quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Fragmentos do “Livro do Desassossego”



Foi no meu segundo ano em Coimbra, no Instituto Francês da Faculdade Letras, que eu frequentava com o entusiasmo que já vivera na biblioteca do Liceu Salazar, aquele naturalmente mais enriquecido de escritores franceses do que esta, apesar de bastante abastecida para uma estudante liceal a despertar para o mundo pejado de obras literárias. Falava com o meu professor, M. Jean Girodon, que me lembrava a necessidade de mais dedicação ao estudo, numa altura de devaneios passageiros, então provocados pelas seduções dos passeios na encantada Coimbra. Respondi-lhe, um tanto estouvadamente, com os versos de Pessoa “Estudar é uma coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma”, ao que ele, educado no pensamento lógico da sua pátria racionalista, retorquiu com uma pergunta depreciativa, que nunca esqueci: “Que significa isso? Não tem sentido”.
Sim, nem sequer pertence ao grupo dos paradoxos a que pertence a sua “Autopsicografia”: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.”, facilmente perceptível a justificação final, na contradição entre a razão e o sentimento que está na origem do seu processo criativo – “E assim nas calhas da roda Gira a entreter a razão Esse comboio de corda Que se chama coração», e que Pessoa tantas vezes utilizará na sua poesia de contorções: “O mito é o nada que é tudo”, na descrição de Ulisses, da “Mensagem”, o qual “foi por não ser existindo”.
Uma coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma semelha antes um axioma jocoso a subverter toda a racionalidade, que me parece ser a essência fundamental de “LIVRO DO DESASSOSSEGO”, para além do negativismo como constante, ditado pelo desespero de um “non-sens” existencial. E as imagens que perpassam na sua escrita entrecortada, de auto ironia ou de desdém são de uma genial riqueza, de um obsessivo repisar de pensamento egotista e expressivo de negação, num processo de filosofia e psicologia e artifício contínuos, de uma inteligência apurada e vibrátil, como o rabo cortado do lagarto, do poema “Tabacaria”, que “É rabo para aquém do lagarto / remexidamente.» Um remexer contínuo de reflexões filosóficas, a lembrar, por vezes, as “Máximas” de La Rochefoucault, “Os Pensamentos” de Pascal, e tantas outras obras de estudo do Homem em pinceladas analíticas, este “Livro do Desassossego” que parte, todavia, da subjectividade de um “ego” para o resto do mundo, remexidamente, angustiadamente, genialmente.
Cito, ao acaso, frases, ora de absoluto desespero e auto-desprezo, tantas vezes convertido em extraordinário orgulho próprio e desprezo pelo outro, ora conceitos de uma agudeza e riqueza que fazem deste livro um monumento literário. Como o são, de resto, os seus versos das variadas personalidades poéticas, que tantas vezes traduzem os pensamentos e angústias do livro em prosa, mau grado a sua representatividade específica:

«Também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe”.

“Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser ignóbil ante a vida finge-se”

“Invejo a todas as pessoas o não serem eu”.

“Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em querer construir.”

“A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.

“A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes campos vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.”

“Não se pode comer um bolo sem o comer”.

“Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória”

“Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há”.

“Estátua interior sem contornos, Sonho Exterior sem ser sonhado.”

Uma extraordinária obra de que apresento, transcritos da Internet, a sua Apresentação e a sua Sinopse:

Da INTERNET:
«Livro do Desassossego é uma das maiores obras de Fernando Pessoa. É assinado pelo semi-heterônimo Bernardo Soares. É um livro fragmentário, sempre em estudo por parte dos críticos pessoanos, tendo estes interpretações díspares sobre o modo de organizar o livro. Existe uma versão resumida do livro, com os trechos mais belos e representativos da obra, intitulada «palavras do Livro do Desassossego».

SINOPSE
«O que temos aqui não é um livro mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o anti-livro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o génio de Pessoa no seu auge». 
Estas são palavras da INTRODUÇÃO à primeira edição do Livro do Desassossego publicado pela Assírio & Alvim, em 1998. Com o presente volume, vamos na décima edição desta maravilhosa e sui generis obra, agora enriquecida por alguns inéditos e, sobretudo, por dezenas de melhoramentos na leitura dos originais manuscritos, redigidos numa caligrafia notoriamente difícil de decifrar.

Publicado em 1982, quarenta e sete anos após a morte de Fernando Pessoa, "O Livro do Desassossego", tem como autor Bernardo Soares, personagem criada pelo próprio Pessoa. É um livro biográfico com os pensamentos de um dos maiores autores do século XX.
“São as minhas confissões  e, se nelas nada digo, é que nada tenho para dizer.” É como Fernando Pessoa apresenta o livro que escreveu sob o heterónimo Bernardo Soares e onde revela a sua vida oculta.

«A obra começou a ser escrita aos vinte e cinco anos de Pessoa, acompanhando-a o resto da vida e é como um labirinto onde o autor procura responder a questões como “quem sou eu?” ou “como posso explicar a realidade?” Dúvidas  fundamentais do modernismo, que teve em Fernando Pessoa um dos seus representantes máximos. A obra levou vinte anos a ser escrita e ficou incompleta. São mais de 500 textos sem principio, meio nem fim, escritos por aquele que criou três identidades distintas para o acompanharem na criação poética: o mestre Alberto Caeiro, o médico Ricardo Reis e o engenheiro Álvaro de Campos. Como testemunha de um Fernando Pessoa desconhecido, ficaram Bernardo Soares e “O Livro do Desassossego”.»

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