sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

A “guerra podre”



Naqueles tempos, em que se dizia que o povo trabalhava em mansidão, os “eruditos” chamavam ao país, o país da “ paz podre”. Neste país que virou contestatário, as luzes do esclarecimento só convergem sobre a ambição do lucro, não o que se obtém do trabalho real, para poder dele usufruir, mas o que se obtém da extorsão – por vias secretas, em maior amplitude lucrativa, por via belicosa em maior abrangência populacional. Ninguém se preocupa com eficiência real, de desenvolvimento mental que resulte em desenvolvimento do país. Vivemos em guerra, “guerra podre”, tal como a paz de outrora o fora.
Quase um mês separa as duas crónicas – a de Rui Ramos e a de João Miguel Tavares. De estarrecer o que se conta, pela indignidade do desrespeito humano e desvergonha numa movimentação contínua de reclamação, tal como a pedincha de outrora. O “podre” está mesmo em nós.
GREVE : O mundo que António Costa criou /premium
RUI RAMOS            OBSERVADOR, 11/12/2018
Desde 2015 que este governo trata os funcionários como o factor decisivo das vitórias eleitorais. As greves são a maneira de os funcionários obrigarem Costa a pagar mais pelos seus votos.
Ao ano já só restam 20 dias, mas parece que são suficientes para encaixar as 47 greves de que os sindicatos da função pública deram aviso. Não haverá um único dia sem paralisações na administração e em empresas públicas: hospitais, prisões, tribunais, câmaras municipais, bombeiros, escolas, etc. É a segunda discussão do Orçamento de Estado: depois dos debates parlamentares, temos agora a “luta”, como gosta de dizer o PCP, grande maestro deste sindicalismo de Estado. No parlamento, segundo o governo, os deputados, se tivessem conseguido aprovar todas as suas propostas, teriam agravado a despesa em 1,9 mil milhões de euros. De que aumento será agora capaz o funcionalismo, utilizando os utentes dos serviços públicos como reféns? Por enquanto, já garantiu o acrescento do seu salário mínimo: para os outros trabalhadores é 580 euros (600 no ano que vem); para os funcionários, 635. Talvez tudo isto espante o cidadão mais desprevenido: como é que, ao fim de três anos de “reposições”, é precisamente a classe mais mimada pela maioria governamental quem mais protesta, mais exige – e mais continua a receber?
Segundo o ministro do Trabalho, tudo se deve às “expectativas de melhorias”. Este é o mundo que António Costa e os seus parceiros parlamentares, PCP e BE, criaram. Durante anos, ensinaram que o rendimento de cada grupo não depende da sua produtividade, mas da sua capacidade de pressão sobre o poder político. Porque é que foram cortados os salários e as pensões mais elevadas entre 2011 e 2015? Porque o país, falido, precisava de diminuir défices e provar a sua credibilidade? Nada disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. E depois de 2015, por que razão foram feitas “reposições”? Porque o ajustamento e a conjuntura permitiram que, desde 2013, a economia crescesse e o país voltasse a financiar-se nos mercados? Nada disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. O poder político é a chave de tudo: o grevista quer, o poder cede, e é Natal outra vez.
As greves são, portanto, o mecanismo normal para obter “melhorias” no mundo da geringonça. Um mundo onde o sector público é sagrado, e o privado é somente tolerado. Um mundo onde a criação de riqueza é punida através de impostos, e a “luta” é premiada através da despesa pública. E um mundo onde, naturalmente, sobressaem os funcionários e os empregados das empresas públicas. Nenhuma outra classe tem tanta força, a partir de hospitais, escolas ou empresas de transportes, para infligir incómodo e sofrimento. Quem mais, por exemplo, poderia ameaçar o país com mortes, como no caso da greve dos enfermeiros? E também nenhuma outra classe tem tanta consciência da sua influência, não apenas porque muitos políticos são originários do funcionalismo, mas porque a oligarquia nunca se cansa de lembrar que os funcionários são, em Portugal, o factor decisivo das vitórias eleitorais. Foi aliás como tal que, desde 2015, este governo tratou o funcionalismo. Estamos a seis meses de eleições europeias e a um ano de legislativas. Como esperar que a classe desperdiçasse esta oportunidade para aumentar a sua fatia do bolo (25% da despesa, até ver)? As greves são a maneira de os funcionários obrigarem António Costa a pagar mais pelos seus votos.
Não vale a pena insistir na insensibilidade social ou no egoísmo corporativo. Nada mudará com apelos ao bom senso ou aos bons sentimentos, mas unicamente quando se alterarem as condições que permitem o que os jornalistas chamam, curiosamente, “contestação”. No fundo, são os juros do BCE e o efeito de arrasto da economia europeia, ao disfarçarem o crescimento da dívida pública e o peso da carga fiscal, a verdadeira causa das greves. O mundo que António Costa criou não depende de nós, e esse é o seu principal problema: tal como a estátua de ferro no sonho do profeta, tem os pés de barro.
II - OPINIÃO: A greve de enfermeiros mete medo – saiba porquê
A greve cirúrgica dos enfermeiros está a torrar a paciência ao governo mas está a fazer uma outra coisa, bem mais original – está a ultrapassar, por via das redes, os meios habituais de protesto e a pôr em xeque a hegemonia dos sindicatos tradicionais.
JOÃO MIGUEL TAVARES, Jornalista
PÚBLICO, 5 de Fevereiro de 2019
António Costa não foi manso nas palavras: a greve dos enfermeiros é “selvagem” e “absolutamente ilegal”. A esquerda radical foi extremamente mansa nas reacções: Catarina Martins aconselhou “bom senso” a “ambas as partes” (a sério), e deixou até críticas aos enfermeiros, afirmando que “não devem ter um caderno reivindicativo que vai aumentando a cada dia”; e o PCP, até ao momento em que escrevo, disse coisa nenhuma – nem uma palavrinha de apoio aos enfermeiros, nem uma crítica a António Costa.
Como é isto possível? Um primeiro-ministro ataca directa e violentamente uma greve, classifica como selvagem uma parte do proletariado, e a esquerda, sempre tão amiga dos trabalhadores, fica entre a absoluta mudez e o convite à moderação? Que raio se está a passar?
Eu explico o que se está a passar: chama-se crowdfunding. Os enfermeiros juntaram-se em torno de plataformas electrónicas e, só para esta segunda fase da greve, já reuniram 420 mil euros em doações. Estes donativos estão a subsidiar os enfermeiros dos blocos operatórios, que assim podem ficar parados até às calendas sem sofrerem perdas de rendimento: o que lhes é cortado no salário é recuperado através do bolo de meio milhão.
Sim, a greve cirúrgica dos enfermeiros está a torrar a paciência ao governo e a prejudicar dezenas de milhares de doentes, mas está a fazer uma outra coisa, bem mais original, ainda que extremamente perigosa para a esquerda sindicalista – está a ultrapassar, por via das redes, os meios habituais de protesto e a pôr em xeque a hegemonia dos sindicatos tradicionais.
O sindicato que tem dado a cara pelo protesto – Sindepor, Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal – nasceu em Évora há pouco mais de ano e meio e está filiado na UGT. Mas, quando se trata de explicar a questão do crowdfunding, o Sindepor é muito rápido a chutar para canto: declara-se alheio a tal iniciativa, que garante ser da inteira responsabilidade de “um grupo de colegas do Movimento Greve Cirúrgica”, funcionando apenas “como uma doação aos colegas de bloco” que estão paralisados.
Só que este “apenas” é tudo, porque sem tal mecanismo a eficácia da greve seria nula. O brutal êxito do crowdfunding tem consequências: a partir de agora, qualquer grupo de funcionários descontentes devidamente empenhado e informatizado pode juntar-se à margem dos sindicatos e avançar para as suas próprias formas de luta, sem estar à espera das ordens indirectas do Comité Central do PCP.
Quem é que já percebeu isto e não está a achar graça nenhuma? O PCP, claro. Aliás, já o escreveu. Texto de 15 de Dezembro de 2018, subscrito por Francisco Lopes: “O PCP não pode deixar de manifestar a sua preocupação com uma acção em curso que invocando o direito à greve incide sobre as cirurgias em alguns hospitais de forma bastante prolongada, afectando brutalmente os utentes. Alguns enfermeiros estão a ser usados e pagos, com centenas de milhares de euros, cuja origem não se conhece, registando-se observações já feitas sobre a possibilidade de serem os grupos privados da saúde a financiarem essa acção para beneficiarem da transferência das operações cirúrgicas e pôr em causa o SNS.O argumento é engenhoso: o PCP não está do lado destes enfermeiros dada a possibilidade de serem serventuários do grande capital, patrocinados por grupos privados para lixar o SNS. Será mesmo verdade? O PCP não sabe, claro. Mas disto não tem a menor dúvida: estão a lixar a CGTP. E é isso que dói. Muito.

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