quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

E a saga continua



Salles da Fonseca, na sua forma directa e sucinta  – e naturalmente irónica, o que se lhe vê logo no título da crónica - faz o historial da intervenção do Ocidente nas lutas que se processavam lá pelo Médio Oriente, desde os tempos do Xá da Pérsia, que nos habituáramos a considerar, na nossa ignorância vocacionada para as fofocas sociais exploradas nas revistas femininas, sobre a sua paixão infecunda pela mulher – Soraya, de belos e enigmáticos olhos verdes – a quem teve de renunciar, por conta da continuidade no trono, casando com a gentil Farah Diba, mãe de três filhos. Perdidos, entretanto, nas nossas próprias misérias que nos expulsaram de terras que se considerou não nos pertencerem, de repente somos informados da deposição do Xá, já depois da nossa – (de 74) - em 79, com grande pesar nosso, substituído por uma mefistofélica figura de pesadelo, seguidora de rituais religiosos e políticos de uma dimensão, em termos ditatoriais, mais impertinente do que os seguidos pela nobre figura do Xá. O que se lhe seguiu foi doloroso para nós, bem como os outros casos que refere Salles da Fonseca e a que íamos assistindo e continuamos, casos pautados pela arruaça, a crueldade e a tragédia que culminaram em mortes por enforcamento, de figuras expostas publicamente, em assassinatos e horrores vários, entre os quais a exposição à morte de desgraçados ocidentais por feras orientais, para quem o ódio constitui a força motora, diz-se, pautada por uma religião fundamentalista – a dos xiitas. Salles da Fonseca revê tudo isso que por nós passou, já mais atentos, porque meios mediáticos nos foram enriquecendo de informação.
E hoje, outros problemas vão vindo, e são tema que nos está próximo - as fugas da Venezuela e o problema dos que, fugindo, são vítimas de múltipla miséria, que Vicente Jorge Silva explora no seu artigo de opinião rebarbativo e condenatório de tanta hipocrisia nossa, no explorar da questão, a esquerda portuguesa apoiante de Maduro, espécie de falcão carniceiro, que impede não só a ajuda humanitária a essa horda de gente fugitiva, como impede uma solução apaziguadora para o seu país, segundo eleições mais democráticas. Outros casos são por ele focados, de relevo no nosso país, a respeito do desprezo pela vida humana – as greves dos enfermeiros no caso das cirurgias, os homicídios de mulheres e crianças, praticados, nos casos de violência doméstica. Daí o título da sua crónica indignada - «A vida humana é uma abstracção?» - a que alguns comentadores respondem, na especificidade do seu próprio sentir.
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA           A BEM DA NAÇÃO, 14.02.19
Um pouco de História:
Quando o Ocidente abandonou o Xá da Pérsia, este foi substituído por Khomeini e sua hierocracia, com as consequências dramáticas que conhecemos e que perduram há 40 anos;
Quando nós, os do Ocidente, enforcámos Saddam Hussein, sucedeu-lhe o caos e surgiu o grupo armado do Estado Islâmico;
Quando Mubarak foi abandonado, sucedeu-lhe Mohamed Morsi, destacado membro da Irmandade Muçulmana, seguidora do wahhabismo, a versão mais radical do sunismo;
Quando promovemos a demissão de Ben Ali, da Tunísia, sucedeu-lhe o Ennahda, partido islâmico que nasceu em 1981 com o nome de Movimento de Tendência Islâmica inspirado na Irmandade Muçulmana do Egipto; 
Quando pactuámos com o derrube e assassinato de Khadafi, ele foi substituído pelo caos total e fomos «prendados» com a onda de imigrantes muçulmanos na Europa.
Estávamos ansiosos por uma "Primavera Árabe" e obtivemos um "Inferno Islâmico". Sempre que abandonámos um ditador num país muçulmano, obtivemos algo muito pior.
Como poderemos afirmar que vencemos com a mudança? As pessoas nesses países são mais felizes? Vimos algum avanço na democracia?
O ponto comum nesses ditadores depostos é que todos eles eram leigos, ferozmente opostos aos islamitas que reprimiam com mão de ferro. A sua substituição promoveu não a democracia e os direitos humanos mas precisamente o seu contrário.
Na Síria, o Ocidente está a fazer tudo para se livrar de Assad mas, se chegarmos lá, podemos com toda a certeza apostar que ele será substituído por algo muito pior. Mais uma vez, a diferença entre esse ditador e aqueles que o sucederão é que ele é um leigo e depois dele, os islamitas vão tomar o poder. E, como temos visto noutras paragens, com terríveis consequências para as populações.
