É em “A BIGORNA” de DAVID MARTELO, enviada por email,
que leio esta página de Salgueiro Maia, herói do 25 de Abril,
imortalizado em frente à Igreja do Carmo, capitão de Abril em cima de um
tanque, com muitas mais fotos da sua vida já sem tanque, desnecessário este,
bem como as armas mal guardadas de Tancos, porque não mais precisas, a não ser
para prática de crimes contra os seres mais desprotegidos fisicamente.
O texto do seu “Balanço de
um dia de verão” revela-nos um homem orgulhoso daquilo que
representou na sua pátria, mas também, aparentemente, desgostoso das
consequências disso. Talvez com maior consciência do vergonhoso de um processo
que nos pôs a mendigar, a extorquir, a prosseguir não em trabalho de
reconstrução real de um país pela consciencialização e colaboração de todos,
mas num processo de disputa, de acusações, de empobrecimento de uma juventude indisciplinada
e sem brio, pela libertação de responsabilidades e mais do que nunca pela
evolução por compadrio, de que o próprio governo dá exemplo.
Mas, enfim, parece que Salgueiro da
Maia, perseguido por carros de luzes apagadas na noite, viveu
momentos de medo pós abrilinos, segundo conta no seu “Balanço”.
Determinado, contudo, reafirma a sua coragem, citando Pessoa, embora deturpado:
Ele continua a sentir-se herói de uma causa, apesar das decepções sofridas,
alma grande, num país que já o foi.
.
DAVID MARTELO
“A BIGORNA”, 18/2/19
BALANÇO
DE UM DIA DE VERÃO
SALGUEIRO MAIA
O AMANHECER
Numa
alvorada de Abril, alguns “Cavaleiros do Infinito” derrotaram o Adamastor.
Aberto que foi o caminho, logo surgiram cavalos mais lestos a tomar rápido o
caminho do “El Dorado”. Em cada esquina um Novo Profeta, um guia para a via
rápida conduzindo ao Socialismo; foram ultrapassados os aviões mais rápidos,
até o “Concorde” parece velho ao lado dos novos “Discórdios”. O Socialismo
passou a ser possível por Decreto, meio mais rápido e eficiente que qualquer
outro antes experimentado. Os Clássicos foram esquecidos. Quem pode admitir um
Mao Tsé Tung que fala num socialismo a realizar em 200 anos? O nosso é para
fazer. Já!!! Diz-se que o Povo é quem mais ordena – aquilo que
ordenam ao Povo. A
revolução avança, as eminências pardas também. Todos os dias Novos “Chefes”, em
progressão geométrica. Começo a sentir-me preocupado. Então não aproveitamos
para o 25 de Abril tantas boas vontades? Afinal, pensava eu, na nebulosa manhã,
que ia cumprir uma Remissão Nacional; quando afinal não era preciso tanto
trabalho, tanta dádiva, pois, como estamos a ver, os “antifascistas”
surgem em ondas, cada um mais lutador do que o antecedente, e todos com grande
passado. Todos têm histórias para contar. Enfim, para quê tantas
reuniões secretas, tantos cuidados, tudo poderia ser feito às claras, pois o
espírito Pidesco não existe e o fascismo foi um decorativo Animal Caseiro.
O POVO unido jamais será vencido! Viva a vanguarda Revolucionária, luz e guia
do nosso Povo.
O CLAREAR
Não
gosto de ser guia, sou, na medida do possível, Condutor de Homens, desde que o
fim a atingir seja colectivo e não pessoal; hábito nascido de formação
Católica, que me ajudou a sedimentar.
Como alentejano, logo teimoso por nascimento, começo a sentir-me a mais. Antes
do 25 de Abril, por dizer as verdades chamaram-me “Comunista”; agora sou
“Facho”, enquanto os mesmos envolventes são “Progressistas”. Filho de uma
geração de Ferroviários, vou neles beber a inspiração para prosseguir, e neles
verifico que não estou só; apesar de não acompanhar a inflação “elitista” do
momento. O Sol nasce e esconde-se, mas há sempre um amanhã. Entretanto,
estou na oposição. Considero que um Homem vale na medida em que a sua acção
deve abrir o caminho à verdade e à sociedade justa, “Cristã ou Marxista”, e não
ser guia nesse trajecto. Pois o caminho só pode ser comum por uma evolução
social, e não por uma imposição individual.
