terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O dedo espetado de Ricardo Araújo Pereira


Estou a ler o artigo “Fast Fashion”de Clara Ferreira Alves (E, 9/2/19) sobre a poderosa expressão do capitalismo hodierno associado à exploração, a merecer-lhe uma crítica feroz a este sistema mais do que nunca subjugado à arrogância e desprezo absolutos pelo ser humano. Figuras que nos passam defronte, da nossa simpatia ou conhecimento, da aura sua, nos tablados nacionais e estrangeiros, vendendo a sua banha da cobra publicitária a troco de espórtulas que mais acrescentam em trocos aos seus vencimentos – na realidade a favorecerem sobretudo o capitalismo que os contratou para tal, conhecedor astuto das vaidades humanas pateticamente absorvidas pelo fascínio das modas. No caso português, nunca esquecerei um dos primeiros a abrir-me a curiosidade e a tristeza – António Silva, canhestro, “vendido”, a anunciar um qualquer produto da moda, ele, o melhor actor que tivemos, obrigado a pactuar com o sistema, mas, no seu caso, talvez menos por avidez que por necessidade, por não ganhar o suficiente, que é o que acontece por cá, com esses actores ou outros artistas não respeitados nas suas reformas míseras, e forçados, por vezes, a participar nesses truques publicitários a troco de uns trocos irrisórios. Caso, talvez, desse outro político de expressão triste, Gorbatchov, que tanto respeitamos, citado por Clara F. A. a figurar entre outros ilustres, que a sua ferocidade crítica reproduz: “O CAPITALISMO RECRUTA DOIS TIPOS DE PESSOAS. AS INFLUENTES E FAMOSAS, QUE GOSTAM DE DINHEIRO E OS INIMIGOS, OS QUE PODEM PREJUDICAR O SISTEMA.” E segue-se o caso ridículo do jogo apelativo das vaidades gerais, a massa humana mais e mais arrebanhada no fascínio das roupas ou das marcas, que os macabros capitalistas da psicologia humana semeiam, na exploração e na poluição do planeta. Vale a pena transcrever:

«Até ao colapso do edifício de Rana Plaza no Bangladesh, seguido de outros desastres onde morreram milhares de trabalhadores, as condições de produção de roupa em série eram um segredo bem guardado. As grandes marcas europeias e americanas, como a H&M, subcontratam fabricantes locais e impõem preços ridículos, ameaçando retirar-lhes o negócio se não os mantiverem. Os preços só se conseguem manter se mulheres pobres, destituídas de qualquer protecção laboral ou outra, aceitarem trabalhar nas usinas por dez ou vinte dólares por mês, no máximo dois dólares por dia. A competição é tão brutal que sucessivamente foram eliminados países como a China ou o Vietname, ou a Turquia e Marrocos, por terem trabalhadores, trabalhadoras, demasiado caros. Ou sindicatos e reivindicações. Portugal faz parte dos países baratos das fábricas de moda, no segmento de luxo que antes era ocupado pela Itália. (…)
Uma segunda consequência da “fast fashion” , além da exploração laboral digna dos romances de Dickens, é a poluição do planeta devida ao excesso de inventário. Lixeiras em África e na Ásia não conseguem absorver todos os trapos descartados, não recicláveis, não biodegradáveis, dos conglomerados… Há milhões de toneladas de trapos nas lixeiras, há demasiados recursos consumidos para a sua produção, sobretudo água, demasiadas substâncias químicas que envenenam os rios e os mares que recebem os detritos industriais. A Índia ou o Vietname, a Indonésia ou o Cambodja, estão sobrecarregados, cidades inteiras onde as pessoas são vítimas de doenças ambientais. Um subdesenvolvimento de que ninguém quer saber, muito menos os consumidores. ….»

Denunciar essas misérias e disparidades sociais, na avidez e vaidade humanas que os psicólogos do capital tão bem sabem difundir, indiferentes ao mundo do trabalho pecaminosamente explorado, que lhe subjaz, eu compreendo. Texto, este de CFA, rigoroso e sério, de informação e revolta, contra a crueldade e o desdém cobardemente obscenos da arrogância capitalista poderosa.
Também compreendo a ironia, o humor caricatural de obras que destacam a esperteza malandra de uns – geralmente os de posicionamento inferior – e a parlapatice de outros – geralmente os de posicionamento superior, caso do “Sim, Sr. Ministro”, sadio de graça mordaz, que irmana uns e outros na denúncia das fraquezas gerais – ingenuidades dos mais poderosos, astúcias dos que os servem – e que a todos fazem rir, confraternizando na comicidade generalizante do “errare humanum est”.
Não é o caso do nosso humor por cá, demasiado directo e sem ética, apontando a dedo, numa troça desbragada e pouco caridosa, de poluição sonora e ataque pessoal, a partir de imagens, destruidoras das reputações. Se o humor desconstrutivo de Herman José, tirante algumas figuras que criou, de graça irresistível, acaba por cansar, no seu empenhamento em desrespeitar convenções, o mesmo – e menos ético ainda – me parece ser o humor de Ricardo de Araújo Pereira, na sua troça desbragada, de sorriso composto e olhar inteligente e feroz, descarregando argumentos requintadamente trabalhados, após a denúncia de imagens do ridículo humano. São políticos, na sua maioria, os denunciados, mas só os que figuram no parti pris dos seus interesses ideológicos, ou dos dos orientadores do programa.
Não, não acho enriquecedores estes programas, pelo contrário, ao emporcalharem pela troça directa e a caricatura deformadora, no acentuar das imagens, que as fotografias do ridículo favorecem, como é o caso deste "Gente que não sabe estar”. Pelo contrário, são meios de semear mais atraso, no país atrasado que já somos, pese embora tanta deficiência de comportamentos num Portugal sem maneiras, que a “intelectualidade” libertária ajudou ferozmente a “promover”. E continua.

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