Se não fosse irrelevante
pretensiosismo o paralelismo deste “bater o pé” caprichoso do RU, a libertar-se
orgulhosamente de compromissos do tipo da saudável dinâmica mosqueteira “um por todos, todos por um,” eu
lembraria liricamente o “Prefiro
escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos arrastar
os pés sangrentos, a ir por aí” do nosso José Régio, para comentar este
Brexit imprevisto. Mas tal egotismo sem consequências não se poderia aplicar,
de facto, a um povo fleumático e intelectualmente disciplinado como me parece
ser o povo inglês. Assim, aprendemos mais com os excursos históricos de Teresa de Sousa e até mesmo dos seus
comentadores politizados. O José Régio foi puro devaneio um pouco trocista, que
não apaga a preocupação.
OPINIÃO
Quando não há mais nada, ficam os mitos
Na imprensa conservadora, os dias
gloriosos da resistência britânica às investidas de Hitler começam a ser a
resposta que resta para a ansiedade que a aproximação da data da saída da UE
sem acordo está a causar.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 3 de Fevereiro de 2019
1.
Há dias, um político defensor irredutível do "Brexit" respondia a
uma questão colocada por um canal de televisão, sobre as consequências
dramáticas de uma saída sem acordo, que os ingleses tinham aguentado a
II Guerra sem se ir abaixo. Não é o único. Na imprensa conservadora, os
dias gloriosos da heróica resistência britânica às investidas de Hitler começam
a ser a resposta que resta para o crescente sentimento de ansiedade que a
aproximação da data da saída sem acordo está a causar. O FT dá conta do regresso
dos “mitos sobre a resiliência dos britânicos”, citando, por exemplo, um
recente texto de Charles Moore
na Spectator. Diz o jornalista: “Deste lado da costa, temos a tradição
secular do contrabando e estamos preparados para ir nos nossos pequenos barcos até
Dunquerque ou outro sítio qualquer e trazer de lá reluzentes alfaces,
feijão-verde francês ou laranjas e limões franceses”. Esta displicência só não
é ridícula porque faz parte do jeito de ser displicente dos britânicos que toda
a gente conhece. Dunquerque exalta a memória dos anos 40, quando as Ilhas
resistiam sozinhas à barbárie hitleriana. Os bombardeamentos contínuos de
Londres e de outras cidades inglesas durante o Blitz mostram um
povo que prefere cair de pé a ceder perante a pior das provações. Centenas
de filmes foram e são dedicados à sua “finnest hour”. Mas era também o
orgulho de um povo habituado a liderar um Império onde o Sol nunca se punha,
uma grande potência marítima que “governava as vagas”, um país que escreveu a
Magna Carta e a Revolução Industrial, que nunca aceitaria render-se a um líder
bárbaro e demencial que alimentou o sonho louco e imperial de dominar a Europa.
Os ingleses resistiram também porque Churchill era Churchill – uma figura
ímpar que conseguiu traduzir em palavras e em actos esse espírito indomável, ao
qual o país se rendeu e o mundo livre também. Homens e mulheres de todas as
classes sociais fizeram o seu papel. Ainda hoje há uma velha anedota a gozar
com a forma peculiar de falar da aristocracia britânica recorrendo à última
frase dos pilotos da RAF que travaram a Batalha de Inglaterra antes de
levantarem voo: “chocks away”.
2. Nada
justifica, no entanto, este espírito destituído do mínimo de bom senso ou do
mais elementar realismo. O país não
é alvo de qualquer agressão exterior. Aderiu à Comunidade Europeia – o pedido
foi entregue em 1964, mas teve de esperar que De Gaulle saísse do Eliseu para
receber o sim de Bruxelas – porque se tornou por demais evidente que os seis
países fundadores, todos eles igualmente devastados pela guerra, tinham
conseguido recuperar economicamente muito mais depressa. Londres tornou-se uma
cidade emersa em “fog”, a pobreza tornou-se visível, a decadência também. Foi o
“Inverno do Descontentamento”, com as infindáveis greves dos mineiros e de
muitos outros trabalhadores, organizados em poderosas “trade unions”. Os
conservadores erguiam nessa altura a bandeira europeia e os trabalhistas
digladiavam-se furiosamente por causa da Europa. Foi preciso a conjugação do impacte positivo da
adesão e da chegada de Margaret Thatcher a Downing Street para que o caminho se
fosse lentamente invertendo. Quando John Major a substituiu, em 1991, a
economia já tinha dado a volta, os homeless tinham desaparecido das
ruas Londres e o Governo de sua Majestade tinha recuperado da tensão extrema
que a Dama de Ferro tinha criado com Bruxelas na sequência da unificação alemã
e das negociações de Maastricht, antecipando uma Europa que não seria apenas o
Mercado Único mas uma união de destino.
