ser diferente. Porque ao lado dos “amigos” dos partidos, há os “amigos”
dos negócios, os “lá de cima”. Querem um exemplo? Pensem em todos os que estão
naquelas linhas apagadas do relatório da auditoria da Caixa Geral de Depósitos.
Pensem no esforço que tem sido feito para que não se saiba tudo o que se passou
no banco público. Recordem-se de como nesses negócios se misturaram banqueiros,
grandes escritórios de advogados, lideranças partidárias, ministros e ex-ministros,
empresários espertalhaços e por aí adiante, num caldo de cultura que só foi
quebrado pela bancarrota e pela chegada da troika, e mesmo nessa altura certas
lógicas só foram rompidas porque houve um primeiro-ministro que disse não a
quem não estava habituado a ouvir negativas.
Custa
muito ver, mas a verdade é que este circuito dos amigos “de cima” foi abalado
mas está a recuperar, e só não estará de melhor saúde porque a nossa economia
se abriu mais ao exterior e nos bancos já mandam sobretudo espanhóis e
chineses, o que faz muita diferença – para melhor. Os de cá, os do costume,
continuam a achar que é mais seguro contar com o favor dos ministros do que com
o dos clientes.
Este
Governo podia estar a ter a melhor política económica, que não está a ter,
podia não estar a comprometer o SNS, podia não estar a dar cabo da meritocracia
na escola pública, podia não estar a deixar cair aos pedaços a ferrovia, que
mesmo assim podíamos ter esperança de vir a sacudir a pobreza secular. Mas
quando tudo o que é feito vai no sentido de reforçar as características
estatizantes, burocráticas e oligárquicas do país que somos, não temos
esperança.
Quando
tudo é feito para abafar a diferença, impedir ideias novas, distorcer a
concorrência, proteger os instalados, não temos senão um triste futuro.
Ora
é precisamente isso que está a ser feito. Por conveniência dos partidos, que
têm de servir a ancestral fominha de lugares (é por isso, e por mais nada, que
nada podemos esperar do PSD que temos, pois este verdadeiramente já só deseja
umas sobras à mesa do Orçamento).
Por
ideologia, pois a gerigonça atira a matar a tudo o que seja concorrência,
iniciativa autónoma, possibilidade de sucesso fora das malhas estritas do que
pode ser controlado pelo poder político.
Por
tradição, pois um país que nunca soube construir instituições fortes e
independentes tem imensa dificuldade em lidar com elas (e é ver como esta
maioria geringonçal se tem encarregue de as desvitalizar ou controlar, sejam
entidades reguladores, sejam instituições fiscalizadores, só não indo mais
longe porque está manietada pelas regras europeias).
É
revoltante, profundamente revoltante, verificar que quando o país precisa que
descompliquem, que o libertem da camisa de onze varas que são regulamentos em
cima de regulamentos e serviços e servicinhos cheios de gente a lutar pelo seu
pequeno lugar de tiranetes da mais abstrusa interpretação legal (o que também
favorece a pequena, média e grande corrupção), um conjunto de bonzos, cheios de
arrogância, anda a conspirar para acrescentar ainda mais uma camada ao Estado e
uma nova prateleira para colocar “boys” e “girls”.
É assim que garantimos a miséria do
nosso futuro. Eles vão-se safando. Nós, como país, ficaremos sempre pobres. O
resto serão sempre promessas vãs. Está nos livros porque falham as nações e
nós fazemos questões de cometer todos os erros possíveis.
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