Naqueles tempos, em que se
dizia que o povo trabalhava em mansidão, os “eruditos” chamavam ao país, o país
da “ paz podre”. Neste país que virou
contestatário, as luzes do esclarecimento só convergem sobre a ambição do
lucro, não o que se obtém do trabalho real, para poder dele usufruir, mas o que
se obtém da extorsão – por vias secretas, em maior amplitude lucrativa, por via
belicosa em maior abrangência populacional. Ninguém se preocupa com eficiência
real, de desenvolvimento mental que resulte em desenvolvimento do país. Vivemos
em guerra, “guerra podre”, tal como a
paz de outrora o fora.
Quase um mês separa as duas
crónicas – a de Rui Ramos e a de João Miguel Tavares. De estarrecer o
que se conta, pela indignidade do desrespeito humano e desvergonha numa movimentação
contínua de reclamação, tal como a pedincha de outrora. O “podre” está mesmo em
nós.
GREVE
: O mundo que António Costa criou /premium
Desde
2015 que este governo trata os funcionários como o factor decisivo das vitórias
eleitorais. As greves são a maneira de os funcionários obrigarem Costa a pagar
mais pelos seus votos.
Ao
ano já só restam 20 dias, mas parece que são suficientes para encaixar as 47 greves de que os
sindicatos da função pública deram aviso. Não
haverá um único dia sem paralisações na administração e em empresas públicas:
hospitais, prisões, tribunais, câmaras municipais, bombeiros, escolas, etc. É a segunda discussão do Orçamento de Estado: depois
dos debates parlamentares, temos agora a “luta”, como gosta de dizer o PCP,
grande maestro deste sindicalismo de Estado.
No parlamento, segundo o governo, os deputados, se tivessem conseguido aprovar
todas as suas propostas, teriam agravado a despesa em 1,9 mil milhões de euros. De que aumento será agora capaz o
funcionalismo, utilizando os utentes dos serviços públicos como reféns? Por
enquanto, já garantiu o acrescento do seu salário mínimo: para os outros
trabalhadores é 580 euros (600 no ano que vem); para os funcionários, 635. Talvez tudo isto espante o
cidadão mais desprevenido: como é que, ao fim de três anos de “reposições”, é
precisamente a classe mais mimada pela maioria governamental quem mais
protesta, mais exige – e mais continua a receber?
Segundo o ministro do Trabalho, tudo se deve às “expectativas de
melhorias”. Este é o mundo que
António Costa e os seus parceiros parlamentares, PCP e BE, criaram. Durante
anos, ensinaram que o rendimento de cada grupo não depende da sua produtividade,
mas da sua capacidade de pressão sobre o poder político. Porque é que foram
cortados os salários e as pensões mais elevadas entre 2011 e 2015? Porque o
país, falido, precisava de diminuir défices e provar a sua credibilidade? Nada disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. E
depois de 2015, por que razão foram feitas “reposições”? Porque o ajustamento e
a conjuntura permitiram que, desde 2013, a economia crescesse e o país voltasse
a financiar-se nos mercados? Nada
disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. O poder
político é a chave de tudo: o grevista quer, o poder cede, e é Natal outra vez.
As
greves são, portanto, o mecanismo normal para obter “melhorias” no mundo da
geringonça. Um mundo onde o sector público é sagrado, e o privado é somente
tolerado. Um mundo onde a criação de riqueza é punida através de impostos, e a
“luta” é premiada através da despesa pública. E um mundo onde, naturalmente,
sobressaem os funcionários e os empregados das empresas públicas.
Nenhuma outra classe tem tanta força, a partir de hospitais, escolas ou
empresas de transportes, para infligir incómodo e sofrimento. Quem
mais, por exemplo, poderia ameaçar o país com mortes, como no caso da greve dos enfermeiros? E também nenhuma
outra classe tem tanta consciência da sua influência, não apenas porque muitos
políticos são originários do funcionalismo, mas porque a oligarquia
nunca se cansa de lembrar que os funcionários são, em Portugal, o factor
decisivo das vitórias eleitorais. Foi aliás como tal que, desde 2015, este
governo tratou o funcionalismo. Estamos a seis meses de eleições europeias e a
um ano de legislativas. Como esperar que a classe desperdiçasse esta
oportunidade para aumentar a sua fatia do bolo (25% da despesa, até ver)? As greves são a maneira de os
funcionários obrigarem António Costa a pagar mais pelos seus votos.
Não
vale a pena insistir na insensibilidade social ou no egoísmo corporativo. Nada
mudará com apelos ao bom senso ou aos bons sentimentos, mas unicamente quando
se alterarem as condições que permitem o que os jornalistas chamam,
curiosamente, “contestação”.
