segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A fada madrinha



Quando lemos António Barreto, parece-nos que ele conhece bem do que trata, mas há quem desmascare nele um certo radicalismo de conceitos, fruto de um conhecimento humanista generalizador, e no fundo, desejo de fazer oposição, mesmo às ideias mais generosas de desenvolver o interior, que muitos comentadores, como ele, colocam no patamar de ambições pessoais para ganhar votos eleitorais. Penso que uns e outros têm razão, António Barreto na impecabilidade da sua argumentação, de estudo e alguma experiência, alguns comentadores desejando uma real estruturação do seu interior, que exige uma canalização de fundos talvez mais ampla. Tudo passa, afinal, pelos “fundos”, no litoral, como no interior. Infelizmente, o país real, salvo as excepções de sempre, não produz fundos suficientes, tem sempre que recorrer aos fundos da fada madrinha, para dar vazão a qualquer projecto de desenvolvimento. Ça ira. O desenvolvimento do interior ir-se-á fazendo, já é notório em alguns casos, e a Educação, a expansão do Ensino Universitário vai contribuir para tal. Quem nos dera!
CRÓNICA: O interior e os seus mitos
Não faz qualquer espécie de sentido os poderes públicos provocarem e depois subsidiarem a interioridade!
ANTÒNIO BARRETO             PÚBLICO, 3 de Fevereiro de 2019
São duas políticas contraditórias. Talvez inúteis, seguramente prejudiciais. A primeira: revitalizar o interior e fazer com que as pessoas “criem raízes” onde nasceram. A segunda: liquidar instituições e fechar serviços públicos.
Falamos do interior, fantasia que, desde há muitos anos, ataca grande parte dos políticos. Interior que começa por pecar por defeito de concepção. Onde começa e onde acaba o interior? Visto de São Petersburgo, Portugal é costa e praia. Visto de Madrid, o litoral vai até Viseu. O interior é um conceito, não uma realidade. Segundo os mais recentes critérios, o interior já inclui áreas litorais no Centro e no Alentejo. Na verdade, interior é uma entidade artificial que define áreas mais agrárias do que industriais, mais rurais do que urbanas, pouco letradas e menos instruídas, com baixo produto e reduzida produtividade, por vezes distantes dos grandes centros urbanos, com habitat disperso, rendimentos baixos, pouca natalidade, muita emigração, pouca imigração, elevadas percentagens de reformados, poucos serviços de saúde e de educação.
É para este interior que se dirigem as atenções dos governantes e autarcas, sobretudo candidatos. Pensam que prometer mundos e fundos ao interior dá votos e aquece os corações. É muito provavelmente mentira. Estranha-se a facilidade com que um candidato, em princípio com estudos feitos, é capaz de afirmar que tem políticas para “fixar as populações”, uma das mais odiosas expressões utilizadas correntemente, só comparável àquela outra que diz que as pessoas devem “criar raízes onde nasceram”, baixo pensamento de que só urbanos são capazes.
No discurso político, mas também académico, o termo mais dramático é o da desertificação. O que não é justo. Na verdade, esta expressão traduz outro fenómeno, mais radical, mais climático e geográfico. Desertificação é o processo pelo qual regiões perdem fertilidade, recursos, água e, com a aridez, os solos transformam-se em desertos, para ser mais directo. Aquilo de que se deveria falar, a propósito do interior, é de despovoamento: êxodo da população e declínio da demografia.
O despovoamento está ligado a múltiplos fenómenos. Por exemplo, o esgotamento de recursos naturais, o declínio demográfico, a mudança de padrões económicos e a decadência da indústria ou da agricultura. São muitas as razões que levam ao despovoamento, umas boas, outras más! Entre as boas, a procura de melhores empregos, de mais cultura, de ensino superior e de novas actividades noutras paragens. Numa palavra, a procura de oportunidades.
Há, no entanto, entre as causas de declínio do “interior”, uma que deve ser analisada: o empobrecimento institucional das regiões e a destruição deliberada de serviços públicos. Forças Armadas, polícias, escolas, centros de saúde, hospitais, maternidades, centros de lazer e cultura, serviços e extensões ministeriais, bancos e agencias bancárias, agentes de seguros, repartições da segurança social, correios, serviços das contribuições e impostos, das estradas, da urbanização e das obras públicas, serviços de transporte (comboios, autocarros…) e apoio aos doentes, idosos e crianças. É longa a lista.
O Estado, furtivamente, caso a caso, tem vindo a despovoar largas zonas do país. Muitas vezes com a colaboração, o silêncio ou a impotência das autarquias. É este desmantelamento que é condenável. O Estado não faz avaliação de conjunto. Os partidos também não. Estes apenas se preocupam, de vez em quando, com a regionalização, na convicção, de uns, de que essa é receita de salvação, e de outros, que essa é uma solução diabólica.
