quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

O certo é que todos eles têm mais garra



Refiro-me, naturalmente, ao povo espanhol, de aquém e além-mar na América, ambos descritos por Rui Ramos, ou não fossem todos eles da natureza rija do bravo cavaleiro da Mancha. Nós não temos um herói assim rijo, sequer de ficção, o Viriato sendo real e montesino, de duvidoso estilo, embora evocado por um Camões, bastante ficcionista nas loas pátrias.
A diferença das direitas em Espanha e em Portugal /premium
RUI RAMOSR          OBSERVADOR, 12/2/2019
Em Espanha, as direitas saem à rua para exigir a demissão do governo socialista; em Portugal, as direitas discutem em anfiteatros qual delas vai ajudar mais o governo socialista. Porquê a diferença?
Nos últimos dias, as direitas portuguesas andaram por anfiteatros a apresentar candidatos e a discutir, como os discípulos na última ceia, quem, de entre elas, irá ajudar o próximo governo minoritário de António Costa. Do outro lado da fronteira, as direitas espanholas desceram juntas à rua a exigirem a demissão do governo minoritário de Pedro Sanchez. Não se podia ter contraste maior.
As direitas portuguesas continuam a ser vagas. O PSD deixou o seu candidato atacar um ministro socialista, mas o presidente do partido prometeu logo “acordos” e, se necessário, auxílio parlamentar a António Costa. Na Aliança, a contradição não precisou de dois homens, mas apenas de um: Santana Lopes jurou que “nunca” se “juntará” ao PS, mas ao mesmo tempo exigiu ao presidente da república um “pacto para o crescimento económico” – pacto que, presumivelmente, incluirá o PS. O CDS pareceu mais definitivo ao garantir que “nunca servirá para validar este governo socialista”.
Para Rui Rio, o papel histórico da direita portuguesa reduz-se a isto: permitir ao PS governar sem precisar dos votos do PCP e do BE. Mas o PS não precisou dos votos do PCP e do BE para governar durante a maior parte do tempo desde 1995. Não, o problema para as direitas não deveria ser simplesmente a influência do PCP e do BE. Esse, aliás, deveria ser sobretudo um problema do PS. Em Espanha, PP, Ciudadanos e Vox colocaram aos cidadãos a questão de outra maneira: para retirar influência aos separatistas, é preciso afastar o PSOE do poder, e não simplesmente substituir os separatistas no apoio a Sanchez. O problema das direitas deveria ser, como em Espanha, a governação socialista, na medida em que representa um projecto de poder que, com as suas bancarrotas, controleirismos, escândalos e conflitos sociais, se tornou um factor de insegurança e de incerteza incompatível com uma prosperidade duradoura.
Foi isso que ouvimos? Não. Ao PSD, ouvimos críticas a Pedro Marques. À Aliança, “propostas” sobre “seguros de saúde”. Ao CDS, a defesa da soberania fiscal. Mas não ouvimos, de nenhum deles, a urgência de pôr termo a uma governação que, depois dos devaneios iniciais da Terceira Via, há muito que não é mais do que o esforço de uma clique para dominar o Estado e a sociedade, com as mais nefastas consequências: foi assim que se destruiu uma parte da banca e algumas grandes empresas, e foi assim que se reduziu a nossa participação no euro, inicialmente concebida como um factor de adaptação da economia, a um simples meio de endividamento.
As direitas têm agora o hábito de atacar as “esquerdas” ou a “frente de esquerda”. É um tiro ao lado. O problema não são as “esquerdas” e a sua “frente”, mas este PS, esteja ou não unido às outras esquerdas. Porque é que as direitas portuguesas não são capazes de dizer isso, como as direitas em Espanha? Porque em Espanha está em causa a integridade do Estado? Mas um Estado mantido artificialmente pelo BCE e ameaçado de partilha regionalista, como em Portugal, não é menos alarmante. A dificuldade aqui é que todos os partidos vão às eleições deste ano a pensar no xadrez parlamentar com mais um governo minoritário do PS, e querem ressalvar as vantagens que podem tirar da situação – uns colaborando com o governo, outros opondo-se, e outros ainda fazendo as duas coisas. Ninguém parece ter cabeça para mais nada.
Desse ponto de vista, e já que todos nos dão como condenados a este governo socialista, quase só parece restar um meio de desanuviar a política portuguesa: uma maioria absoluta que concentrasse toda a responsabilidade no PS, para que não houvesse mais desculpas nem equívocos, e que obrigasse os outros partidos, sem a esperança de negócios parlamentares, a proporem finalmente alternativas a um arranjo de poder cuja agonia já se prolonga há demasiado tempo.
