terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Histórias de todo o sempre



É claro que os homens são racistas, embora uns mais racistas do que outros. Grandes amores e grandes amizades se criam entre pessoas de peles diferentes, como entre pessoas de diferentes níveis de educação, ou sociais ou económicas. Por cá, o próprio Camões, contrariando o mito, foi atreito a uma profunda atracção por uma Bárbara escrava que amou e descreveu com ternura, - Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que pera meus olhos Fosse mais fermosa.- não esquecendo a chinesa Dinamene, do seu “Alma minha gentil que te partiste”, quando a deixou afogar-se, preferindo salvar “Os Lusíadas” a nado, mas foi isso um bem para nós outros, que o livro glorificou, apesar da nossa estreiteza.
É certo que, na irmã Espanha que nos enjeita, não pela cor da pele, mas pela superioridade económica e cuido que educacional também – são os ingleses que vivem de costas voltadas para os irlandeses? E mesmo para o resto da Europa? – na nossa vizinha Espanha, digo, não falemos de fraternidades – o D. Quixote amou uma Aldonza Lourenço camponesa, que recriou na sua Dulcineia del Toboso, imortal de idealização e devoção.
Mas por cá, o que predomina hoje, em termos de política contra o branco agressor das colónias, são os queixumes e ódios que já os poetas conhecidos, como Craveirinha, Glória de Santana, e tantos outros se fartaram de vociferar, para além das mornas da diva caboverdiana Cesária Évora, mostrando ao mundo as dolências do seu fado triste, simbolizado provocatoriamente, nos pés descalços da sua apresentação em público, pelo menos nos inícios da sua carreira vitoriosa, de má catadura altiva.
Sim o racismo é que está a dar, pretexto para outras finórias segregações, já de nível partidário, de esquerdas aparentemente compadecidas, contra direitas aparentemente refractárias ao irmão negro.
Amores, ódios, afinal, sempre a Humanidade se definiu por contrastes. E por hipocrisias também, valha a verdade. Aos pecados mortais opõem-se as virtudes capitais, diz a doutrina antiga, o Homem é um repositório de sensibilidades, que utiliza como pretextos quer para adorar, quer para apedrejar, quer para aquecer em banho-maria.
Mas leiamos antes os bonitos e eruditos textos de João Miguel Tavares e de José Pacheco Pereira, que discorrem expressivamente sobre o tal racismo e apresentam exemplos concretos, nada de Dulcineias ou Dinamenes fantasiosas, investigadores que são das verdades nuas e cruas deste nosso fado de todo o sempre, com mais ou menos partidos, para melhor deglutirem os saborosos nacos da pátria-mãe:


I -OPINIÃO: Marcelino da Mata, o racismo e a memória
A relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica.
PÚBLICO, 31 de Janeiro de 2019
A propósito de toda esta história do racismo em Portugal e das declarações de António Costa sobre a cor da sua pele, li há dias um curioso artigo de Camilo Lourenço no Jornal de Negócios onde, a certa altura ele dizia isto: “Portugal não é um país racista; é um país onde isoladamente acontecem casos de racismo. Aliás, seria estranho qualificar de racista um país que tem governantes oriundos das ex-colónias (já olharam para a ascendência de Marcelo?), o primeiro negro (Mário Coluna) a capitanear uma selecção europeia e um negro como militar mais condecorado da sua História…”
Como os caros leitores sabem, na última semana houve imensa gente a classificar-me como um tipo ignorante. Aquela frase de Camilo Lourenço confirmou isso mesmo: eu não fazia a menor ideia de que o militar mais condecorado da nossa História fosse negro. Estou a falar de Marcelino da Mata. Embora já tivesse encontrado referências ao seu nome a propósito da guerra em África, onde foi o oficial mais destacado dos comandos guineenses, desconhecia o número das suas condecorações. Ora, entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata recebeu duas medalhas de 1ª classe, duas medalhas de 2ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de Guerra, e foi feito Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem honorífica do país.