Blair
reinou sobre a Cool Britannia.
Que já nada tinha a invejar aos seus grandes parceiros europeus, que ganhara
uma influência crescente no centro das decisões europeias, que tinha um
discurso forte e comprometido com a Europa, não apenas como uma realidade
política em si própria, mas como uma potência de primeira linha na nova ordem
mundial. Quando, em 2005, Blair foi ao Parlamento Europeu apresentar o
programa da presidência britânica da União, foi ovacionado de pé pela maioria
das bancadas. Dois anos depois do início da guerra no Iraque. A
“terceira via” contagiava a Europa, de Lisboa a Berlim, passando até por Paris,
onde os socialistas mais moderados se interrogavam sobre as razões pelas quais
a economia inglesa crescia com taxas que a francesa estava longe de conseguir
alcançar. Sabemos hoje que esse período foi uma breve ilusão,
quando o mundo ocidental acreditou que o seu modelo político e económico se
iria expandir à escala global. O 11 de Setembro acabaria por mudar bruscamente o rumo
da única superpotência, lançando ondas de choque sobre o mundo. A
globalização mostrou o seu lado negro. O optimismo acabou. A profecia de Samuel
Huntington sobre o “choque de civilizações” como a marca do século XXI parecia
confirmar-se. A queda do
Lehman Brothers desencadeou uma crise financeira à escala mundial que se
transformou numa Grande Recessão. Ainda hoje curamos as feridas que deixou.
Na Europa e nos Estados Unidos, a
História começou a andar ao contrário. Mudaram
os problemas das nossas sociedades e as democracias estão a ser testadas em quase
toda a parte. Depois da esperança Obama, vivemos o pesadelo Trump. E,
mais uma vez, os EUA ainda têm o poder de provocar ondas de choque no mundo
inteiro quando mudam radicalmente a sua relação com o mundo. A coincidência entre a eleição de Trump e o “Brexit”
foi uma dupla machadada para a Europa. E a Europa ainda não sabe como lidar com
ambos.
É aqui que estamos. Com o Reino Unido mergulhado numa crise
existencial sem precedentes desde a II Guerra. Com o Continente sem saber como
reagir. Com o risco de um descalabro que, como também lembra o FT, os
britânicos não vão receber com o mesmo espírito com que receberam as bombas de
Hitler. Quanto mais não seja, porque vivem em paz há 70 anos e porque, como
todos os povos europeus, se habituaram à prosperidade. Cairiam de pé, ninguém
duvida. Mas nunca perdoariam a uma classe política desnorteada e mesquinha,
fechada numa “casa de loucos”, que os conduziu para uma situação insustentável,
incluindo o risco de fragmentação do próprio Reino Unido da
Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, o longo nome que figura nos passaportes
britânicos. Perguntariam então: para quê?
3.
Na América, a economia resiste à vaga de incertezas que o irredentismo da Casa
Branca alimenta. Em Janeiro, criou 304 mil novos postos de trabalho,
ultrapassando as melhores previsões. Na Europa, pelo contrário, as previsões
entraram na fase do pessimismo, contrariando os fundamentos das economias
europeias, que são, no geral, sólidos – contas equilibradas, um longo período
de retoma, taxas de juro baixíssimas, inflação controlada. Só se podem explicar
por razões políticas, que vão do "Brexit" às guerras comerciais de
Trump, passando pela própria indefinição que paira sobre o futuro da Europa.
Os
próprios britânicos ainda não sentiram demasiado os efeitos antecipados da
previsão de saída. Um estudo recente do Centre for European Reform demonstrava
que, sem o resultado do referendo, o PIB britânico seria 2,3% mais
elevado. É uma abstracção difícil de compreender pelo cidadão comum. A vida está
caríssima, é sobretudo o que os britânicos mais sentem. Por mais estranho que
pareça, há um número demasiado elevado de homeless nas ruas de
Oxford. A contracção do consumo e do investimento está a ser compensada, em
parte, pela armazenagem de bens essências pelas famílias e de matérias-primas
pelas empresas. Os empresários entraram já em modo de pânico e o que dizem
deveria fazer gelar o sangue a qualquer político responsável. Não é o caso. É
aí que entra o Blitz. O problema é que o heroísmo precisa de uma
justificação muito mais convincente do que sair de uma comunidade de países que
vivem em paz, que enfrentam os mesmos problemas e enfrentam os mesmos desafios.
Quando a “special relationship” já não é o que era. Quando a Commonwealth é
pouco mais do que uma miragem. Quando a Europa precisava, talvez mais do que
nunca, dos britânicos para enfrentar um mundo que lhe é cada vez mais hostil.