II - VENEZUELA:       Duas ilusões sobre a Venezuela /premium
RUI RAMOS              OBSERVADOR, 1/2/2019
A tirania chavista na Venezuela não é socialista? Quer dizer que nacionalizar, condicionar e subsidiar já não é socialismo? E nesse caso, porque é que tantos líderes da esquerda apoiaram Chávez?
A razão pela qual haverá cerca de 500 mil portugueses e descendentes de portugueses na Venezuela é que esse país, há quarenta anos, era um dos mais prósperos do mundo, com um PIB per capita superior a Portugal. A razão pela qual, desses portugueses, pelo menos seis mil já regressaram à Madeira, é que, na última década, a Venezuela experimentou uma quebra do PIB per capita de 40%, equivalente à da Síria. Mas a Síria teve uma guerra civil. A Venezuela teve apenas um governo socialista. Socialista? Sim, socialista. Ou nacionalizar, condicionar e subsidiar já não é socialismo? É socialismo, claro, e por isso tantos esquerdistas se entusiasmaram com a “revolução bolivariana”, a começar por Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, o maior partido da esquerda europeia, e Bernie Sanders, que poderia ter sido o candidato dos Democratas à presidência dos EUA em 2016.
E não, não foi a quebra do preço do petróleo que destruiu a Venezuela. Nem sequer as sanções americanas. Outros países produtores, sujeitos a sanções muito mais violentas, como o Irão, não desceram até ao caos venezuelano. Foram as expropriações, o controle e o despesismo chavistas que demoliram a economia. O petróleo apenas encobriu a ruína durante uns anos. É verdade que as dificuldades da Venezuela não começaram com o chavismo. Mas se os chavistas, em 1998, encontraram um sistema corrupto, uma sociedade desigual e uma economia em decadência, o que fizeram foi agravar a corrupção, aumentar a desigualdade e, por fim, transformar o declínio numa catástrofe.
Dez por cento da população já fugiu do país. Neste momento, há, na Assembleia Nacional, um pólo de poder paralelo, aplaudido nas ruas e reconhecido por muitos governos ocidentais. Para muitos comentadores, será por isso uma questão de tempo até o exército largar Maduro. Talvez. Esperemos que sim. Mas não tenhamos ilusões. No Ocidente, vigora ainda o romantismo político da “Primavera dos Povos” de 1848. Em 2011, durante a Primavera Árabe, toda a gente se preparou para a queda de Assad na Síria. Oito anos de guerra depois, Assad limpa as cinzas da rebelião.
A primeira ilusão é pensar que o chavismo não pode ir mais além. Sim, os chavistas praticam fraudes eleitorais, calam a imprensa, prendem opositores, e espancam e matam manifestantes. Mas a República Bolivariana ainda não é uma ditadura de tipo soviético, como Cuba. Há uma Assembleia Nacional com uma maioria da oposição, mesmo que desrespeitada, e manifestações de protesto, mesmo que reprimidas. Isto quer dizer que resta uma opção aos chavistas: aumentar a tirania, e esperar que o êxodo e o exílio esvaziem a contestação. Como Chavéz, Maduro surpreende pelas suas excentricidades. Mas é um revolucionário profissional, treinado em Cuba e com o apoio cubano. Não vai certamente ficar à espera de que os oficiais do exército mudem de opinião. Dir-me-ão: um regime mais fechado e violento seria mais ilegítimo. Talvez, mas na Síria, o carniceiro Assad pisou todas as “linhas vermelhas” de Obama, e por lá continua. Não subestimemos um poder determinado em sobreviver.
A Venezuela não é a Síria, até no sentido em que tem memória de uma democracia pluralista. A América Latina também não é o Médio Oriente. Mas essa pode ser a segunda ilusão. Os salvadores de Assad na Síria já surgiram a amparar Maduro. A Rússia, a China e o Irão talvez não tenham interesse em deixar cair um Estado cliente, em que investiram bastante, e podem ter força para o manter. O Ocidente não é o mundo todo, como parecia ser nos anos 90, nem tem a mesma confiança em “mudanças de regime”, nem talvez interesse numa “crise do petróleo”. Talvez por isso, a expectativa de uma iniciativa americana parece depender muito da suposta impetuosidade de Trump. Repito: esperemos que tudo mude na Venezuela. Mas a esperança não deve ser feita de ilusões.

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