Segundo sei, Marcelino da Mata tem 78 anos e continua vivo, a residir em Portugal. Teve a sorte de escapar com vida da Guiné (ao contrário de inúmeros elementos africanos das forças especiais portuguesas, que foram abandonados pelo Exército e acabaram fuzilados pelo PAIGC), mas teve o azar de cair nas mãos de militares de extrema-esquerda no pós-25 de Abril, acabando barbaramente torturado no quartel do RALIS (sim, houve muita tortura nos primeiros tempos da democracia portuguesa). Felizmente, conseguiu fugir para Espanha, tendo regressado a seguir ao 25 de Novembro.
Promovido por distinção a capitão do Exército Português, graduado em tenente-coronel, no ano passado falou-se da sua promoção a major. Vasco Lourenço opôs-se a essa promoção num artigo aqui no PÚBLICO, intitulado “A Guerra Colonial ainda não acabou?”. Argumentava Vasco Lourenço que Marcelino da Mata fora responsável por vários crimes de guerra (“resultado da acção de autênticos assassinos”), que constituíam “uma enorme vergonha para o Portugal de Abril”.
É muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exactidão quais foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber: não há qualquer biografia de Marcelino da Mata. Nenhum filme. Nenhum documentário. Sei que não vivemos nos Estados Unidos da América, mas bolas, deveria haver limites para a nossa falta de sensibilidade histórica e jornalística.
Pensem comigo: o militar português mais condecorado de todos os tempos é negro; esteve na guerra colonial; há testemunhas a dizer que cometeu crimes de guerra; há testemunhas a dizer que foi torturado em 1975; ficou com sequelas graves; está vivo; mora em Sintra. E, pelos vistos, ninguém acha que isto é uma história incrível. Como é possível?
Camilo Lourenço tem razão: a relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica. Se está mais do que demonstrado que o racismo está ligado ao medo do outro e ao desconhecido, talvez possamos começar por aqui: aprender alguma coisa sobre a história dos negros que marcaram a nossa História. Alguém entreviste este homem, se faz favor.
II – OPINIÃO: Há coisas que se podem diminuir, mas não se podem eliminar – como o racismo
Uma coisa é a intransigência absoluta com o racismo, outra a indústria política do anti-racismo.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 2 de Fevereiro de 2019
Se queremos encontrar um grande optimista, num meio intelectual em que essa atitude é uma excepção, temos que ler Steven Pinker. Tive o gosto de apresentar uma sua conferência no Porto, discutir e conversar com ele em público e em privado. Nessas discussões e conversas, eu referi-lhe a minha discordância genérica com a sua tese, por isso eu estava mais do lado da regra e ele da excepção. Não tanto porque ele não tivesse razão em quase tudo o que dizia, em particular na longa série de exemplos estatísticos de como o mundo estava melhor do que o que nós pensamos, mas naquilo que ele não incluía nas estatísticas, ou que as estatísticas não podem dizer. Pinker mostrava como a evolução cronológica no período contemporâneo, desde a Revolução Francesa, revelava significativas melhorias para o bem-estar da humanidade, em particular desde 1945.
As guerras hoje matavam muito menos gente, a pena de morte e a tortura tinham consistentemente recuado, os direitos das mulheres e das crianças melhoravam e o mesmo acontecia com as violências domésticas associadas, as pessoas tratavam melhor os animais, o bem-estar económico e social no mundo no seu conjunto tinha dado um salto (em particular nos muitos milhões de pessoas que viviam na miséria na China e na Índia), a ciência, e a medicina em particular, tinha conseguido avanços importantes no combate a muitas doenças, a esperança de vida aumentava, o analfabetismo diminuía, o trabalho infantil, as condições brutais de trabalho estavam a ficar reduzidos a meia dúzia de países, a escravatura quase desapareceu, o número de crimes violentos reduzia-se, etc., etc.
