sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Histórias de encantar


Uma bonita história de sucesso futuro nosso, este das pontes entre Portugal e o Japão, que me faz copiar um excerto da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto sobre a primeira espingarda no Japão, que foi oferecida por Diogo Zeimoto ao nautaquim, príncipe da ilha japonesa de Tanixumá, que muito a prezou e por ela mandou fazer milhares.
Eis alguns passos, do capítulo 14 de “Peregrinação”, com Selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa (in “Textos Literários”), confirmativos do nosso pleno mérito (por glórias passadas), em participar no projecto das actuais pontes comerciais, segundo informação de CECILIA MALMSTRÖM, que oxalá Deus a ouça, por ora, pois nunca se sabe o preço futuro destes acordos, negociantes que costumamos ser, de proveito mais pessoal do que comunitário, e por esse motivo, pouco lucrativos em termos nacionais, é ponto assente.
Para mim, foi delicioso rever o texto de FMP, e por isso o copiei, num esforço participativo (titânico) para o encaminhamento das negociações sobre a ponte comercial, lembrando pioneirismos passados, a merecer galardão.

 Peregrinação”, cap. 134:
“… Nós, os três portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocupássemos, gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes (= deuses, ídolos), que eram de muita majestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos faziam muito gasalhado, porque toda esta gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversável.
No meio desta nossa ociosidade, um dos três que éramos, por nome Diogo Zeimoto, tomava alguas vezes por passatempo tirar com ua espingarda que tinha de seu, a que era muito inclinado e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir ter a um paul, matou ele com a munição uas vinte e seis marrecas.
Os japões, vendo aquele novo modo de tiros, que nunca até então tinham visto, deram rebate disso ao nautaquim, que neste tempo estava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual, espantado desta novidade, mandou logo chamar o Zeimoto ao paúl onde andava caçando, e quando o viu vir com a espingarda às costas e dous chins carregados de caça, fez disto tamanho caso, que em todas as cousas se lhe enxergava o gosto do que via, porque, como até então nunca se tinha visto tiro de fogo, não se sabiam determinar co que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria..
O Zeimoto, vendo-os tão pasmados e o nautaquim tão contente, fez perante eles três tiros em que matou um milhano e duas rolas; e por não gastar palavras no encarecimento deste negócio e por escusar de contar tudo o que se passou nele, porque é cousa para se não crer, não direi mais senão que o nautaquim levou o Zeimoto nas ancas de um quartão (= cavalo curto e grosso, quase quadrado) em que ia, acompanhado de muita gente e quatro porteiros com bastões ferrados nas mãos, os quais, bradando ao povo, que neste tempo era sem conto, deziam:
- O nautaquim, príncipe desta ilha Tanixumá e senhor de nossas cabeças, manda e quer que todos vós outros, e assi os mais que habitam a terra dantre ambos mares, honrem e venerem este chenchicogim (=Termo japonês que significa “homem da Índia”. Assim se chamava aos portugueses, por irem da Índia para o Japão) do cabo do mundo, porque de hoje para diante o faz seu parente, assim como os facharões (=companheiros) que se assentam junto de sua pessoa, sô pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa vontade.
A que todo o povo, com grande tumulto de vozes, respondia: - Assi se fará para sempre
E chegando o Zeimoto com esta pompa mundana ao primeiro terreiro dos paços, descavalgou o nautaquim e o tomou pela mão, ficando nós os dous  (F. Mendes Pinto e Cristóvão Borralho) um bom espaço atrás, e o levou sempre junto de si, até ua casa onde o assentou à mesa consigo, na qual também, por lhe fazer a maior honra de todas, quis que dormisse aquela noite, e sempre dali por diante o favoreceu muito, e a nós por seu respeito em algua maneira.
E entendendo então o Diogo Zeimoto que em nenhua cousa podia milhor satisfazer ao nautaquim algua parte destas honras que lhe fizera, nem um que lhe desse mais gosto que em lhe dar a espingarda, lha ofereceu um dia que vinha da caça com muita soma de pombas e de rolas, a qual ele aceitou por peça de muito preço, e lhe afirmou que a estimava muito mais que o tisouro da China, e lhe mandou dar por ela mil taéis de prata, e lhe rogou muito que lhe ensinasse a fazer a pólvora, porque sem ela ficava a espingarda sendo um pedaço de ferro desaproveitado, o que o Zeimoto lhe prometeu e lho cumpriu.
E como dali por diante todo o gosto e passatempo do nautaquim era no exercício desta espingarda, vendo os seus que em nenhua cousa o podiam contentar mais que naquela de que ele mostrava tanto gosto, ordenaram de mandarem fazer por aquela outras do mesmo teor, e assi o fizeram logo. De maneira que o fervor deste apetite e curiosidade foi dali por diante em tamanho crescimento, que já quando nós dali partimos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas.
E despois, a derradeira vez que me lá mandou o vizo-rei D. Afonso de Noronha com um presente para o rei do Bungo, que foi no ano 1556, me afirmaram os japões que naquela cidade de Fucheo, que é a metrópoii deste reino, havia mais de trinta mil. E fazendo eu disto grande espanto, por me parecer que não era possível que esta cousa fosse em tanta multiplicação, me disseram alguns mercadores, homens nobres e de respeito, e mo afirmaram com muitas palavras, que em toda a ilha do Japão havia mais de trezentas mil espingardas, e que eles somente tinham levado de veniaga para os léquios, em seis vezes que lá tinham ido, vinte e cinco mil.
De modo que por esta só que o Zeimoto aqui deu ao Nautaquim com boa tenção e por boa amizade, e por lhe satisfazer parte das honras e mercês que tinha recebido dele, como atrás fica dito, se encheu a terra delas em tanta quantidade, que não há já aldea nem lugar, por pequeno que seja, donde não saiam de cento para cima, e nas cidades e vilas mais notáveis não se fala senão por muitos milhares delas. E por aqui se saberá que gente esta é e quão inclinada, por natureza, ao exercício militar, no qual se deleita mais que todas as outras nações que agora se sabem.
Peregrinação, cap. 134


