Foi no meu segundo ano em Coimbra, no
Instituto Francês da Faculdade Letras, que eu frequentava com o entusiasmo que
já vivera na biblioteca do Liceu Salazar, aquele naturalmente mais enriquecido
de escritores franceses do que esta, apesar de bastante abastecida para uma
estudante liceal a despertar para o mundo pejado de obras literárias. Falava
com o meu professor, M. Jean
Girodon, que me lembrava a necessidade de mais dedicação ao estudo, numa
altura de devaneios passageiros, então provocados pelas seduções dos passeios na
encantada Coimbra. Respondi-lhe, um tanto estouvadamente, com os versos de
Pessoa “Estudar é uma coisa em que está
indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma”, ao que ele, educado no
pensamento lógico da sua pátria racionalista, retorquiu com uma pergunta depreciativa,
que nunca esqueci: “Que significa isso? Não
tem sentido”.
Sim, nem sequer pertence ao grupo dos
paradoxos a que pertence a sua “Autopsicografia”: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que
é dor A dor que deveras sente.”, facilmente perceptível a justificação
final, na contradição entre a razão e o sentimento que está na origem do seu
processo criativo – “E assim nas calhas
da roda Gira a entreter a razão Esse comboio de corda Que se chama coração», e
que Pessoa tantas vezes utilizará na sua poesia de contorções: “O mito é o nada que é tudo”, na
descrição de Ulisses, da “Mensagem”, o
qual “foi por não ser existindo”.
“Uma
coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma” semelha antes um axioma jocoso a subverter toda a
racionalidade, que me parece ser a essência fundamental de “LIVRO DO
DESASSOSSEGO”, para além do negativismo como constante, ditado pelo desespero
de um “non-sens” existencial. E as imagens que perpassam na sua escrita
entrecortada, de auto ironia ou de desdém são de uma genial riqueza, de um
obsessivo repisar de pensamento egotista e expressivo de negação, num processo
de filosofia e psicologia e artifício contínuos, de uma inteligência apurada e
vibrátil, como o rabo cortado do lagarto, do poema “Tabacaria”, que “É
rabo para aquém do lagarto / remexidamente.»
Um remexer contínuo de reflexões filosóficas, a lembrar, por vezes, as “Máximas” de La Rochefoucault, “Os Pensamentos” de Pascal, e tantas outras obras
de estudo do Homem em pinceladas analíticas, este “Livro do Desassossego”
que parte, todavia, da subjectividade de um “ego” para o resto do mundo, remexidamente,
angustiadamente, genialmente.
Cito, ao acaso, frases, ora de
absoluto desespero e auto-desprezo, tantas vezes convertido em extraordinário
orgulho próprio e desprezo pelo outro, ora conceitos de uma agudeza e riqueza
que fazem deste livro um monumento literário. Como o são, de resto, os seus
versos das variadas personalidades poéticas, que tantas vezes traduzem os
pensamentos e angústias do livro em prosa, mau grado a sua representatividade específica:
«Também
há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às
coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na
solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe”.
“Coisa
arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser ignóbil ante a vida
finge-se”
“Invejo
a todas as pessoas o não serem eu”.
“Sou
ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se
fartou, em meio de construí-las, de pensar em querer construir.”
“A
beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo
para a sensualidade como o obstáculo para a energia.
“A
artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes campos
vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem nunca viveu
constrangido.”
“Não
se pode comer um bolo sem o comer”.
“Levo
comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória”
“Tenho
a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há”.
“Estátua
interior sem contornos, Sonho Exterior sem ser sonhado.”
Uma extraordinária obra de que apresento,
transcritos da Internet, a sua Apresentação
e a sua Sinopse:
Da INTERNET:
«Livro do Desassossego é uma das maiores obras de Fernando Pessoa. É assinado pelo semi-heterônimo Bernardo Soares. É um livro fragmentário,
sempre em estudo por parte dos críticos pessoanos, tendo estes interpretações
díspares sobre o modo de organizar o livro. Existe uma versão resumida do
livro, com os trechos mais belos e representativos da obra, intitulada
«palavras do Livro do Desassossego».
SINOPSE
«O
que temos aqui não é um livro mas a sua subversão e negação, o livro em
potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o
anti-livro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o génio
de Pessoa no seu auge».
Estas são palavras da INTRODUÇÃO à primeira edição do Livro do
Desassossego publicado pela Assírio & Alvim, em 1998. Com o presente
volume, vamos na décima edição desta maravilhosa e sui generis obra,
agora enriquecida por alguns inéditos e, sobretudo, por dezenas de
melhoramentos na leitura dos originais manuscritos, redigidos numa caligrafia
notoriamente difícil de decifrar.
Publicado em 1982, quarenta e sete anos após a morte de Fernando
Pessoa, "O Livro do Desassossego", tem como autor Bernardo Soares,
personagem criada pelo próprio Pessoa. É um livro biográfico com os pensamentos
de um dos maiores autores do século XX.
“São as minhas confissões
e, se nelas nada digo, é que nada tenho para dizer.” É como Fernando
Pessoa apresenta o livro que escreveu sob o heterónimo Bernardo Soares e
onde revela a sua vida oculta.
«A obra começou a ser escrita aos
vinte e cinco anos de Pessoa, acompanhando-a o resto da vida e é como um
labirinto onde o autor procura responder a questões como “quem sou eu?” ou
“como posso explicar a realidade?” Dúvidas fundamentais do modernismo,
que teve em Fernando Pessoa um dos seus representantes máximos. A obra levou
vinte anos a ser escrita e ficou incompleta. São mais de 500 textos sem
principio, meio nem fim, escritos por aquele que criou três identidades
distintas para o acompanharem na criação poética: o mestre Alberto Caeiro,
o médico Ricardo Reis e o engenheiro Álvaro de
Campos. Como testemunha de um Fernando Pessoa desconhecido,
ficaram Bernardo Soares e “O Livro do Desassossego”.»
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