De um modo geral, aquilo a que chamamos “direitos humanos”, mal ou bem, conheciam melhores práticas quando olhávamos para o mundo no seu conjunto. Esta evolução era muito significativa na Ásia, e apenas África conhecia um desenvolvimento mais lento. Eu concordava com isto tudo e penso ser salutar compreender estas melhorias, que muitas vezes são esquecidas em certos discursos esquerdistas, que, por exemplo, têm muita dificuldade em incluir a China nas suas análises globais.
Mas... mesmo assim tinha relutância em ir muito longe na afirmação dessa tendência, porque havia coisas que não encaixavam. Uma delas é a existência de armamento termonuclear desde a década de 1950, que mostra que a humanidade pode destruir-se a si própria, pela primeira vez desde que existe. É um salto qualitativo brutal, um ponto sem retorno, e é o seu risco que impede os cientistas que controlam o chamado “relógio do apocalipse” de deixar de colocar a humanidade a poucos minutos do fim. Aliás, o “relógio”, que chegou a estar a 15 minutos, hoje tem vindo a diminuir o tempo para o “apocalipse”, com a presidência Trump, para dois minutos.
Outra é do domínio histórico e cultural no sentido lato e tem a ver com grandes diferenças “civilizacionais” que, no conjunto da história moderna, pouco se esbateram, como a que separa o mundo ocidental do Islão, em matérias, por exemplo, como a emancipação e igualdade das mulheres. Contrariamente ao bem-avontadismo optimista, as “civilizações” dialogam muito pouco e permanecem núcleos duros de diferenças e conflitos em todas as fronteiras.
Outra é mais complicada de discutir, e tem a ver com a matéria das “guerras culturais”. Consiste em saber se um conjunto de atitudes violentas de pessoa a pessoa ou de grupo em grupo, como a xenofobia e o racismo, tendo diminuído sem dúvida, não permaneciam num resíduo, muitas vezes muito pouco resíduo, que não é possível eliminar com eficácia. Para quem estuda história, a humanidade e as suas sociedades não são uma coisa nem higiénica, nem higienizável em absoluto. Isso não significa que se aceite o status quo, e que o olhar desapiedado sobre os comportamentos humanos impeça a acção. Mas perfeição não há e o “homem novo” também não, é o mesmo de sempre e Deus fê-lo mal feito.
É também por isto – escandalizem-se pois! – que não é possível eliminar o racismo seja em que sociedade for. Pode-se diminuir significativamente pela melhoria económica e social, já menos pela educação, e menos ainda pela repressão, no caso de crimes, mas permanece sempre um resíduo, um reservatório, cuja tentativa de eliminação por políticas radicais não só é ineficaz como é contraproducente.
Esse reservatório aumenta e diminui conforme outros aspectos da conflitualidade social que lhe são adjacentes e, em particular, quando falha o melting pot para os imigrantes. É o que acontece nos EUA, em França, na Alemanha, com a crise dos refugiados e/ou as políticas anti-imigração à Trump, mas ainda não acontece em Portugal. Esta afirmação pode ser polémica, mas é sustentável nos factos. Há racismo às claras e racismo inscrito de forma menos visível em Portugal. Há. Mas já foram a França, à Alemanha, ou à Rússia, já para não dizer aos EUA?
Uma má solução é a de fazer proliferar uma legislação punitiva e proibitiva, que é inútil, mas que gera efeitos perversos na liberdade de expressão e no policiamento da linguagem. Ainda pior é acantonar o anti-racismo em discursos radicais que isolam uma parte das comunidades numa “guerra cultural” que, quase de certeza, vão perder.
Nos EUA, muitos ajudaram a alterar a condição dos negros nos estados do Sul e a combater o racismo. Mas quem deu à luta contra o racismo uma dimensão nacional foi Martin Luther King, muitos pastores negros, muitos voluntários brancos que, nos piores anos, se dirigiram para o sul, alguns pagando com a vida a sua luta. Mas não foram os Black Panther, por muito atractiva que fosse a sua coreografia de casacos de couro e armas automáticas na mão, porque tinham também direito à protecção da Segunda Emenda.
Uma coisa é a intransigência absoluta com o racismo, outra a indústria política do anti-racismo.

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