Comentários para quê? Somos um
povo de poetas. A própria crónica de António Barreto, tão – como sempre –
perfeita, na sua sequência argumentativa, converge poeticamente para o
simbolismo, transformando a estrada de Borba em fábula representativa de um país de resignação,
de aparência, de escassez de visão, de muita dívida, sim, de desrespeito
também. Para continuar.
Os belos textos aterradores nos ficam, de par com a bondade dos apóstolos da igualdade social, que, juntamente com as demais perversões, vão encaminhando paulatinamente o país, estrada de Borba generalizada, para a derrocada sem tréguas.
Os belos textos aterradores nos ficam, de par com a bondade dos apóstolos da igualdade social, que, juntamente com as demais perversões, vão encaminhando paulatinamente o país, estrada de Borba generalizada, para a derrocada sem tréguas.
OPINIÃO
A fábula da
estrada de Borba
Não há mistério da estrada de Borba! Ali, é quase tudo
simples! Chama-se imprevidência e desmazelo.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 17 de
Fevereiro de 2019
Quem
viu, nunca esquece: as fabulosas imagens da estrada de Borba, feitas a
partir de drones, helicópteros e gruas. Já antes do desastre, mesmo sem estes
meios sofisticados, quem teve a oportunidade
de ver e admirar as pedreiras de Borba, Vila Viçosa e terras vizinhas, ainda
hoje recorda o espanto diante daquela beleza insólita. Pareciam catedrais
viradas ao contrário, de fora para dentro, ou arranha-céus do avesso,
designações que ocorriam a quantos por ali passavam. Naquelas enormes
paredes cor de mármore e argila, viam-se as marcas dos cortes feitos com
mecanismos simples de fio de aço. Dali saíam blocos rectangulares parecidos com
os modernos contentores que seguiam para as instalações de corte ou em camiões
TIR directamente para indústrias ou para a exportação. Aqui e ali, viam-se
tabuletas de alerta, “Perigo”, “Cuidado com os deslizes de terras”, nada de
particularmente inquietante.
De
vez em quando, quem tinha sorte encontrava restos de estátuas ou esculturas
romanas e similares. Os artistas vinham para as pedreiras iniciar o seu
trabalho, dado que não eram os blocos que viajavam. Às vezes, acidente
maior, o mármore não prestava, havia rupturas ou o artista batia mal. A estátua
invalidada ficava por ali. São restos preciosos. Estão hoje dezenas deles em
várias instituições públicas ou em casas de gente local.
Agora,
a imagem mais chocante é aquela feita a partir do drone, depois do desastre.
Todos os canais de televisão e jornais a publicaram. Nesta fantástica terra
alentejana, vermelha de barro e argila, recheada de manchas de mármore branco,
amarelo, argiloso ou ferrugento, uma estrada corre ao longo de dois
precipícios, um de cada lado. Desordem de terra, de pedregulhos e de água por
todo o sítio. Verdadeiros buracos com uma profundidade de dezenas de metros,
nem sempre visíveis por quem vai na estrada ou mesmo por quem passeia a pé nas
margens. Quem visse aquelas imagens antes da derrocada teria a impressão
exacta: aquilo vai cair, quem estiver à beira do precipício vai por ali
abaixo. Agora é mais fácil perceber. Já caiu. Mas aquela beleza
dramática continua ali, naquelas imagens fortes. Por que caiu? Como caiu? Não
era possível prever? Que precauções havia? Por que ninguém viu antes? Não terá
mesmo visto? Não havia relatórios, peritagens e estudos? Como explicar o
sucedido? Quem é responsável? Tratar-se-á de mais um mistério a acrescentar à
longa crónica de factos não desvendados e histórias não esclarecidas?
Não
há mistério da estrada de Borba! Ali, é quase tudo simples! Chama-se
imprevidência e desmazelo.
O desastre de Borba aconteceu porque tinha de acontecer. E também não parece
ser misteriosa a responsabilidade: é da autarquia, das empresas de mármore, da
Protecção Civil, da “Infra-estruturas de Portugal” e do Ministério. Misterioso
teria sido que não acontecesse. Misterioso é que não haja ainda mais desastres,
mais inundações, mais fogos de Verão, mais incêndios urbanos e industriais e
mais mortos nas estradas. Misterioso é que não haja mais doentes nas escolas e
mais acidentes no caminho-de-ferro.