No fundo, são os juros do BCE e o efeito de arrasto da economia
europeia, ao disfarçarem o crescimento da dívida pública e o peso da carga fiscal,
a verdadeira causa das greves. O mundo que António Costa criou não depende de
nós, e esse é o seu principal problema: tal como a estátua de ferro no sonho do
profeta, tem os pés de barro.
II - OPINIÃO: A greve de enfermeiros mete
medo – saiba porquê
A greve cirúrgica dos enfermeiros está a
torrar a paciência ao governo mas está a fazer uma outra coisa, bem mais
original – está a ultrapassar, por via das redes, os meios habituais de
protesto e a pôr em xeque a hegemonia dos sindicatos tradicionais.
JOÃO MIGUEL TAVARES, Jornalista
PÚBLICO, 5 de Fevereiro de 2019
António Costa não foi manso nas palavras:
a greve dos enfermeiros é “selvagem” e “absolutamente ilegal”. A esquerda
radical foi extremamente mansa nas reacções: Catarina Martins aconselhou “bom
senso” a “ambas as partes” (a sério), e deixou até críticas aos enfermeiros,
afirmando que “não devem ter um caderno reivindicativo que vai aumentando a
cada dia”; e o PCP, até ao momento em que escrevo, disse coisa nenhuma – nem
uma palavrinha de apoio aos enfermeiros, nem uma crítica a António Costa.
Como é isto possível? Um
primeiro-ministro ataca directa e violentamente uma greve, classifica como
selvagem uma parte do proletariado, e a esquerda, sempre tão amiga dos
trabalhadores, fica entre a absoluta mudez e o convite à moderação? Que raio se
está a passar?
Eu explico o que se está a passar: chama-se crowdfunding. Os enfermeiros juntaram-se em torno de plataformas
electrónicas e, só para esta segunda fase da greve, já reuniram 420 mil euros
em doações. Estes donativos estão a subsidiar os enfermeiros dos blocos
operatórios, que assim podem ficar parados até às calendas sem sofrerem perdas
de rendimento: o que lhes é cortado no salário é recuperado
através do bolo de meio milhão.
Sim,
a greve cirúrgica dos enfermeiros está a torrar a paciência ao governo e a
prejudicar dezenas de milhares de doentes, mas está a fazer uma outra coisa,
bem mais original, ainda que extremamente perigosa para a esquerda sindicalista
– está a ultrapassar, por via das redes, os meios habituais de
protesto e a pôr em xeque a hegemonia dos sindicatos tradicionais.
O
sindicato que tem dado a cara pelo protesto – Sindepor, Sindicato Democrático dos
Enfermeiros de Portugal – nasceu em Évora há pouco mais de ano e meio e está
filiado na UGT. Mas, quando se trata de
explicar a questão do crowdfunding, o Sindepor é muito rápido a chutar
para canto: declara-se alheio a tal iniciativa, que garante ser da inteira
responsabilidade de “um grupo de colegas do Movimento Greve Cirúrgica”,
funcionando apenas “como uma
doação aos colegas de bloco” que estão paralisados.
Só que este “apenas” é tudo, porque sem tal mecanismo a eficácia da
greve seria nula. O brutal êxito do crowdfunding tem consequências: a
partir de agora, qualquer grupo de funcionários descontentes devidamente
empenhado e informatizado pode juntar-se à margem dos sindicatos e avançar para
as suas próprias formas de luta, sem estar à espera das ordens indirectas do
Comité Central do PCP.
Quem
é que já percebeu isto e não está a achar graça nenhuma? O PCP, claro.
Aliás, já o escreveu. Texto de 15 de Dezembro de 2018, subscrito por Francisco
Lopes: “O PCP não pode deixar de manifestar a sua preocupação
com uma acção em curso que invocando o direito à greve incide sobre as
cirurgias em alguns hospitais de forma bastante prolongada, afectando
brutalmente os utentes. Alguns enfermeiros estão a ser usados e pagos, com
centenas de milhares de euros, cuja origem não se conhece, registando-se
observações já feitas sobre a possibilidade de serem os grupos privados da
saúde a financiarem essa acção para beneficiarem da transferência das operações
cirúrgicas e pôr em causa o SNS.” O argumento é engenhoso: o PCP
não está do lado destes enfermeiros dada
a possibilidade de serem serventuários do grande capital, patrocinados por
grupos privados para lixar o SNS. Será mesmo verdade? O PCP não sabe, claro.
Mas disto não tem a menor dúvida: estão a lixar a CGTP. E é isso que dói.
Muito.
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