COMENTÁRIOS
Manuel Brito, LISBOA 04.02.2019 03:05:
Já é de esperar
a ladainha dos Jonas e outros que tais: a culpa não é da total desorientação da
classe política britânica, que no seu delírio neoimperial achou que podia
conservar o bolo e comê-lo, impondo a sua vontade aos restantes 27 países da
UE, unanimemente indisponíveis para sacrificar a pequena Irlanda. A culpa é de
uma imaginária ditadura burocrática sobrepondo-se à vontade de 27 governos
democraticamente eleitos. Transformar a arrogância irrealista dos políticos
britânicos num processo de vitimização é uma táctica conhecida mas nem por isso
menos ridícula. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos, mas quem estiver
interessado que vá seguindo as previsões das casas de apostas igualmente
britânicas.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva
Beira Alta : 04.02.2019: Eu não discordo completamente de si. Acho simplesmente que a
Democracia britânica criou a crise certa para pôr os seus políticos em cheque
(incluindo a subscrição de suzeranias sem o apoio do cidadãos). O mesmo para os
EUA. Vale bem a pena recordar o que disse Churchill depois de "a
Democracia é o pior dos sistemas".
Francisco Pinto dos Santos, Coimbra03.02.2019:
Brilhante
análise de Teresa de Sousa, para não variar. A desagregação do Reino
avizinha-se: a Escócia vai convocar novo referendum sobre a independência e a
Irlanda do Norte, lentamente, começa a aperceber-se que é muito melhor viver
como a restante ilha. Finalmente, a nova geração, nem quer ouvir falar em
Brexit. Se ele vier a acontecer, será um parêntesis até ao retorno da
Inglaterra e País de Gales (já sem Reino Unido) à UE.
AndradeQB, Porto 03.02.2019: Não sou britânico, e penso que a UK tinha condições de defender os seus
interesses dentro da EU, mas, mesmo assim, admito que, se fosse britânico, me
sentiria agredido. A EU está a mostrar uma união e assanhamento nunca antes
visto contra nada nem ninguém. Admito que parte seja o querer matar o mal pela
raiz, mas também tem uma grande parte de ressabiamento vingativo. Quando se
chega a este ponto, as coisas só podem correr mal, e cada um prepara-se para
sobreviver.
Jonas Almeida, Stony Brook NY,
Marialva Beira Alta03.02.2019 : No monopólio da iniciativa legislativa pelo ineleito executivo, no desenho
neocolonialista da moeda única, e até no nome, a UE é aquela que foi desenhada
por Walter Funk. Na distribuição das economias dos outros pelos amigos do directório
carolíngio é impossível não reconhecer a autocracia napoleónica. Na sabujice
dos melhores alunos das regras por quem quer viver das rendas que elas forçam,
temos a filipinagem chapada. Não me parece, de todo, que haja aqui mitos novos.
São as mesmas elites, a mesma geografia, com as mesmas intenções. Esta nova
"união" não passa de mais uma que "acaba com todas as
guerras" para criar o exacto conflito opressor que se augurava prevenção
sem alternativa. Não, os britânicos não se enganam nem na clarividência da sua
vontade expressa nem no paralelismo histórico.
Pankratov, Porto 03.02.2019: Não entendo porque tentamos
nós na EU diabolizar o Brexit e dar a entender que é o fim do Reino Unido. Eu
penso antes que pode ser uma oportunidade para o país. E esse é o grande medo
que a Europa tem: que este funcione. Porque se funcionar, outros países
seguirão. PS: fazem muita falta os jornalistas correspondentes, que estavam nos países
de que falavam. Porque o que vejo no UK é uma relativa normalidade.
AndradeQB, Porto 03.02.2019: Caro Pankratov, penso que tem
razão, e a prova é a forma intempestiva com que o main stream parte ao ataque a
qualquer reflexão sobre porque metade de um país se atreve a ponderar se o seu
futuro será melhor ou pior dentro ou fora da EU. Se não fosse o medo que
refere, seguramente que haveria maior abertura.
Jonas Almeida,
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 03.02.2019:
Concordo
Pankratov, e tenho poucas dúvidas que o assanhamento da UE de que fala
AndradeQB em cima, reflecte a previsão fácil de fazer que o UK se sairá
belissimamente bem livre de mais uma ditadura transcontinental. Como das outras
vezes. Sem dúvida essa visão de sucesso e liberdade tornará a opressão pelo
dictatum de Bruxelas ainda mais insuportável para as suas vítimas.
Joao, Portugal 03.02.2019 É óbvio que é uma punição exemplar. Para cortar a coisa pela raiz e ninguém
mais se atrever. O pânico e terror que todos os dias infligem sobre os ingleses
é obsceno, todos os dias os media vêm com ... fazer stock de batatas que vão
faltar, fazer stock de medicamentos, os bancos vão fugir para a Paris de
Macron, as empresas vão para Varsóvia, o gás vai ser mais caro, etc. Daqui a
pouco até dizem que a rainha vai fugir para Versalhes.
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