Ora, cada município merece análise de conjunto. Uma região ou um conjunto de municípios vizinhos podem debruçar-se sobre o mesmo problema e, caso a caso, encontrar soluções adequadas, um concelho fica com o hospital, outro com as obras públicas, tudo depende das áreas e das distâncias.
Uma coisa é certa: há serviços e instituições que existem para servir o povo, para manter vivas localidades, para ajudar a atrair emprego, para reforçar a coesão social e para manter a vida, não para dar lucro e ser rentável. Fechar comboios, encerrar os correios, fechar maternidades, terminar escolas, liquidar serviços aos idosos, descontinuar serviços da administração e desmantelar regimentos, cada uma destas decisões pode ter alguma justificação, desde que ponderada e debatida. Por junto, é a matança institucional sem justificação decente.
São as duas políticas contraditórias. O que faz a mão direita, a esquerda não sabe! Por um lado, o Estado não cessa de inventar ajudas e apoios: impostos, taxas, favores, subsídios, investimentos, auto-estradas, subsídios à interioridade e à insularidade, apoio aos preços da energia, da água e dos telefones, é um nunca mais acabar de benesses.
Por outro lado, liquidam-se empregos, empresas, tribunais, serviços administrativos, serviços públicos, escolas, maternidades, freguesias, correios, agências bancárias, regimentos, esquadras de polícia e da guarda, serviços e guardas florestais, guarda-rios e serviços veterinários.
Os apoios e as ajudas são excelentes, mas pouco conseguem, como se tem visto. Até porque são contrariados pela destruição sistemática do tecido e da coesão institucional. É verdade que onde não há crianças não há escolas. Onde não há mães não há maternidades. Onde não há doentes não há hospital. Mas será mesmo assim? Não será mais verdade que, onde não há instituições, onde não há correios, onde não há empresas, onde não há serviços, onde não há escolas, não há pessoas!
Percebe-se que os quartéis de fronteira tinham como principal missão a de olhar para os adversários de terra, para Espanha! E consta que a Espanha já não é nossa eterna inimiga, antes pelo contrário. Mesmo assim, os quartéis estavam lá, como podiam estar em qualquer outro sítio e eram factores de coesão, de animação, de casamento, de natalidade e de comércio.
Um regimento não é um problema. Caso a caso, uma escola, um banco ou uma estação de correios, percebe-se sempre. Adicionados casos uns aos outros, não se percebe. Ou antes: não há uma visão de conjunto, não há plano, faltam autarquias não obedientes ao poder central, ao partido e ao governo.
Uma coisa é certa: não faz qualquer espécie de sentido os poderes públicos provocarem e depois subsidiarem a interioridade! E pior do que tudo é a concepção de que as instituições têm de ser rentáveis. Uma escola? Um correio? Um centro de saúde? Um lar de idosos? Deve ser isso a que chamam sustentabilidade.
COMENTÁRIOS:
Jose Sarmento, Lisboa 03.02.2019 Ao longo dos anos, a voz de António Barreto mantém a mesma frescura e lucidez. Desertificação em Portugal seria não poder contar com as suas chamadas de atenção. Inconveniente, provavelmente. Clarividente, com certeza.
Francis Delannoy, 03.02.2019: De facto se ao tentar reconstruir o interior estão a reconstruir com dinheiros só para alguns como sempre, e sem deixar as pessoas livres no comércio, na produção na agricultura, ajudar o interior não servirá de nada. Não vale a pena incentivar os jovens a serem agricultores se não criam mercados para escoar a produção ou se estão atrás deles com a Asae ou a pedirem guias de transporte por dois sacos de batatas...reconstruir o país requer gente de inteligência e gente que goste do seu pais, com oportunistas corruptos ladrões gananciosos fiscais e destruidores do empreendedorismo, não irão a lado nenhum.. ou talvez ainda irão com ideias iluminadas de repovoar as nossas aldeias vazias com gente de lá de fora e de costumes diferentes pagos com ajudas de sobrevivência dos impostos dos portugueses.
José Ferreira Barroca Monteiro, Lisboa03.02.2019: «É muito provavelmente mentira» Nada de provável, é certo. Até porque quem falar verdade, não ganha eleições! No Jornal do Fundão, dei um dia um toque: menos aeródromos num rectângulo da nossa dimensão e pejado de auto-estradas, mais chamadas ao turismo interno-externo-residencial. Mas qual o autarca, a ex Ponte de Sôr- Castelo Branco-Covilhã, com Tancos esquecido (ex-base aérea), que dispensa um aeroporto de brincar? Visão de conjunto, como, se eles não estudaram Geografia?