Não estou com isto a querer desculpar as barbaridades que os ditos ditadores fizeram. Quero apenas recordar o ditado português que diz «aquele que depois de mim virá, bom de mim fará».
E porquê tudo isto? Porque o Islão, na sua vertente sunita, proíbe a exegese dos seus textos sagrados, exige a respectiva aplicação literal e isso produz procedimentos totalmente incompatíveis com os princípios democráticos e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Solução? Há duas hipóteses:
Convencer o clero sunita a proceder à exegese dos seus textos sagrados no sentido da infinita bondade de Alá; Criação de regimes políticos autoritários que façam o clero sunita temer mais o ditador laico do que a ira divina.
É que a vida deve ser vivida olhando para o futuro, mas só pode ser entendida olhando para o passado.
Nesta saga, o nosso primeiro grande erro foi há 40 anos termos abandonado o Xá da Pérsia e, entretanto, não termos aprendido nada.
FONTE: texto francês de Autor não identificado que me foi enviado pelo meu Amigo Coronel Cav. José Diogo Themudo
II - OPINIÃO
A vida humana é uma abstracção?
Face à gravidade extrema da situação venezuelana, há que fazer opções: ou condenar um número crescente de habitantes do país a morrerem de fome ou por falta de medicamentos; ou apoiar as iniciativas de ajuda humanitária, venham de onde vierem.
VICENTE JORGE SILVA     PÚBLICO, 10/2/19
 “A Venezuela não está a viver nenhuma crise humanitária”: a afirmação é de Nicolás Maduro e pretende ser uma resposta à iniciativa de ajuda humanitária americana que a ditadura venezuelana impediu de chegar ao seu destino.
Que Maduro negue as evidências mais gritantes, por meros motivos de sobrevivência política de um regime em estado de sítio, já não espanta. Mas que os seus apoiantes, nomeadamente em Portugal, insistam na negação por mera cegueira ideológica é que já parece insuportável. Não se trata apenas do PCP mas também de alguns opinion makers da esquerda “alter-mundialista” como Boaventura Sousa Santos ou Raquel Varela (sem esquecer a duplicidade hipócrita do Bloco de Esquerda que se recusa a tomar posição perante o agravamento da tragédia humanitária venezuelana). O fantasma do imperialismo americano e de Donald Trump revela-se mais incomodativo do que a constatação dessa tragédia – cuja existência, quando admitida, é aliás atribuída às inomináveis malfeitorias imperialistas visando o saque do petróleo venezuelano.
Se essas malfeitorias e o seu longo rasto histórico estão longe de constituir uma ficção, isso não pode servir de álibi para as responsabilidades específicas e indiscutíveis do regime de Maduro na catástrofe em que mergulhou a Venezuela (e que a torna também tão vulnerável aos apetites imperialistas). Ora, face à gravidade extrema da actual situação humanitária venezuelana, há que fazer opções: ou condenar um número crescente de habitantes do país a morrerem de fome ou pela falta de medicamentos, em nome da cumplicidade ideológica com Maduro e o seu regime; ou apoiar as iniciativas de ajuda humanitária, venham de onde vierem, que possam atenuar o terrível sofrimento de tantos venezuelanos. Face a este dilema não deveria haver dúvidas sobre a única escolha verdadeiramente humana, mas isso não parece incomodar aqueles para quem a dor dos outros não passa de uma abstracção ou de um percalço histórico explicável por motivos ideológicos (mesmo os mais abstrusos e repugnantes).
A vida humana é uma abstracção? Perante os inúmeros exemplos de barbaridade praticados desde a existência da nossa espécie, incluindo os genocídios, estaríamos quase inclinados a responder que sim. Mas também sabemos que aquilo que nos mantém vivos deveria ser, essencialmente, a esperança e a confiança na humanidade – não como abstracção mas como uma vivência concreta de solidariedade com o sofrimento dos nossos semelhantes (e não é preciso ser cristão para afirmá-lo). Parece piegas mas é mesmo assim.
Acontece que alguns acontecimentos recentes de origem e gravidade muito diversa nos têm interpelado em Portugal sobre essa questão. Um deles é a greve dos enfermeiros, com reflexos nas cirurgias. Outro, completamente diferente, é a sucessão de casos de violência doméstica e a estatística aterradora de assassinatos de mulheres e até de crianças (como foi o caso ocorrido há pouco no Seixal).
Se não está em causa a legitimidade do direito à greve por parte dos enfermeiros, não deixa de ser chocante a ligeireza com que esse direito é ostensivamente reivindicado mesmo quando possam estar em risco a saúde e as vidas dos doentes, como se estas fossem, de facto, uma abstracção.
