De facto, quando julgamos
merecer tréguas na palhaçada exibicionista do nosso PR, logo outro caso mais
atroz de escândalo pueril salta impunemente para o circo das nossas promoções
de factos notáveis. Não, não há pachorra, e o despudor do governante só é
comparável ao despudor noticiarista da nossa imprensa a focá-lo, em aparente
apoio, que mais se assemelha a indiscrição trocista. Mas bem parola, afinal.
Ninguém como Alberto
Gonçalves para carimbar tal perversão de actuações, com a violência da
sua raiva incontida, sagaz que é, e avesso ao mau-gosto da nossa parolice snobe,
sob uma aparência astuta de bondade atenta.
Leiamo-lo, não com o riso da
diversão, mas com o mesmo asco, pela perversão e infâmia, em êxtase de
beatitude, de uma personagem que Eça se esqueceu de cozinhar, os seus
conselheiros Acácios da reverência, ou os Gouvarinhos da impecabilidade no
vestir, perdendo em despreocupação atrevida, de um rei democraticamente mas
pedantemente nu.
Os desígnios dos senhores /premium
OBSERVADOR, 2/2/19
Os “desígnios” são a versão “moderna” e
onerosa das feiras medievais e do fumeiro. A maior diferença é comer-se pior. A
maior semelhança é o deslumbramento fácil, além da omnipresença do prof.
Marcelo
“Conseguimos!
Conseguimos! Portugal! Lisboa! Esperávamos! Desejávamos! Conseguimos!
Vitória!”. Excitado, frenético, quase fora de si, o prof. Marcelo anunciou
assim a organização nacional, lá para 2022, de um evento qualquer. Durante o
vídeo, o maxilar inferior descaiu-se-me e não voltou ao sítio nos minutos
seguintes. Não se pode dizer que as peculiaridades (digamos) do prof. Marcelo
sejam incapazes de nos surpreender. Eu, pelo menos, não me lembro de alguma vez
ter visto um presidente da República em preparos similares, incluindo as
aparições do actual em cuecas. Em matéria de excentricidade, o referido
entusiasmo deixa a roupa interior a léguas. E deixou-me sem reacção por um
período indeterminado.
Só
depois notei que, no meio do arrebatamento dele e da minha perplexidade, acabei
por não fazer ideia de que evento se tratava. Fui ver. São umas Jornadas
Mundiais da Juventude, que decorrem sob patrocínio do Papa e de tantos em
tantos anos reúnem, ignoro com que fim, multidões de moços e moças católicos
numa cidade designada para o efeito. No ano corrente, a coisa calhou na
capital do Panamá, obviamente – onde é que está?, é apenas um instante, espera
lá, ora cá temos – a Cidade do Panamá, onde aliás o prof. Marcelo sofreu a
dupla epifania que o levou a anunciar as Jornadas portuguesas e o seu
inesperado apetite por um segundo mandato.
Embora
me horrorize o modo, não me incomoda nada que o chefe de um estado laico
promova uma farra cristã. Sobretudo quando os que criticam a promiscuidade –
não os comunistas de Loures – acharam impecável que o mesmo chefe do mesmo
estado laico passasse o Natal numa mesquita, a exaltar o contributo da
comunidade islâmica. E achariam
impecabilíssimo que o prof. Marcelo surgisse, em posição de lótus e um regador
na cabeça, a dar início a uma convenção de “motards” budistas. Aborrece-me o
ecumenismo que venera o “outro” enquanto abomina o “nós”.
Também
me aborrecem os queixumes pela realização das Jornadas em Lisboa.
Principalmente na medida em que, desconfio, os queixosos estão todos fora de
Lisboa: seria compreensível se fossem os lisboetas a resmungar. De certeza
que o cidadão de Celorico de Basto furioso com o “centralismo” gostaria de
tamanha pândega à sua porta? Ninguém com um pingo de bom senso anseia
por milhares de escuteiros acampados no quintal., Por mim, juro que pagava para
que a desdita não me caísse em cima – como pagarei, goste ou não, para que caia
no Parque das Nações ou lá o que é. De resto, é tão pacóvio a apetência do
“país real” em reivindicar “certames” quanto o orgulho da capital em
acolhê-los.
O
problema é justamente esse. A XVII Exposição de Arte Ciência e Cultura. A
Expo 98. O Euro 2004. A tenda do Kadhafi. A Web Summit. A Eurovisão. Agora as
Jornadas da Juventude e, em breve e se Deus nosso senhor quiser, o EuroPride,
“o maior evento LGBTIAKŒR@A$N∞J© do mundo”. Algures pelo caminho, falhámos por
manifesta injustiça os Jogos Olímpicos e, se não erro, um ou dois campeonatos
mundiais da bola. Mas não falhámos o nosso destino.
De
tempos a tempos, com intervalos crescentemente curtos, o país depara-se com um
“desígnio”. O processo é
recorrente. Há a hipótese de Portugal, leia-se Lisboa, receber um regabofe
itinerante de “prestígio” internacional e discutível. Há uma comissão nomeada
para cuidar da candidatura. Há a vitória da candidatura, por regra disputada
com Salónica, Montevideu e um ermo na Turquia. Há festa rija pela vitória,
impulsionada por noticiários que transmitem a propaganda oficial. Há a garantia
de milhões despejados na empreitada a título de “investimento”. Há a difamação
pública dos raros espécimes que, por mera pirraça, contestam os benefícios
daquela maravilha. Há a consumação da maravilha, com a natural glorificação do
talento indígena para montar barracos e demolir o sossego alheio. Há discursos
oficiais, que juram o pasmo da humanidade perante a proeza caseira. Há o
apuramento dos lucros, aos quais não se deduzem os gastos. Há os gastos para
cobrir em três ou quatro gerações. Há 0,025% do povo a esfregar as mãos pelos
dividendos políticos e monetários adquiridos no exercício. Há o momento para
varrer o entulho acumulado e matutar no “desígnio” seguinte. Há uma comissão
nomeada para cuidar da candidatura. Etc.
Discutir,
a propósito destas patetices, a descentralização, o provincianismo, o progresso
e o que calha é conversa para embrulhar os que não participam nos despojos. Os
“desígnios” são a versão “moderna” e dispendiosa das feiras medievais e do
fumeiro que entretêm semanalmente as berças. A maior diferença é, imagino,
comer-se pior. A maior semelhança é o deslumbramento fácil, além da
omnipresença do prof. Marcelo, claro.
Nota
de rodapé
No
parlamento, os comunistas do BE e os comunistas do PCP rejeitaram um voto de
pesar pelos mortos na Venezuela.
Quando o mundo ainda digeria a surpresa por a extrema-esquerda desprezar as
suas próprias vítimas, o dr. Louçã apareceu no Facebook a escrever “Guaidós” e
acusar a “direita” de “estratégia ignóbil”. Porquê? No primeiro caso, porque o
dr. Louçã, homem de acção, não é de grandes leituras. No segundo, porque o
texto de PSD e CDS pretendia que, além de lamentar os assassínios, a
extrema-esquerda reconhecesse uma assembleia eleita pelo povo e um presidente
reconhecido por tudo o que é regime democrático. Já é demais. Felizmente,
resta o dr. Louçã, conselheiro de Estado e consultor do Banco de Portugal, para
afrontar o sistema e repor a verdade. E acrescentar: “É assim que vai ser em
2019. Discurso de ódio, simplificações, ultimatos, fake news. É a era Trump.” O
dr. Louçã repete muito coisas destas. Com sorte, e uma valente lobotomia,
haverá quem o ouça.
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