OPINIÃO
Construir pontes entre Portugal e o Japão
O Acordo de Parceria Económica entre a União Europeia e o Japão proporcionará um impulso económico vital tanto à UE como a Portugal.
CECILIA MALMSTRÖM
PÚBLICO, 1 de Fevereiro de 2019, 6:43
Corre por aí uma história: o mundo está para fechar. Há quem exija novas fronteiras, muros e divisões, alegando que isso é inevitável. Após décadas a estabelecer ligações, a reforçar laços e a aproveitar oportunidades, afirmam que, agora, é tempo de voltar atrás. Isto podia ser uma narrativa convincente, mas na realidade não passa de ficção.

Embora haja algumas excepções marcantes – há quem esteja a dar o seu melhor para fechar fronteiras –, a tendência é ainda esmagadoramente no sentido de mais contactos e de maior cooperação. Alguns separam-se, mas muitos mais se juntam e ganham força. A UE é um grande exemplo de como são possíveis as soluções 'win-win', em que todos ficamos a ganhar, em especial no que toca ao comércio. Negociar com uma voz comum, em nome de 500 milhões de pessoas, coloca-nos numa posição muito mais forte.

Amanhã, a cooperação europeia em matéria de política comercial culmina num dos maiores êxitos da última década: a entrada em vigor do Acordo de Parceria Económica entre a UE e o Japão. Este acordo proporcionará um impulso económico vital tanto à UE como a Portugal. É o maior acordo comercial bilateral jamais negociado, cobrindo uma área com mais de 630 milhões de habitantes.

O Japão já é o 17.º maior parceiro comercial de Portugal fora da UE. O acordo derruba obstáculos para as empresas, como os direitos aduaneiros, e reduz a burocracia. Trata-se de uma boa notícia, em especial para as pequenas e médias empresas (PME). Estas representam 99% das empresas da UE. No caso português, das 898 empresas que exportam para o Japão, 87% delas são PME. E para além da redução dos obstáculos, a UE inclui disposições especiais para ajudar as empresas mais pequenas a aceder aos mercados.

As pequenas empresas criam 85% dos novos postos de trabalho na UE, daí que o seu acesso reforçado ao comércio seja um motor para o crescimento do emprego. Actualmente, em Portugal, há quase seis mil empregos que dependem das trocas comerciais com o Japão. Extrapolada à escala da UE, esta realidade traduz-se em quase 740.000 postos de trabalho. O comércio externo da UE representa 36 milhões de postos de trabalho em toda a Europa. Em média, estes empregos também são melhores, com salários 12% mais elevados. O comércio livre tem sido um motor do emprego e do crescimento na Europa – e nisso somos bons.

Nos últimos anos, temos apostado decididamente na modernização da nossa política comercial. O acordo entre a UE e o Japão é um acordo comercial de vanguarda que comporta disposições que promovem as tecnologias verdes, normas jurídicas sólidas para proteger os direitos dos trabalhadores, a abertura do mercado dos serviços no Japão, bem como a possibilidade de as empresas da UE participarem em concursos públicos, nomeadamente para contratos no setor ferroviário. O Japão compromete-se a respeitar as normas internacionais sobre veículos automóveis, o que facilitará muito a exportação de automóveis para o Japão. O acordo garante ainda o respeito pela propriedade intelectual e confere proteção a mais de 200 especialidades certificadas da UE – incluindo o Queijo de São Jorge e a Pêra Rocha do Oeste.

Todos estes benefícios são importantes para a economia portuguesa, mas convém relembrar que este acordo ultrapassa a esfera da economia: trata-se também de uma aliança estratégica. Quando alguns fecham as suas portas, é importante que os que acreditam na abertura se juntem. Temos de ser capazes de demonstrar os benefícios da cooperação e defender as instituições que estiveram na base da estabilidade mundial durante décadas.

Depois de anos de instabilidade e de guerra, os que nos precederam construíram instituições para reforçar a nossa segurança económica e política: as Nações Unidas, para a cooperação política, e a Organização Mundial do Comércio (OMC), para criar um ambiente previsível para o comércio internacional. Não podemos voltar ao comércio de outros tempos – com guerras comerciais vingativas, direitos aduaneiros a flutuar ao sabor das retaliações e a ausência de regras para os serviços ou a propriedade intelectual. O sistema actual não é perfeito, mas não podemos dar-nos ao luxo de o perder. A Europa está disposta a defender estas instituições, e o Japão está connosco. Este acordo comercial vai reforçar os nossos laços e abrir caminho a uma cooperação aprofundada em domínios como a reforma da OMC.

Nos próximos anos, vamos ter de enfrentar uma dura realidade. Em breve, mais de 90% do crescimento mundial vai ocorrer fora da UE. Os nossos concorrentes estão a construir alianças e a reforçar posições. Tanto os nossos acordos comerciais bilaterais como a OMC são essenciais para garantir que a globalização decorre de uma forma justa e assente em regras.

Se quisermos manter a nossa posição de liderança, temos de estreitar os laços que nos permitirão resistir nas águas revoltas da política mundial. O nosso acordo com o Japão é um desses laços, na medida em que reforça a nossa economia e a economia dos nossos parceiros japoneses, ao mesmo tempo que nos permite criar um círculo de amigos que partilham os mesmos princípios e que será vital para o futuro.


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