Parece
uma metáfora para o nosso país. O crescimento é curto, menor do que a maior
parte da Europa. A poupança é ínfima. O investimento é reduzido, não há maneira
de crescer. A produtividade não cresce nem melhora. O que havia gastou-se em
consumo e reversão, sem intenção reformista, sem pressão para preparar o futuro.
O SNS está em crise real de falta de pessoas, de horas de trabalho, de
equipamentos, de renovação, de organização e de meios de toda a espécie, ainda
por cima com 35 horas de trabalho oferecidas em troca de 40, sem contrapartidas
nem recrutamento.
As
pontes, as estradas, as auto-estradas, os caminhos-de-ferro, as centrais
eléctricas, os transportes urbanos e grande parte dos hospitais e das escolas estão há anos sem manutenção, com pouco
acompanhamento, reduzida fiscalização e quase sem inspecção. Há liceus
onde chove há anos, à espera da sorte e do secretário de Estado. Segundo o
relatório da Infra-estruturas de Portugal, 60% das linhas de caminho-de-ferro
estão em medíocres ou más condições. Parte das composições e das
locomotivas está em estado de degradação tal que já não circulam e têm de ser
substituídas por espanholas alugadas!
Ainda
há muitas dezenas de escolas (alguns especialistas dizem 730) com coberturas de
amianto, verdadeiras ameaças à saúde de todos, professores e alunos. Proibida a
sua utilização há cerca de quinze anos, a remoção está muito longe de ter sido
completada. Ainda haverá dezenas de edifícios públicos, escritórios,
instalações fabris e armazéns de toda a espécie onde o amianto nunca foi
retirado.
A
história dos helicópteros do INEM e de outras entidades sugere corrupção e
descuido. Compram-se estranhos aparelhos que já passaram mais tempo no
estaleiro do que a trabalhar ou em estado de prontidão e para os quais não
estão previstos e preparados os dispositivos de manutenção e reparação.
Os
paióis de armamento e munições de Tancos ou as redes de comunicação SIRESP são
exemplos históricos de falta de manutenção e desleixo. Deveriam ficar nos
manuais: mesmo que nunca se venha a saber onde está o dolo e a prevaricação, os
casos são em si valiosos de ensinamentos.
Reparar
buracos nas ruas e nas estradas, limpar o lixo das cidades, substituir lâmpadas
da iluminação pública, avaliar com regularidade as pontes e os viadutos, limpar
as sarjetas e as valetas, cuidar dos aceiros e desmatar: numa só palavra, manutenção! É o que faz falta!
Portugal
é a estrada de Borba. Sem manutenção. O que for
simples e fácil é com os governos e os autarcas: assinar cheques, mandar vir
empresas internacionais para fazer obra, construir novo, mostrar bonito e fazer
de modo a que dê nas vistas. O que é preciso é que haja convénio, assinatura de
contrato, primeira pedra, inspecção, pré-inauguração e inauguração. Fazer novo
e inaugurar para impressionar são os objectivos, as regras e o vício. Manter, preservar, arranjar e conservar são
actividades menores, não dão votos, não geram lucros nem dão nas vistas.
Deitar
fora e fazer novo é regra de oiro. Não economizar é um hábito. Poupar é
forreta, não é moderno e não é de vanguarda. Estradas novas, edifícios novos e escolas
novas merecem atenção e dinheiro. Manter as antigas estradas, as casas, os
bairros, as escolas e os liceus, é conservador, não dá dinheiro, não surpreende
ninguém e não cria negócios. Como dizia um escritor ou um político há cem anos: não fazer o que
faz falta, mas
fazer o que dá nas vistas!
COMENTÁRIO
João Coutinho Lima, Arraiolos: Excelente analogia que retrata um país.
Vícios de séculos a viver á conta aguardando próximo subsidio e governante
"chico esperto". Como dizem os nossos vizinhos " Es lo que
hay".
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