Fowler Fowler, 03.02.2019: Hoje, AB, em vez de saudar o grande passo dado com a Lei da Descentralização em curso com a proposta de transferência de competências do Governo para o poder local com o grande objectivo de melhor se poder servir as populações, vem botar demagogia, como de costume. Se esta Lei tivesse sido aprovada durante um governo de Passos Coelho ou um congénere de direita, este “senador” suburbano estaria agora a lançar foguetes e a fazer a festa, quem sabe em romaria até ao Douro, onde foi criado e donde fugiu a sete pés à procura da sua liberdade, encontrada finalmente, como se sabe, à beira mar, à semelhança de muitos outros cidadãos portugueses que procuram a liberdade na cidade.
Fowler Fowler, 03.02.2019 : Houve tempos em que as populações reivindicavam o hospital e a escola para junto de sua residência por falta de estradas. Depois de se terem construído estradas, autoestradas e alcatroado os caminhos de terra batida, as populações passaram a ter acesso facilitado às estruturas e equipamentos sociais mais próximos. Houve, e continua a haver, um investimento colossal no desenvolvimento regional para o qual contribuíram os fundos comunitários da UE, bem como os orçamentos do poder central e local. Se há regiões menos bafejadas pelo desenvolvimento em curso, isso deve-se em grande parte à falta de qualidades dos autarcas, eleitos precisamente para fomentarem o desenvolvimento e servirem as populações.
joaquim bastos serra, Évora 03.02.2019: AB cai no mesmo erro daquilo que critica: simplificação e mistificação. Não é verdade que o Estado não tenha, nas últimas décadas, vindo a investir fortemente no interior. Apesar do esboroar de alguns serviços, nunca o interior teve uma rede de serviços públicos de tanta qualidade como tem hoje: centros de saúde, lares de terceira idade, bibliotecas, piscinas, auditórios. Em muitos concelhos do interior, o estado é mesmo o grande empregador. Mas se os serviços públicos têm contribuído largamente para segurar as populações, não têm evitado o despovoamento. É, por tudo isto, que o artigo de AB é assustadoramente simplista. As respostas são muito mais complexas e é dessa complexidade que eu gostaria que António Barreto falasse.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta03.02.2019 : Para lá dos mitos então (e do Marão): na sede do concelho da Mêda, de que Marialva faz parte, fecharam o tribunal. Na sede do de Almeida, talvez o mais icónico da raia, fecharam a CGD por instrução directa de Bruxelas. Explicação, querem menos agências e mais perto da fronteira... Quem manda?
bento guerra, 03.02.2019: Que os empresários tenham de ter em conta a logística das suas actividades, se no interior, justifica-se. Mas o Estado não tem esse problema, ao contrário, alguns custos serão menores e a qualidade de vida dos seus agentes, potencialmente melhor. Tudo gira à volta dos mercados eleitorais e da mentira com que se tratam os assuntos
Cazé, Caldas da Rainha 03.02.2019: Pois é. O tempo da demografia é muito diferente do da economia e mais ainda do da política. Pensar em extensão e profundidade o País é contrário aos objectivos de curto prazo de eleições, que é ganhá-las. A tecnologia potencia a decisão e processos administrativos centralizados dos governos; mas as pessoas precisam de soluções físicas próximas, eficazes e com uma cara. Lojas do cidadão móveis, delegações da Câmaras nas povoações mais afastadas ou isoladas, ajudariam? Teremos a juventude mais bem preparada de sempre para o futuro. Excelente!. Mas, hoje, há problemas de mão-de-obra nas profissões que requeiram disponibilidade para viver desconforto físico, psicológico ou emocional (p.ex, construção, agricultura, indústria pesada, defesa, polícias, auxiliares em hospitais e lares).
AndradeQB, Porto 03.02.2019:  AB corrige conceitos e identifica uma aparente contradição da acção do poder público. Uma contradição que, na minha modesta opinião, não existe. O poder público não subsidia o interior, pelo contrário. Veja-se para onde vai o subsídio aos passes de transporte, onde se aplica o resultado da negociação com a EU e os 200 mil milhões de endividamento. Isso seria o normal do negócio em que uma das partes tem mais poder, mas é mais do que isso. A exploração de áreas e recursos das zonas rurais, de que se destacam as barragens para produção eléctrica e/ou abastecimento de água, paga menos localmente do que o que existia antes. Um verdadeiro esbulho. Os poderes públicos provocam, mas não subsidiam a "interioridade". Subsidiam umas Câmaras Municipais para que militem pela sua manutenção.

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