O
ENTARDECER
Atingido
que foi o ponto de viragem, começo a sentir o hálito frio de 74, antes de
Abril; com a diferença que as palavras são outras, mas os actos quase os mesmos.
Para variar, reuniões constantes onde nada se decide. Também, se houver
decisões, ninguém as cumpre. 2 Reuniões esgotantes, jogos sobre jogos, como de
costume. Em casa, o telefone toca, atendem, desligam; como no tempo da PIDE, os
controleiros cumprem a sua sina. E pensava eu que, depois de Abril, não
estaria sujeito a poderes arbitrários. Em quase todos os deslocamentos para
Lisboa, e em especial dentro dela, sou seguido. Começo por registar as
matrículas de carros que me seguem; depois, verifica-se que são “frias”, ou
constam como pertencendo a uma qualquer máquina agrícola. Começo a ficar
confuso, será que o 25 de Abril foi um sonho, será que o Fascismo continua?
Tenho de tirar as dúvidas! O OCASO Noite de regresso a Santarém, depois de mais
uma esgotante reunião de 17 horas. Levo as janelas do carro abertas, para que o
ar fresco não me deixe adormecer, pois já algumas vezes acordei na valeta. Luto
contra o cansaço, o sono e os coletes que me querem enfiar. Continuo na minha,
depois de tanto jogo “partidário”, só se sai do impasse com jogo “inteiro”.
Entretanto, acabo a auto-estrada, a parte mais difícil da viagem, por ser
monótona e portanto mais convidativa ao sono. Depois vêm as curvas, a estrada
estreita, com os carros na faixa oposta muitas vezes com os faróis nos máximos;
ajudam a manter os olhos abertos. O velho Datsun 1000 já quase sabe o caminho e
vai ajudando. Ultrapasso Azambuja são quase 4 da manhã, não se vê vivalma, nem
carros. Viajo só, mas estou armado. Homem prevenido vale por dois. A pistola já
se tornou companheira, passou a hábito, que as chamadas telefónicas com
ameaças, ou as cartas com carimbo de Lisboa-2, ajudam a actualizar. Cartaxo à
vista, agora são mais 15 minutos e posso dormir. Já a sair do Cartaxo, sinto
que há qualquer coisa de anormal. Desperto, que será? Ao olhar pelo retrovisor
vejo que sigo à frente de um carro que circula com os mínimos. Começo a
acelerar, ele acelera, travo, ele trava. Vamos ter festa! Puxo pelo 1000 o mais
que ele dá, aperto nas curvas; perco o sono de vez. O meu seguidor tem um carro
com mais do dobro de cilindrada e sabe conduzir. Parece vir só. Entro em
Santarém mas não aponto a casa, vou dar a volta ao liceu, para ver como é. Com
as luzes da cidade, fixo a matrícula, mas de pouco me deve servir; deve ser
falsa. Penso sobre o que fazer. Se paro junto à Escola Prática de Cavalaria ou
junto à Polícia ele deve fugir. Continuo em rally pela cidade, já passa das 4
da manhã, ninguém nas ruas, nem um guarda nocturno. Bem, vou ver se o apanho a
jeito. Tiro a pistola da sovaqueira, ponho a patilha de segurança em fogo e vou
seguindo na direcção do Matadouro Municipal. Ali há um largo e uma passagem
estreita, por baixo de um prédio, zona sossegada e com pouca luz; bom local
para uma conversa em família. O meu perseguidor continua sem luzes, a uns 500
metros; logo que entro no largo, travo a fundo e com o travão de mão, para
fazer o pião, de modo a ficar atravessado, fechando a passagem. Pego na
pistola. De músculos tensos, estou pronto a atirar-me ao chão e a disparar. O
meu seguidor aproxima-se, tem de acender os faróis, por falta de luz, e trava
também, pois não pode passar. Para meu espanto, cumprimenta-me. É um meu
ex-vizinho de alguns anos. Diz-me não me ter conhecido e explica-me que o
partido lhe tinha pedido para vigiar a cidade. Afirma não ter reparado não
levar luzes no carro; e ir a caminho de casa. Saio do caminho para o deixar
passar. Mil pensamentos se cruzam no meu cérebro; lembro-me da máxima: “Tudo
vale a pena, quando a Alma não é pequena!” Entretanto, o dia nasceu, e com
nuvens.
Publicado
em MOTA, J. Gomes, A Resistência, Ed. Jornal Expresso, Lisboa, 1976, pp.
233-236.
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