Já os casos de violência doméstica e a banalização dos assassínios de mulheres são reveladores de um Portugal profundo e uma cultura suburbana onde os fenómenos de exclusão alimentam aquilo que há de pior nos seres humanos e os levam a encarar a vida dos semelhantes mais próximos – neste caso, as mulheres – como uma abstracção sangrenta. Este é um dos reflexos mais inquietantes – e mal assumidos – de um país duplamente doente e incapaz de enfrentar essa terrível doença, como se tem visto pela incapacidade de reacção das autoridades policiais e judiciais. Não, seja em que caso for, a vida humana não pode ser uma abstracção.
COMENTÁRIOS
Alvaro C. Pereira, 11.02.2019: Ainda bem que há gente com coragem para denunciar 'pensadores' estabelecidos! Alguns deles admirei e, agora, sinto repulsa! Falta gente desta, pois quando vemos artistas e intelectuais a assinar manifestos e ir para a rua por temerem a vitória de outros perigos inerentes à democracia, logo se calam quando já não falamos de possíveis perigos, mas realidades nuas e cruas! Mas são da cor da ideologia que sempre defenderam e que afirmam democrata! E aí, já são uns cobardes coniventes com os mais repugnante que o poder pode trazer. Discordo do autor num ponto, relacionado com a violência doméstica: ela também existe nas classes superiores, só mais disfarçada e não tão falada! Os crimes e homicídios espelham o preconceito e o modos operandi de classe mais pobres, mas não esqueçam as elites.
Célio Carreira, 10.02.2019: A cegueira ideológica faz com que certas pessoas olhem a realidade que as cerca como se usassem palas num dos olhos - o olho do lado das suas tendências políticas. Tal facto leva por norma a um deplorável relativismo moral e a uma reprovável visão maniqueísta do mundo e da vida humana. É o mesmo que dizer que determinado facto é bom ou mau em si de acordo com a nossa cor partidária, o nosso grupo social ou as nossas convicções morais. O nosso universo político, a nossa sociedade em geral estão impregnados destes valores negativos, que perpassam os nossos responsáveis governativos e respectivas oposições, bem como os comentadores encartados que neste jornal e noutros órgãos de informação nos envenenam a alma, com a bênção de muitos dos que nestas caixas peroram sobre a realidade nacional.
Ceratioidei, Oceanos 10.02.2019: A vida humana pode ser uma abstracção, certo é que nada vale, não tem preço. Por nada valer vale tudo. Por valer tudo, nada vale. Há honrosas excepções, de resto a preocupação com os outros é limitada aos que, por uma razão ou outra, são muito próximos, ou nem isso. Imagine all the people, o Lennon movia até às lágrimas. De crocodilo. Assim o provam as catástrofes humanitárias como na Venezuela. Em Portugal, os doentes, que a despeito de tudo, por falta de assistência médica vão sucumbindo à vista de toda a gente, ou os assassinos ignorados ou salvos e redimidos pela complacência de justiceiros reconhecidos para que a vida humana nunca deixe de ser a abstracção abjecta dos medíocres. O que rouba a vinha, o que fica à porta e o curioso passivo que tudo vê em abstracto: o triângulo perfeito.
Joao,  Portugal 10.02.2019: Bem lembrado. Mas podia falar dos milhões de vidas humanas ceifadas nas guerras na Líbia, do Iraque, da Síria, da Bósnia, do Iémen, etc ... mas essas são omitidas pelos media de "referência", são branqueadas e relativizadas transformando-as em banais e normais ... Esses crimes de milhões de mortos são justificados pelos opinadores como não havendo alternativa para "salvar" as pessoas que não fosse bombardeá-las e matá-las.
Joao, Portugal 10.02.2019: É exactamente pelo número de vidas ceifadas no mundo que eu ajuízo os regimes e governos. Não é pelas ideias ou palavras, não é pelas interpretações ou subjectividades, é pelo número de pessoas que matam, pelos milhões de pessoas que matam. É pelos números.
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia)10.02.2019: Certeiro, incisivo e lapidar. Perfeito. Raramente temos oportunidade de nos regalar a ler (malgré tema), texto mais bem escrito e apresentado. Grande desperdício, estar fora de órgão oficial de imprensa, esta sumidade.
Mario Coimbra, 10.02.2019: Excelente. Podíamos falar no Iemen, Síria, Sudão, outra vez, como exemplos adicionais de que a vida humana é mesmo abstracta. É a nossa humanidade enquanto seres individuais que está em causa também. Tudo parece banal, visto, revisto, e os nossos interesses continuam por cima de tudo. Quanto aos enfermeiros o direito à greve é para eles também. Têm é que cumprir as obrigações legais como todos nós.

Nenhum comentário: