É
claro que os homens são racistas, embora uns mais racistas do que outros. Grandes
amores e grandes amizades se criam entre pessoas de peles diferentes, como
entre pessoas de diferentes níveis de educação, ou sociais ou económicas. Por cá,
o próprio Camões, contrariando o
mito, foi atreito a uma profunda atracção por uma Bárbara escrava que amou e
descreveu com ternura, - Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que
pera meus olhos Fosse mais fermosa.- não esquecendo a chinesa
Dinamene, do seu “Alma minha gentil que
te partiste”, quando a deixou afogar-se, preferindo salvar “Os Lusíadas” a
nado, mas foi isso um bem para nós outros, que o livro glorificou, apesar da nossa
estreiteza.
É certo que, na irmã Espanha que nos
enjeita, não pela cor da pele, mas pela superioridade económica e cuido que
educacional também – são os ingleses que vivem de costas voltadas para os
irlandeses? E mesmo para o resto da Europa? – na nossa vizinha Espanha, digo, não
falemos de fraternidades – o D. Quixote
amou uma Aldonza Lourenço camponesa,
que recriou na sua Dulcineia del Toboso,
imortal de idealização e devoção.
Mas por cá, o que predomina
hoje, em termos de política contra o branco agressor das colónias, são os
queixumes e ódios que já os poetas conhecidos, como Craveirinha, Glória de
Santana, e tantos outros se fartaram de vociferar, para além das mornas da
diva caboverdiana Cesária Évora,
mostrando ao mundo as dolências do seu fado triste, simbolizado
provocatoriamente, nos pés descalços da sua apresentação em público, pelo menos
nos inícios da sua carreira vitoriosa, de má catadura altiva.
Sim o racismo é que está a
dar, pretexto para outras finórias segregações, já de nível partidário, de
esquerdas aparentemente compadecidas, contra direitas aparentemente refractárias
ao irmão negro.
Amores, ódios, afinal, sempre
a Humanidade se definiu por contrastes. E por hipocrisias também, valha a
verdade. Aos pecados mortais opõem-se as virtudes capitais, diz a doutrina antiga,
o Homem é um repositório de sensibilidades, que utiliza como pretextos quer
para adorar, quer para apedrejar, quer para aquecer em banho-maria.
Mas leiamos antes os bonitos e
eruditos textos de João Miguel Tavares
e de José Pacheco Pereira, que
discorrem expressivamente sobre o tal racismo e apresentam exemplos concretos,
nada de Dulcineias ou Dinamenes fantasiosas, investigadores que são das
verdades nuas e cruas deste nosso fado de todo o sempre, com mais ou menos partidos,
para melhor deglutirem os saborosos nacos da pátria-mãe:
I -OPINIÃO: Marcelino da Mata, o racismo e a memória
A relação de Portugal com os habitantes
das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica.
PÚBLICO, 31 de Janeiro de 2019
A propósito
de toda esta história do racismo em Portugal e das declarações de António
Costa sobre a cor
da sua pele, li há dias um curioso artigo de Camilo Lourenço
no Jornal de Negócios onde, a certa altura ele dizia isto: “Portugal não é
um país racista; é um país onde isoladamente acontecem casos de racismo. Aliás,
seria estranho qualificar de racista um país que tem governantes oriundos das
ex-colónias (já olharam para a ascendência de Marcelo?), o primeiro negro
(Mário Coluna) a capitanear uma selecção europeia e um negro como militar mais
condecorado da sua História…”
Como
os caros leitores sabem, na última
semana houve imensa gente a classificar-me como um tipo ignorante.
Aquela frase de Camilo Lourenço confirmou isso mesmo: eu não fazia a menor
ideia de que o militar mais condecorado da nossa História fosse negro.
Estou a falar de Marcelino da Mata. Embora já tivesse encontrado
referências ao seu nome a propósito da guerra em África, onde foi o oficial
mais destacado dos comandos guineenses, desconhecia o número das suas
condecorações. Ora, entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata recebeu duas
medalhas de 1ª classe, duas medalhas de 2ª classe e uma medalha de 3ª classe da
Cruz de Guerra, e foi feito Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada,
a mais elevada ordem honorífica do país.
Segundo
sei, Marcelino da Mata tem 78 anos e continua vivo, a residir em Portugal. Teve
a sorte de escapar com vida da Guiné (ao contrário de inúmeros elementos
africanos das forças especiais portuguesas, que foram abandonados pelo Exército
e acabaram fuzilados pelo PAIGC), mas teve o azar de cair nas mãos de militares
de extrema-esquerda no pós-25 de Abril, acabando barbaramente torturado no
quartel do RALIS (sim, houve muita tortura nos primeiros tempos da democracia
portuguesa). Felizmente, conseguiu fugir para Espanha, tendo regressado a
seguir ao 25 de Novembro.
Promovido
por distinção a capitão do Exército Português, graduado em tenente-coronel, no
ano passado falou-se da sua promoção a major. Vasco Lourenço opôs-se a essa
promoção num artigo aqui no PÚBLICO, intitulado “A
Guerra Colonial ainda não acabou?”. Argumentava
Vasco Lourenço que Marcelino da Mata fora responsável por vários crimes de
guerra (“resultado da acção de autênticos assassinos”), que constituíam “uma
enorme vergonha para o Portugal de Abril”.
É
muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exactidão quais
foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber: não há qualquer
biografia de Marcelino da Mata. Nenhum filme. Nenhum documentário. Sei que não
vivemos nos Estados Unidos da América, mas bolas, deveria haver limites para a
nossa falta de sensibilidade histórica e jornalística.
Pensem comigo: o militar português
mais condecorado de todos os tempos é negro; esteve na guerra colonial; há testemunhas
a dizer que cometeu crimes de guerra; há testemunhas a dizer que foi torturado
em 1975; ficou com sequelas graves; está vivo; mora em Sintra. E, pelos vistos,
ninguém acha que isto é uma história incrível. Como é possível?
Camilo
Lourenço tem razão: a relação de Portugal com os habitantes das suas antigas
colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica. Se
está mais do que demonstrado que o racismo está ligado ao medo do outro e ao
desconhecido, talvez possamos começar por aqui: aprender alguma coisa sobre a
história dos negros que marcaram a nossa História. Alguém entreviste este
homem, se faz favor.
II – OPINIÃO: Há coisas que se podem
diminuir, mas não se podem eliminar – como o racismo
Uma coisa é a intransigência absoluta
com o racismo, outra a indústria política do anti-racismo.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 2 de Fevereiro de 2019
Se
queremos encontrar um grande optimista, num meio intelectual em que essa
atitude é uma excepção, temos que ler Steven Pinker. Tive o gosto de
apresentar uma sua conferência no Porto, discutir e conversar com ele em
público e em privado. Nessas discussões e conversas, eu referi-lhe a minha
discordância genérica com a sua tese, por isso eu estava mais do lado da regra
e ele da excepção. Não tanto porque ele não tivesse razão em quase tudo o
que dizia, em particular na longa série de exemplos estatísticos de como o
mundo estava melhor do que o que nós pensamos, mas naquilo que ele não incluía
nas estatísticas, ou que as estatísticas não podem dizer. Pinker mostrava
como a evolução cronológica no período contemporâneo, desde a Revolução
Francesa, revelava significativas melhorias para o bem-estar da humanidade, em
particular desde 1945.
As guerras hoje matavam muito menos gente, a pena de morte e a tortura
tinham consistentemente recuado, os direitos das mulheres e das crianças
melhoravam e o mesmo acontecia com as violências domésticas associadas, as
pessoas tratavam melhor os animais, o bem-estar económico e social no mundo no
seu conjunto tinha dado um salto (em particular nos muitos milhões de pessoas
que viviam na miséria na China e na Índia), a ciência, e a medicina em
particular, tinha conseguido avanços importantes no combate a muitas doenças, a
esperança de vida aumentava, o analfabetismo diminuía, o trabalho infantil, as
condições brutais de trabalho estavam a ficar reduzidos a meia dúzia de países,
a escravatura quase desapareceu, o número de crimes violentos reduzia-se, etc.,
etc.
De
um modo geral, aquilo a que chamamos “direitos humanos”, mal ou bem, conheciam
melhores práticas quando olhávamos para o mundo no seu conjunto. Esta evolução era muito significativa na Ásia, e
apenas África conhecia um desenvolvimento mais lento. Eu concordava com isto
tudo e penso ser salutar compreender estas melhorias, que muitas vezes são
esquecidas em certos discursos esquerdistas, que, por exemplo, têm muita
dificuldade em incluir a China nas suas análises globais.
Mas...
mesmo assim tinha relutância em ir muito longe na afirmação dessa tendência,
porque havia coisas que não encaixavam. Uma delas é a existência
de armamento termonuclear desde a década de 1950, que mostra que a humanidade
pode destruir-se a si própria, pela primeira vez desde que existe. É um salto
qualitativo brutal, um ponto sem retorno, e é o seu risco que impede os
cientistas que controlam o chamado “relógio do
apocalipse” de deixar de colocar a humanidade a poucos minutos do
fim. Aliás, o “relógio”, que chegou a estar a 15 minutos, hoje tem vindo a
diminuir o tempo para o “apocalipse”, com a presidência Trump, para dois
minutos.
Outra
é do domínio histórico e cultural no sentido lato e tem a ver com grandes
diferenças “civilizacionais” que, no conjunto da história moderna, pouco se
esbateram, como a que separa o mundo ocidental do Islão, em matérias, por
exemplo, como a emancipação e igualdade das mulheres. Contrariamente ao
bem-avontadismo optimista, as “civilizações” dialogam muito pouco e permanecem
núcleos duros de diferenças e conflitos em todas as fronteiras.
Outra é mais complicada de discutir, e tem a ver com a matéria das
“guerras culturais”. Consiste em saber se um conjunto de atitudes
violentas de pessoa a pessoa ou de grupo em grupo, como a xenofobia e
o racismo,
tendo diminuído sem dúvida, não permaneciam num resíduo, muitas vezes muito
pouco resíduo, que não é possível eliminar com eficácia. Para quem estuda
história, a humanidade e as suas sociedades não são uma coisa nem higiénica,
nem higienizável em absoluto. Isso não significa que se aceite o status quo, e
que o olhar desapiedado sobre os comportamentos humanos impeça a acção. Mas
perfeição não há e o “homem novo” também não, é o mesmo de sempre e Deus fê-lo
mal feito.
É também por isto –
escandalizem-se pois! – que não é possível eliminar o racismo seja em que
sociedade for. Pode-se diminuir significativamente pela melhoria económica e
social, já menos pela educação, e menos ainda pela repressão, no caso de
crimes, mas permanece sempre um resíduo, um reservatório, cuja tentativa de
eliminação por políticas radicais não só é ineficaz como é contraproducente.
Esse
reservatório aumenta e diminui conforme outros aspectos da conflitualidade
social que lhe são adjacentes e, em particular, quando falha o melting pot para
os imigrantes. É o que acontece nos EUA, em França, na Alemanha, com a crise
dos refugiados e/ou as políticas anti-imigração à Trump, mas ainda
não acontece em Portugal. Esta
afirmação pode ser polémica, mas é sustentável nos factos. Há
racismo às claras e racismo inscrito de forma menos visível em Portugal. Há.
Mas já foram a França, à Alemanha, ou à Rússia, já para não dizer aos EUA?
Uma
má solução é a de fazer proliferar uma legislação punitiva e proibitiva, que é
inútil, mas que gera efeitos perversos na liberdade de expressão e no
policiamento da linguagem. Ainda pior é acantonar o anti-racismo
em discursos radicais que isolam uma parte das comunidades numa “guerra
cultural” que, quase de certeza, vão perder.
Nos
EUA, muitos ajudaram a alterar a condição dos negros nos estados do Sul e a
combater o racismo. Mas quem
deu à luta contra o racismo uma dimensão nacional foi Martin
Luther King, muitos pastores negros, muitos voluntários brancos que, nos piores anos, se dirigiram para o sul, alguns
pagando com a vida a sua luta. Mas não foram os Black Panther, por muito atractiva
que fosse a sua coreografia de casacos de couro e armas automáticas na mão,
porque tinham também direito à protecção da Segunda Emenda.
Uma coisa é a intransigência absoluta
com o racismo, outra a indústria política do anti-racismo.
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